14.12.10

Tropa de elite 2: vitória da violência



No cinema de Hollywood as continuações em geral seguem uma fórmula típica em que tudo aumenta de escala: a ambição da trama, os desafios, o drama dos personagens, as reviravoltas no roteiro, os efeitos especiais, as cenas de ação, etc. O segundo “Tropa de Elite” segue esta fórmula e também amplia suas ambições.

O primeiro episódio tinha como alvo ideológico a “consciência social” da pequena-burguesia universitária, que milita em ONGs, é “amiga dos pobres” e consome maconha. No discurso do filme, o usuário de drogas é o culpado pela violência, pois é o seu dinheiro que financia o tráfico, e que arma os traficantes, com as mesmas armas com as quais se cometem os demais crimes. Para proteger “a sociedade” contra o crime, prossegue o filme, uma polícia comum não serve, pois a PM é na verdade sócia do crime, por meio da corrupção. A solução é o BOPE, uma tropa de elite selecionada por meio de métodos extremos de treinamento, capaz de desbaratar qualquer quadrilha por meio de técnicas de tortura e de guerra dignas de qualquer filme de Rambo. Para completar, o “bandido” é apresentado como uma raça à parte dos demais seres humanos, os “cidadãos de bem”, não como uma categoria social produzida por relações sociais específicas, e como tal pode ser torturado e morto pelos “mocinhos” da história sem qualquer sombra de remorso.

Ainda que tivesse alguma pretensão crítica por expor as entranhas da corrupção policial ou mesmo a destruição da vida pessoal do capitão do BOPE (que se torna ele próprio usuário de drogas – estas legalizadas – fornecidas com receita de tratamento psiquiátrico), o primeiro filme acaba funcionando como uma apologia dos métodos extremos da repressão. A questão fundamental, que é a proibição do uso de drogas, nem sequer é mencionada. Se o consumo de drogas não fosse ilegal, não haveria a necessidade de reprimir o tráfico, e não haveria quadrilhas armadas de traficantes aterrorizando a periferia das grandes cidades, e conseqüentemente não haveria a guerra entre traficantes, policiais corruptos e o BOPE. Certamente haveria um aumento do número de dependentes e de problemas para o sistema público de saúde, e haveria outros crimes a serem explorados pelo lumpesinato; entretanto, a letalidade social da proibição ao uso de drogas, com seu corolário de violência, corrupção e terror é muito maior. A série “Tropa de Elite” não discute essas possibilidades, tratando a proibição do uso de drogas como um fato dado e absoluto, um pressuposto imutável, e em cima disso constrói sua hierarquia de valores morais, de certo e errado, mocinhos e bandidos.

O resultado é uma apologia mais ou menos disfarçada da repressão, da guerra social, do extermínio de favelados, negros, nordestinos, desempregados, pelo crime de serem pobres. O herói do cinema brasileiro não é mais o bandido, o cangaceiro, expressão estética de uma “consciência social” anterior, também pequeno-burguesa e limitada, que glamourizava a resistência social dos pobres contra a repressão do Estado, como forma de aliviar a consciência pesada dessa camada social com a miséria brasileira, mas que não avançava para a defesa de mudanças profundas no regime social. Essa consciência foi tornada antiquada e a pequena-burguesia foi posta contra a parede. O novo herói do cinema nacional é o policial durão, estilo John Mclaine, da série “Duro de Matar”, em versão brasileira.


O novo episódio também não avança para um questionamento mais profundo sobre as causas do problema da violência. Logo no início, quando o BOPE está se preparando para debelar uma rebelião em um presídio, o nosso “herói”, o agora Coronel Nascimento, diz que o que impede a polícia de acabar de vez com o crime são os “intelectuais de esquerda que ganham a vida defendendo vagabundo”. O uso da expressão “vagabundo” não deixa margem de dúvidas quanto à ideologia que está sendo destilada. O criminoso é chamado de “vagabundo”, um adjetivo negativo que tem o significado de pessoa que não quer trabalhar. Logo, o criminoso não se torna criminoso por uma série de outras razões, mas simplesmente porque não quis trabalhar. Está subentendida nesse discurso a idéia de que, se o vagabundo quisesse trabalhar honestamente, ele poderia. Está expresso aí com todas as cores o brutal cinismo da ideologia burguesa, que explica as desigualdades sociais pelo mérito individual, que separa implacavelmente os vencedores dos perdedores.

O desemprego, o subemprego, o trabalho superexplorado, a miséria e a alienação em que vivem milhões de trabalhadores nas periferias são tomados também como pressupostos imutáveis, e também como se não tivessem nenhuma relação causal com a facilidade do negócio capitalista do tráfico, um mercado como outro qualquer, de recrutar seus aviõezinhos, soldados e gerentes de boca, proletários do negócio do tráfico, e seus chefes sanguinários, seus Beiradas, Baianos e Beira-mares, empreendedores capitalistas associados aos banqueiros encarregados da lavagem de dinheiro e aos políticos e magistrados encarregados de deixá-los tocar suas atividades, dentro ou fora da cadeia, em troca de propina. Combater o crime por meio da violência policial, ou por meio de ONGs assistencialistas, sem combater as suas causas, que estão na miséria social e no próprio sistema capitalista, é como enxugar gelo.

O processo social que alimenta a continuidade dos negócios criminosos e da guerra associada a ele permanece oculto ou intocado no 2º episódio de “Tropa de Elite”, que começa com a cena de rebelião no presídio, quando o Coronel Nascimento diz que os “vagabundos” deveriam ser deixados à própria sorte, para que se matassem todos. A intenção do Coronel, que expressa o desejo da consciência burguesa e pequeno-burguesa em relação aos “perdedores” da corrida social, era deixar os seus “caveiras” entrarem em cena apenas depois que os “vagabundos” rebelados tivessem exterminado seus rivais de outras facções, para exterminar por sua vez os que tivessem restado. Entretanto, ele foi atrapalhado em suas intenções pelo “intelectual de esquerda”, um professor universitário e ativista dos direitos humanos que se dispõe a negociar a libertação dos reféns e o fim da rebelião.


Temos então, com a presença do ativista de direitos humanos Diogo Fraga o salto de qualidade deste “Tropa de Elite”. Espécie de concessão à crítica, que malhou o primeiro filme por seu conteúdo explicitamente de direita, na maior parte das vezes como eco daquela consciência pequeno-burguesa habituada às fórmulas antigas do cinema nacional, e poucas vezes com real conhecimento de causa, a atuação do personagem de Fraga fornece uma espécie de contraponto ao discurso belicoso de Nascimento. Pela voz do Coronel, o militante é ridicularizado desde o início (apelidado de “Che Guevara”, espécie de deboche com os militantes de esquerda em geral), ainda mais pelo fato de ter se casado com sua ex-mulher e estar educando seu filho. Além disso, ao passar de professor universitário a deputado estadual e daí a federal, Fraga é também apresentado como alguém que tem ambições meramente eleitoreiras.

Mesmo assim, conforme o Coronel, paradoxalmente promovido para o setor de Inteligência da polícia depois do incidente no presídio, começa a tomar conhecimento das raízes profundas que unem a corrupção policial ao coração do sistema político, ele e o deputado Fraga acabam atuando em parceria para desbaratar uma quadrilha, uma das chamadas “milícias”, na verdade um esquadrão da morte de policiais corruptos que como uma máfia havia se apossado de um dos bairros da cidade, na qual estavam unidos policiais corruptos, apresentadores de TV e a cúpula da segurança pública. Os dois personagens assim “se redimem” por meio da cooperação. O filme alça então uma tentativa de reflexão mais ampla, em que o próprio Coronel, do alto da tribuna de uma CPI das milícias, se questiona “por que a sociedade o preparou para matar?”.

Nesse questionamento feito pelo filme aparecem episódios reais da história recente do Rio, como o roubo (farsesco, segundo o filme) das armas do exército, a equipe de reportagem torturada por integrantes da milícia (mortos no filme), e a CPI das milícias. O próprio Fraga é construído em cima da história do deputado estadual Marcelo Freixo, do PSOL, que impulsionou a CPI na assembléia legislativa. Lá ele tem como adversário o apresentador de TV Wagner Montes, que como o apresentador do filme, defende a política de “tolerância zero” com “bandidos” e “vagabundos”. Os dois foram reeleitos em 2010, o primeiro com votos da classe média da zona sul, o segundo com os votos da população pobre dos morros. Um paradoxo que mereceria uma reflexão mais aprofundada, pois constitui a chave para entender as dificuldades para combater a ideologia da violência entre suas próprias vítimas, ou seja, os trabalhadores mais pobres.

A reflexão do herói do filme o leva, numa seqüência em que a câmera sobrevoa os prédios do Congresso Nacional, a deduzir que o “sistema” ao qual combateu durante toda a carreira de policial-herói vai além da simples corrupção policial, e na verdade abrange as mais altas instituições políticas, tidas como inteiramente apodrecidas pela corrupção. As conclusões aparentemente são deixadas para o espectador. Ele pode optar pelo método de Fraga/Freixo, ou pelo método de Nascimento. O Coronel não deixa de estar certo ao sugerir que as instituições estão corrompidas. Entretanto, quem o aplaude neste momento, como a burguesia que o aplaudiu no filme depois de ter comandado o massacre no presídio, são aqueles que desejariam ver o Congresso Nacional fechado para que o país voltasse a ser comandado por “heróis virtuosos”. Não surpreende que a Globo Filmes, braço cinematográfico da Rede Globo, império empresarial de mídia que nasceu e cresceu com a função de fornecer sustentação ideológica para a ditadura de 1964, esteja entre os patrocinadores do filme.

As instituições do Estado burguês estão mesmo corrompidas, assim como todas as relações sociais no sistema capitalista, baseadas na violência, no roubo (de trabalho não-pago, fonte da mais-valia) e na mentira. A solução é a derrubada dessas instituições, não apenas por “Che Guevaras”, como os que são ironizados pelo Coronel do BOPE, mas pela ação organizada e consciente da classe trabalhadora.
Daniel M. Delfino
14 de Dezembro de 2010