15.12.15

Não temos que escolher entre Dilma, Cunha ou Aécio e sim construir uma agenda dos trabalhadores


Depois de vários meses de idas e vindas, ameaças e chantagens, o Presidente da Câmara, Eduardo Cunha-PMDB, finalmente aceitou colocar em tramitação um dos muitos pedidos de impeachment contra a presidente Dilma Roussef-PT. Num gesto de declaração de guerra escancaradamente revanchista, mesquinho e casuístico, a abertura do processo de impeachment foi anunciada imediatamente depois do PT divulgar que vai votar a favor da cassação de Cunha na Comissão de Ética da Câmara. A crise política que vinha se arrastando desde o início do ano (na verdade, desde as eleições de 2014), finalmente entrou na sua reta final. As cartas estão na mesa.
Não vem ao caso discutir os argumentos jurídicos a favor ou contra a cassação de Dilma ou de Cunha. No final das contas a questão não é jurídica ou técnica, em termos de determinar quem é culpado ou inocente de algum crime. Pois sabemos que tanto PT como PMDB cometeram todos os crimes possíveis para os quais foi escrita alguma lei, assim como também é criminoso até os ossos o PSDB, que está assistindo essa disputa de camarote (com a exceção pontual de Alckmin, que recebeu uma lição dos secundaristas em São Paulo). A questão que realmente importa é quem terá os votos necessários para conseguir a cassação do outro. O impeachment precisa de 2/3 dos votos na Câmara (para depois ir à votação no Senado), enquanto que a cassação do mandato de um deputado precisa de maioria simples (50% mais um). Nos próximos meses (o processo de impeachment tem 180 dias de prazo para tramitação) teremos essa corrida entre Dilma e Cunha pelos votos nos bastidores.
Supostamente, o PT conta com maioria no Senado, e a decisão de votar contra Cunha só deve ter sido tomada depois do partido assegurar alguma margem de confiança de que o impeachment não passará na Câmara. Os pedidos de impeachment já vinham se acumulando há vários meses, e Cunha usava sua prerrogativa de Presidente da Câmara para bloqueá-los, na esperança de que o PT sustentasse seu mandato, quando chegasse a hora. Toma lá dá cá, até que a hora chegou, com o processo de cassação de Cunha finalmente aterrissando na Comissão de Ética. Se o PT resolveu rifar Cunha (e com isso aceitou a inevitabilidade da abertura do processo de impeachment), é porque não teme mais a votação na Câmara. É preciso ser muito ingênuo para acreditar que o PT teria se posicionado contra Cunha a partir de um arroubo de respeito pela “ética”, como se estivesse respondendo à “pressão da sua militância de base”, ou “resgatando sua história de luta” (que na verdade ficou muito para trás, no passado distante da década de 1980), etc. Quem acreditou nessa hipótese receberá a visita do Papai Noel este ano.

A aposta no isolamento de Cunha
Na verdade, o que o PT deseja é exatamente fazer acreditar que está se colocando contra Cunha pela esquerda. O PT quer que todos os movimentos sociais, organizações, militantes, ativistas e simpatizantes das causas da esquerda cerrem fileiras em defesa do governo durante os meses de turbulência que teremos pela frente, contra a ameaça da “direita” e do “golpe”. Para isso, Cunha acabou se tornando um bode expiatório bastante conveniente. Não faltará indignação diante de todas as manobras e baixarias que Cunha, Temer e o PMDB farão ao longo do processo de impeachment. Isso supostamente mostrará o quanto o impeachment é um golpe de políticos maquiavélicos, oportunistas, ressentidos, mesquinhos, sórdidos prejudicando a nação.
Que se trata de políticos maquiavélicos, oportunistas, ressentidos, mesquinhos e sórdidos, não resta a menor dúvida. O que faltará é lembrar, porém, que a opção de governar com esses políticos do PMDB foi feita pelo próprio PT, que agora vai ter que passar por uma árdua provação se quiser recompor o arranjo de sustentação do governo. Dilma teve que suportar meses de desgaste (dos quais ainda não se recuperou e talvez não se recupere inteiramente jamais), para criar as condições necessárias para se livrar do “aliado” incômodo. Foi preciso dar algum tempo para que Eduardo Cunha ficasse à solta e em evidência num cargo de grande projeção nacional para que viesse à tona o quão abominável é esse personagem.
O atual Presidente da Câmara mostrou ser bastante adequado ao cargo, já que sintetiza em sua pessoa todas as vilezas do Congresso mais reacionário da história. Além dos seus próprios crimes pessoais, além de ser corrupto, autoritário, machista, hipócrita, etc., Cunha deu livre curso para as pautas nefastas do agronegócio, do aparato de segurança e das igrejas evangélicas (a chamada “bancada BBB” – boi, bala e bíblia). A lei da terceirização, redução da maioridade penal, demarcação das terras indígenas e quilombolas pelo Congresso, escola sem partido, estatuto da família, PL do estupro, lei antiterrorismo, financiamento privado de campanha, MP da “bengala”, etc., estão todos identificados com o mandato de Cunha na Presidência da Câmara.
O Congresso abriu a caixa de Pandora, desengavetando todas as maldades que a burguesia guardava para os trabalhadores há muito tempo e não tinha oportunidade de por em pauta. Não foi preciso transcorrer muito tempo para que a rejeição ao Presidente da Câmara se acumulasse. Em particular, o movimento de mulheres, com muita razão, se colocou na vanguarda dessa rejeição e corretamente foi às ruas em várias cidades para pedir o “Fora Cunha!” O passo seguinte foi esperar o andamento normal dos processos de cassação na Comissão de Ética, para que o PT pudesse se posicionar abertamente contra Cunha. Calçado no repúdio popular a uma figura tão odiosa, o PT obteve assim o antagonista ideal contra o qual esgrimir a batalha pela sua sobrevivência política.
Um antagonista que fará o próprio PSDB pensar duas vezes antes de se associar a ele para conseguir o impeachment. Se o afastamento for apenas de Dilma, quem assume é o vice Michel Temer, também do PMDB, o que não resolve o problema para o PSDB, que teria que se conformar em ser mero parceiro em um governo de coalizão de Temer. Para o PMDB, uma confederação de caciques sem nenhuma unidade ou centralismo a não ser o fisiologismo visceral (para não dizer sem qualquer ideologia própria ou projeto), é melhor manter Temer, seja como presidente ou ainda como vice, do que embarcar na aventura de uma eleição com o PSDB. Manter Temer pode inclusive significar manter Dilma, já que uma das teses que fundamenta o impeachment de uma (as tais “pedaladas fiscais”) pode implicar necessariamente o do outro (Temer também assinou decretos autorizando movimentações de verbas de forma supostamente irregular). Em comparação com isso, não seria uma tragédia para o PMDB a cassação de Cunha, a não ser para o próprio Cunha.
Foi com base nesse raciocínio que o PT provavelmente calculou a viabilidade da jogada de votar contra Cunha. Isso não quer dizer que Dilma não corre risco e que o impeachment é impossível, mas que não é o mais provável. O mais provável é que passemos vários meses nessa disputa estéril (mas estrondosa, que vai ocupar todas as manchetes e noticiários por um bom tempo, com a cobertura exaustiva e bombástica de todos os lances) entre os setores que são contra e a favor do impeachment.

As manifestações de 13 e 16 de dezembro.
Logo nos dias imediatamente seguintes à abertura do processo, Dilma tentou se cercar do apoio de diversas entidades, como os governadores de estados, OAB, CNBB, juristas, etc. Temer, por sua vez, vazou uma carta patética para a imprensa, numa tentativa desastrada de mostrar que cobrará do PT um preço muito alto pela lealdade de sua facção no partido. Ou seja, os votos do PMDB para salvar Dilma custarão muito mais verbas e cargos. Era isso que a carta de Temer queria dizer nas entrelinhas, mas que ficou soterrado pelo tom de vaidade ferida e ressentimento mesquinho, que fizeram o feitiço virar contra o feiticeiro. Poucas vezes na história o humor interferiu tanto na política, pois a carta se prestou a tamanho volume de chacota que pode ser capaz de reduzir o poder de barganha do doravante cognominado Mimimichel Temer.
O humor involuntário também correu solto nas manifestações (ou “mini-festações”) pró-impeachment de 13/12, que em comparação com os protestos realizados em diversos momentos ao longo do ano, reduziram-se numericamente e qualitativamente à sua expressão mais essencial e caricata. Esses novos atos contra Dilma reduziram-se a uma camada social mais reduzida, uma burguesia mais envenenada de ódio de classe (e que é imbecil o suficiente para supor que o PT representa a classe trabalhadora e as causas históricas da esquerda), além de aderentes de “prestígio” como Alexandre Frota, e atos “radicais” como a caminhada em shopping centers. Isso não significa que o repúdio a Dilma tenha diminuído em qualquer uma das classes sociais ou setores de classe, mas que a rejeição a Cunha, Temer, Aécio, etc., figuras nefastas que todos enxergam muito nitidamente que estão por trás do impeachment, também é muito grande e não motiva a mobilização.
De outro lado, o PT, por sua vez, também está convocando manifestações para o dia 16/12. Mas de maneira muito habilidosa, o governo inseriu palavras de ordem de esquerda nas convocações, como o repúdio ao “golpe” e defesa da “democracia” (aproveitando-se de que as manifestações da oposição burguesa coincidiram com o aniversário do AI-5, que foi decretado em 13/12/1968 e abriu o período mais duro da ditadura), o “Fora Cunha!” e “abaixo o ajuste fiscal” (como se o ajuste fiscal não fosse peça central da gestão Dilma Roussef!). Também vazaram informes de que o PT está cobrando de Dilma um “giro à esquerda” em seu governo, caso sobreviva ao impeachment. Toda essa maquiagem de esquerda e o uso de aparatos dos movimentos sociais controlados pelo PT, como CUT e UNE-PcdoB (aos quais lamentavelmente se somaram o MST, MTST e setores do PSOL), deve fazer com que as manifestações governistas do dia 16/12 sejam maiores do que as da oposição burguesa. Nesse terreno da ruas, pelo menos, o PT segue em vantagem.

A verdadeira votação
Entrando no período de fim de ano, a disputa não deverá se desdobrar em novos atos de rua e provavelmente voltará para os corredores palacianos. Enquanto o balcão de negócios de compra e venda de votos e cargos come solto, fica em segundo plano o principal: no mesmo dia em que foi anunciada a abertura do processo de impeachment, em 02/12, o Congresso aprovou a autorização para o aumento do déficit do governo, viabilizando o orçamento de 2016 e o “ajuste fiscal”. Já em fins de novembro, a bancada governista tinha conseguido destravar a chamada “pauta bomba” no Congresso, mantendo o veto da Presidência a vários itens que iriam aumentar gastos do governo e prejudicar o “ajuste fiscal”. O mais bizarro nisso tudo é que a aprovação do “ajuste fiscal” foi comemorada por alguns setores como uma demonstração de que o governo do PT recompôs a sua base de apoio no Congresso e de que portanto será capaz de impedir o impeachment.
Desde quando o “ajuste fiscal” deve ser comemorado??????????????? “Ajuste fiscal” é o nome que se dá para o corte de gastos na saúde, educação, transporte, moradia, etc., e o desvio desses gastos para o pagamento da dívida pública, uma dívida fraudulenta, que consome quase metade do orçamento federal, e não pára de aumentar. Por isso usamos “ajuste” entre aspas, porque se trata de um imenso desajuste das contas públicas em prol do capital financeiro e contra os trabalhadores.
As bolsas de valores subiram e o dólar caiu no dia do anúncio do “ajuste fiscal”, que foi também o mesmo dia do anúncio do impeachment. Cada um entenda como quiser: o mercado se mostrou contente por conta da possibilidade da saída de Dilma, da aprovação do “ajuste fiscal” ou ambas as anteriores? Tudo é possível, pois para a burguesia, tanto faz se ficam Dilma, Cunha ou Aécio no poder, o que interessa é que o Estado consiga arrancar cada vez mais dinheiro dos trabalhadores para desviar para os bancos, empreiteiras, latifúndios, etc. O programa da “austeridade” (entre aspas, porque na verdade se trata de imensa prodigalidade em favor dos banqueiros e grandes empresas) é o único programa de governo aceitável para o capitalismo em crise, e será imposto em qualquer país e por qualquer partido que ocupe o governo.
No final das contas, o que vai decidir quem fica ou sai do cargo é a avaliação da burguesia a respeito da capacidade de Dilma-PT de aplicar o “ajuste fiscal”. Essa é a única votação que interessa. Os congressistas que vão decidir sobre o impeachment não vão atender ao apelo das suas consciências, nem ao programa dos seus partidos, nem muito menos aos interesses dos eleitores, mas à votação que será feita nos próximos dias na FEBRABAN, CNI, CNA e outras entidades patronais. Em condições normais de temperatura e pressão, ou seja, excetuando-se um agravamento da crise econômica (que não está nem um pouco descartada), a burguesia deve permanecer com o governo do PT, em lugar de apostar na aventura duvidosa do impeachment. Mais importante do que tudo isso, o que nos interessa é qual deve ser a posição dos trabalhadores.

Os argumentos do PT
Como dissemos, o PT aposta na mobilização das entidades dos movimentos sociais sob seu controle para defender o mandato de Dilma, com o discurso de que o “impeachment é golpe”, é preciso “defender a democracia”, a “direita” é pior, etc. Passemos em revista alguns desses argumentos. Em primeiro lugar, impeachment não é golpe. Um golpe acontece quando a classe dominante usa a força, a violência física do aparato repressivo do Estado, para esmagar algum projeto ou ascenso popular e operário que ameace seus interesses. Não é o caso do Brasil hoje. Não há projeto popular ou operário em andamento no país. O que há é uma disputa pela gestão do Estado e das negociatas a ele associadas por parte de grupos políticos que representam os mesmos interesses de classe, os da burguesia. O impeachment nesse contexto seria a mera remoção administrativa de um gestor tornado inconveniente ou inoperante. E de resto, é um mecanismo perfeitamente legal no interior da democracia burguesa.
Se há divergências no interior da burguesia em relação a qual partido melhor gerencia seus interesses, é porque a crise capitalista em andamento no país (que se antecipou à nova recorrência da crise mundial que se avizinha) estreitou as margens que antes permitiam uma acomodação mais tranquila para todos os diversos setores. Essa disputa surda no interior da classe dominante provoca uma disputa aberta entre seus representantes políticos, os partidos do sistema, como PT, PSDB e PMDB, para seguir no leme do navio. Uma disputa superestrutural, que não afeta a rota já traçada e que será seguida por qualquer um dos prepostos colocados na condução do Estado pela burguesia: a rota da “austeridade”.
Repetimos, portanto, não há golpe nenhum em andamento. Se se pode falar de golpe, ele já foi dado pelo próprio PT, quando usurpou as esperanças e o ideário da esquerda e os fez naufragar. Se há um crescimento das ideias da direita, o maior responsável por ele é o próprio PT, que durante os anos de “vacas gordas” da era Lula criou o mito da “nova classe média”, estimulou a “cidadania do crédito”, surfou na onda do consumismo, do individualismo, da meritocracia. Agora, na época de “vacas magras”, o PT colhe o ressentimento das camadas sociais que se viram traídas em seus sonhos de ascensão material. É nesse ambiente que vicejam as ideias da direita e germes deletérios como Bolsonaro e outros dessa laia.
Em artigos anteriores publicados ao longo do ano analisamos exaustivamente a transformação do PT em partido da burguesia e o estrago em termos ideológicos que isso causou na consciência da classe trabalhadora brasileira, portanto, não nos deteremos aqui sobre esse tópico (ver: O PT colhe o que plantou, as ervas daninhas do conservadorismo, e deve ser extirpado junto com elas - http://politicapqp.blogspot.com.br/2015/11/o-pt-colhe-o-que-plantou-as-ervas.html, Nem dia 13, nem dia 15: todos os dias, na luta contra o capitalismo, o Estado e a opressão! - http://politicapqp.blogspot.com.br/2015/11/nem-dia-13-nem-dia-15-todos-os-dias-na.html, A trajetória do PT, da negação do socialismo ao naufrágio do 5º Congresso - http://politicapqp.blogspot.com.br/2015/11/a-trajetoria-do-pt-da-negacao-do.html, A questão não é apenas ser contra o PT e contra a oposição (PSDB, PMDB, Veja, etc.), mas ser a favor do que? - http://politicapqp.blogspot.com.br/2015/11/a-questao-nao-e-apenas-ser-contra-o-pt.html).

A confusão em torno de “direita” e “esquerda”
Para fazer frente às ideias da direita, a última coisa a se fazer seria defender o PT. A rigor, “direita” significa manutenção da ordem social, ou seja, do capitalismo, portanto o PT é parte da direita. É preciso denunciar o PT pelo crime de haver desacreditado a ideia de um partido de trabalhadores, os métodos de luta da classe, seus organismos, sindicatos e movimentos sociais, perante a própria classe que deveriam representar. Hoje os trabalhadores vêem esses organismos como meros trampolins para oportunistas que querem se eleger e roubar. É urgente romper com os governistas em todas as frentes dos movimentos sociais e construir uma nova identidade da esquerda.
“Esquerda” significa transformação da ordem social, portanto fim do capitalismo, do Estado e de todas as instituições. Chega a ser patético que o PT defenda o mandato de Dilma em nome da “democracia”, porque foi a presidente eleita nas urnas. Se for assim, temos que defender também os mandatos de Alckmin, Beto Richa, Cunha, etc., todos igualmente eleitos. A esquerda sempre defendeu a revogabilidade de mandatos, fim dos privilégios e altos salários, etc., em direção ao fim da democracia burguesa e do Estado como os conhecemos. Defendemos a democracia operária, um regime qualitativamente superior de liberdade e participação.
Se por conta do impeachment houvesse risco de uma mudança qualitativa na escala da repressão e do autoritarismo estatal, um golpe de verdade, com uso das forças armadas, invasão imperialista, etc., seria dever do movimento dos trabalhadores defender qualquer governo, mesmo que fosse um governo burguês como o do PT. Não é esse o caso, repetimos, do atual processo de impeachment, porque o governo que suceder ao PT vai usar os mesmos instrumentos que a gestão Dilma já tem usado sistematicamente contra os trabalhadores.
A atual democracia burguesa, sob comando do PT, já pratica o genocídio dos indígenas, quilombolas, seringueiros, ribeirinhos e sem terra pelo latifúndio; o genocídio da juventude negra nas periferias; a corrupção, abuso de poder, tortura e violência policial desenfreada; repressão aos movimentos sociais, greves, manifestações e ocupações; prisões, demissões e perseguições a militantes e ativistas. Quando essas tarefas da repressão não são executadas diretamente e deliberadamente pelo governo federal do PT, o são com a sua conivência e cumplicidade pelos governos estaduais e municipais, o legislativo e o judiciário.
Repressão, tortura, genocídio, essa é a verdadeira face da “democracia” que o PT aplica e defende. Essa “democracia” não corre risco nenhum com o impeachment, nem vai sofrer qualquer alteração qualitativa. Por essas e outras razões reafirmamos que o PT faz parte da direita. A esquerda já foi abandonada pelo PT há décadas, quando o partido embarcou na ideia de gerir o Estado. O partido rompeu há décadas o seu vínculo com a classe trabalhadora e passou para o outro lado da trincheira, hoje é um instrumento a serviço dos patrões. O que se faz urgente é reconstruir um outro projeto, que não tenha como método prioritário ocupar cargos no Estado e como estratégia “reformar” o capitalismo. Esse foi o projeto do PT, que já naufragou e tem que ser substituído por novas referências, insistimos nisso.
Uma nova geração de lutadores está se colocando em movimento contra as consequências da crise capitalista, em greves, manifestações, ocupações, reinventando e renovando os métodos de luta. Desde a greve dos garis do Rio até as ocupações de escolas em São Paulo, um sopro de renovação e criatividade tem percorrido os movimentos sociais, às vezes passando por cima dos burocratas sindicais, estudantis, ONGs e partidos oportunistas. Ação direta, horizontalidade, organização de base, disputa de ideias nas redes sociais, são as armas dos novos movimentos, que estão deixando as organizações da esquerda tradicional para trás. É sobre essa base que devemos construir novas referências e projetos para a esquerda.

As insuficiências da oposição de esquerda
Infelizmente, o histórico da oposição de esquerda ao PT é desastroso no que se refere à tarefa de construir uma alternativa política e ideológica para os trabalhadores. Os partidos legalizados, PSTU, PSOL, PCB, PCO e a plêiade de organizações menores, todos juntos somados, não são hoje um ator relevante na luta de classes. Estão na 2ª divisão, ou seja, não estão na disputa de alternativas para a sociedade, em que prevalecem as os partidos burgueses, o PT as burocracias sindicais, a mídia, as igrejas evangélicas e até o crime organizado. Esses são os jogadores que estão de fato na disputa. A oposição de esquerda ao PT não soube construir um campo unitário de aglutinação das lutas dos trabalhadores e movimentos sociais, que pudesse apresentar uma alternativa política (muito além do meramente eleitoral) e ideológica (contra o avanço da meritocracia e outras ideias da direita).
Não souberam construir esse campo, porque estiveram voltados para a conquista de cargos no parlamento, ou de aparatos sindicais. Fazem dessas disputas um fim em si mesmo, e não um meio para supostamente avançar na organização dos trabalhadores, como está em seus discursos. Tratam de maneira separada a construção das suas organizações da construção do conjunto do movimento. Traduzindo isso para quem não está no dia a dia da militância: os partidos e organizações estão mais preocupados primeiro em convencer os trabalhadores, ativistas e simpatizantes das causas da esquerda de que o seu partido ou organização é o único verdadeiro e “revolucionário” (comportando-se como uma igreja que quer fazer os descrentes aceitarem Jesus), do que em convencê-los em primeiro lugar a estar na luta, colocar-se em movimento, participar das greves, das manifestações, dos debates. Ao agir dessa forma, os partidos e organizações da esquerda mais afastam os possíveis lutadores, mais fragmentam e enfraquecem a classe do que ajudam na superação da crise de alternativas.
As organizações de esquerda, ao transformar os meios em fins, a tática em estratégia, o imediato em definitivo, fazendo da necessidade virtude, perderam as referências de classe, de um projeto independente e de ruptura da ordem capitalista protagonizado pela classe trabalhadora. A oposição de esquerda ao PT está perdida nas disputas mesquinhas por cargos no parlamento e no aparato sindical, e não sabe que resposta apresentar para a situação política atual. Apresentam posições contraditórias e equivocadas.

Atirando para todos os lados
O PCO e uma parte do PSOL tomaram a posição de defender o governo do PT, acusando de “golpistas”, coniventes ou abstencionistas todos os que se recusam a se alinhar com Dilma. Essa posição vem como um alívio providencial para quem nunca teve a preocupação de construir um projeto anticapitalista próprio, enraizado na base da classe trabalhadora e dos movimentos sociais, e agora pode preservar suas credenciais de “esquerda” combatendo o espantalho da “direita golpista” numa confortável posição à sombra dos aparatos governistas e pelegos da CUT, UNE e MST. Sem apontar nenhum horizonte estratégico de ruptura, essa posição equivale a pura e simplesmente defender o governo.
E Defender o governo do PT, depois de todos esses anos, é como reconhecer a impotência e a nulidade de qualquer projeto de transformação social, revolução e luta de classes. Isso não é unidade de ação contra um inimigo de classe, é capitulação total a esse mesmo inimigo de classe com maquiagem vermelha. É preferir o lobo em pele de cordeiro ao lobo sem disfarce. Ou resumindo, é o mesmo que renunciar a qualquer papel relevante ou intervenção própria na luta de classes. Para defender o governo, não é preciso se preocupar em mobilizar os trabalhadores: os mais de 30 mil burocratas petistas que vivem de cargos no governo vão dar um jeito de fazer isso desesperadamente para defender seus cabides de emprego, as verbas da corrupção e negociatas de todos os tipos das quais sobrevivem.
A esquerda que se resigna ao lamentável papel de fazer unidade com o governo deveria enfiar a viola no saco e ir pra casa, pois atestou com isso a sua completa inutilidade histórica. Lutar contra a direita (a outra direita, que existe para além do PT) é um dever sim, mas é preciso fazer isso fora do campo governista, com independência de classe e um projeto estratégico.
Enquanto uma parte do PSOL adota uma posição contra o impeachment e de defesa do governo, outra parte embarca na defesa de eleições gerais, admitindo implicitamente o impeachment. Por outro lado, o PSTU não está dividido como o PSOL (o que aliás é impossível, já que o partido é centralizado burocraticamente pela sua cúpula dirigente), mas está com posições esquizofrênicas no movimento. A CSP-Conlutas, colateral sindical do partido, através do Espaço Unidade de Ação, está chamando à composição de uma 3ª via dos trabalhadores, em contraposição ao PT e ao bloco de oposição burguesa (a rigor, o correto seria uma 2ª via, já que tanto PT quando a oposição representam o mesmo projeto e o mesmo interesse de classe), o que até seria correto se fosse feito através da base das categorias e vinculado às lutas concretas.
Enquanto no campo sindical diz uma coisa, o próprio PSTU enquanto partido com legenda eleitoral diz outra, com a linha de “Fora Dilma, Fora todos!” (nesse aspecto, o MRS é muito mais coerente, e embarca no “Fora todos!” sem qualquer pudor ou preocupação com uma “3ªvia”, errando por ação ao invés de errar por vacilação como o PSTU). Por mais que esse setor insista em que não querem fora apenas a Dilma, mas também o Cunha, Aécio, etc., essa posição acaba apenas engrossando o caldo do fora Dilma. Não está colocado hoje um movimento que possa derrubar “Todos”, a questão é justamente construí-lo com passos concretos, no dia a dia, no chão de fábrica e nas ruas.
Saltar diretamente da insatisfação popular para o “Fora todos!”, sem mediações, organizações, estruturas coletivas, formas de ação, programa, é puro oportunismo. Abstratamente, essa palavra de ordem está correta, pois tanto Dilma como Cunha, Temer, Aécio, etc., são políticos burgueses e inimigos da nossa classe. Mas a política não é uma abstração, é um cenário composto por correlações de forças sociais muito concretas e determinadas. É preciso identificar o caráter de classe das forças que estão por trás do impeachment, que também são burguesas. E mais do que isso, é preciso buscar as mediações para uma intervenção dos trabalhadores como sujeito independente no processo. Tanto a defesa do governo (PCO e parte do PSOL) como a admissão implícita do impeachment (PSTU e parte do PSOL) se dão por fora de uma perspectiva de independência de classe.

A questão é ir além do capital
Na verdade, o erro da oposição de esquerda é enxergar todo o processo a partir de um viés superestrutural, politicista, dirigista, em que a disputa se resume ao controle do aparato do Estado, seja por meio de eleições ou de um hipotético “governo dos trabalhadores” indeterminado. Não se discutem as mediações necessárias para que se construa (ou mesmo para que se eleja) um efetivo governo dos trabalhadores. Não se discute quais são os organismos, os movimentos, as frentes de luta, os passos concretos, as ideias e projetos. A consciência dos trabalhadores é menosprezada, pois do ponto de vista dessas organizações, é tudo uma questão de “direção revolucionária”, e não de uma alternativa societal totalizante. A “direção” sabe tudo e tem o programa pronto e acabado, e o papel das massas é seguí-los. Só que não. A revolução não será feita por massas conduzidas de improviso por algum agitador caído de para-quedas. Uma revolução é uma ruptura total com a ordem existente, a partir de organizações e programas construídos num amplo processo de luta.
Tanto a defesa do governo Dilma como a posição do “Fora todos!” concentram toda a discussão na ideia de que o poder político é a chave para resolver todos os problemas. Na verdade, o poder político e o Estado são estruturas derivadas do poder econômico, o poder que o capital exerce no processo de reprodução social. A lógica da mercadoria, o fetichismo do dinheiro, a alienação, a transformação dos seres humanos em coisa e das coisas em sujeitos, tudo isso se reproduz cotidianamente em cada local de trabalho. É somente aí, na base da reprodução social, onde se gera o poder do capital, que ele pode ser rompido, e não na superestrutura do Estado. Por isso é um erro grave defender o governo ou falar em “Fora Dilma, fora todos!”, ou mesmo em “eleições gerais” ou “governo dos trabalhadores”, no âmbito da superestrutura, sem deixar claro que o poder dos trabalhadores deve ser construído prioritariamente na sua organização de base, nos microcosmos da reprodução social.
Enquanto as organizações da oposição de esquerda se digladiam em torno de slogans vazios, a classe trabalhadora corre o risco de ser cooptada por alguns dos dois bandos patronais, o PT e a oposição de direita. Isso é o resultado de décadas de acomodação prática e paralisia teórica. A desorientação da esquerda tem raízes muito profundas, que estão no fato de que algumas questões fundamentais permanecem em aberto. A derrota da luta pelo socialismo no século XX e a sua degeneração em uma outra forma de exploração como a que foi vivenciada na URSS (e China, Cuba, etc.), ainda é uma questão em aberto.
O problema não é apenas o fato de que não foram encontradas respostas para essa derrota, mas que sequer são colocadas as perguntas. Essas questões fundamentais nem sequer são debatidas seriamente. Sem isso fazer esse debate, a esquerda não consegue dizer qual é o socialismo que defende e como alcançá-lo (sobre esse debate, ver os textos: Por que as revoluções não levaram à sociedade socialista? Um debate com Sérgio Lessa - http://politicapqp.blogspot.com.br/2015/11/por-que-as-revolucoes-nao-levaram.html, e Os 25 anos da queda do Muro de Berlim e o debate para reconstrução da alternativa socialista - http://politicapqp.blogspot.com.br/2015/11/os-25-anos-da-queda-do-muro-de-berlim-e.html). A oposição de esquerda não consegue elaborar um programa e uma estratégia convincentes. E atira para todos os lados na crise atual.

Por um programa que vá além da negação
Além de denunciar o PT como um partido burguês que governa contra os trabalhadores e denunciar a oposição burguesa como mais uma armadilha oportunista; além de negar o movimento pelo impeachment e negar a defesa do governo, temos que apresentar uma alternativa pela positiva, um projeto dos trabalhadores. Tanto a esquerda que coloca contra o impeachment (PCO e parte do PSOL) como a que se coloca a favor (de maneira envergonhada, como PSTU e parte do PSOL ou escancarada, como MRS) estão na verdade tentando contornar o problema de como construir uma referência política a partir do movimento real da classe. Querem dirigir artificialmente o movimento da classe a partir da política.
Temos que partir da realidade da crise capitalista e construir os pontos de programa capazes de unificar as diversas reações e processos de enfrentamento que a classe vem desenvolvendo.
Na luta contra o desemprego, em defesa dos salários, direitos e condições de trabalho, contra a precarização: redução da jornada sem redução dos salários, até que haja emprego para todos, estatização das empresas que demitirem ou fecharem, sob controle dos trabalhadores, fim da terceirização, direitos trabalhistas para todos;
Na luta contra a inflação e a disparada do custo de vida: salário mínimo do DIEESE como piso para todas as categorias, por um gatilho que reajuste automaticamente os salários a cada aumento da inflação, abertura das planilhas de custo das empresas;
Na luta por educação, saúde, moradia, transporte e serviços públicos universais, gratuitos e de qualidade: não pagamento da dívida pública e uso desse dinheiro num programa de obras e serviços públicos sob controle dos trabalhadores, investimento maciço nos serviços públicos, com condições de trabalho e valorização dos funcionários;
Na luta contra a corrupção: cassação de mandatos, prisão e expropriação dos bens de todos os corruptos e corruptores, mandatos revogáveis para todos os cargos públicos e salário médio de um trabalhador para todos os ocupantes de cargos públicos;
Na luta por democracia: direito de greve e de manifestação, fim das perseguições, punições e demissões de militantes e ativistas, fim da polícia militar e do aparato repressivo do Estado voltado contra os trabalhadores.
Em todas essas lutas, denunciar o papel do PT como agente da burguesia, gestor dos interesses do capital, e ao mesmo tempo combater as ideologias individualistas, meritocráticas e autoritárias da direita, e defender a ruptura do capitalismo e a construção de um poder socialista dos trabalhadores baseado em suas organizações de luta. Esse programa precisa ser aperfeiçoado na prática, não como uma receita pronta ou invenção arbitrária, mas a partir do diálogo real com cada processo de luta em andamento no país. Existe farta matéria prima para a construção de um projeto e referências de luta classistas e anticapitalistas, a partir das greves, manifestações, ocupações, enfrentamentos e ações diretas que têm se multiplicado.
É hora de dar unidade e coerência a todas essas lutas. Basta romper com os vícios burocráticos, as concepções dogmáticas, a acomodação aos aparatos estatais e sindicais, os métodos aparelhistas, o oportunismo, que esterilizaram a esquerda à sombra do PT por décadas. Essa é a única forma de escapar da armadilha do “impeachment X defesa do governo” e construir uma agenda dos trabalhadores.


7.11.15

A questão não é apenas ser contra o PT e contra a oposição (PSDB, PMDB, Veja, etc.), mas ser a favor do que?




A insatisfação com o governo Dilma é cada vez maior entre os trabalhadores. As razões concretas são a alta dos preços que mais pesam para o trabalhador (alimentos, aluguéis, conta de luz, gasolina), as demissões e a ameaça de desemprego crescente, os ataques contra os direitos (PIS, seguro desemprego, pensões), a lei da terceirização (que mesmo não sendo de autoria do PT, entra no mesmo pacote porque se percebe claramente que o governo não fez nada para detê-la), o endividamento, o arrocho salarial, os serviços públicos que continuam precários. Tudo isso foi agravado pela sensação de traição das promessas da campanha eleitoral de 2014 (desde o anúncio do ministério, literalmente loteado entre os segmentos da classe patronal) e pela continuidade dos escândalos de corrupção envolvendo o PT.
Aproveitando-se disso, o movimento pelo impeachment de Dilma ressurge com força, através de manifestações marcadas para o dia 16/08. O PSDB está agora oficialmente convocando a população a se manifestar pela saída de Dilma (depois que se fechou a disputa entre os seus caciques para escolher o candidato à sucessão, na figura de Aécio). O Presidente da Câmara, Eduardo Cunha, do PMDB, está manobrando para viabilizar a votação do impeachment no Congresso. A grande imprensa está há meses em campanha permanente contra o governo, bombardeando a população apenas com as denúncias de corrupção que envolvem o PT (poupando os demais partidos) e as más notícias da situação da economia. Grupos bancados por interesses estadunidenses, como “revoltados on line”, “vem pra rua”, “movimento Brasil livre” etc., também estão convocando para o dia 16.
É certo que o volume da convocação deve diminuir bastante, depois que a FIESP, FIRJAN e a Globo emitiram notas e editoriais em favor da “governabilidade”, o que para bom entendedor significa: “a tentativa de derrubar Dilma e a luta do PT para defender seus cargos podem causar meses de confusão e instabilidade no país, que seriam ruins para os negócios. Não queremos isso agora. Portanto, vamos parar com esse movimento por enquanto, deixar o PT aplicar o ajuste, atrair o ódio dos eleitores por mais alguns anos, e trocar de governo ordenadamente em 2018.” A “confusão” que os patrões temem é o aumento da mobilização dos trabalhadores.

Nem dia 16...
Ainda que esses setores importantes da burguesia brasileira estejam dando seu recado, as manifestações devem ocorrer, e o que é pior, dessa vez, é possível que uma quantidade numericamente significativa de trabalhadores compareça a essas manifestações. Evidentemente, mesmo que se confirme uma presença considerável de trabalhadores, seria um erro participar desses atos. Os trabalhadores que estiverem presentes, dispersos e sem organização, não vão mudar o caráter do ato, que é claramente de direita. O rumo político desses atos não está em disputa, não pode ser revertido em direção à esquerda. O processo que está por trás dos atos do dia 16 não favorece os interesses da nossa classe. Trata-se de uma disputa entre dois blocos burgueses, pró-patronais e pró-capitalistas. A pior derrota dos trabalhadores seria tomar partido de algum desses blocos, ao invés de desenvolver uma política independente.
No novo governo que hipoteticamente surgiria desse movimento, a mesma situação de deterioração da economia e os ataques aos trabalhadores continuariam. Os problemas da economia não são resultado apenas da gestão do Estado pelo PT, mas de uma crise profunda do capitalismo, que em breve deve se manifestar mais uma vez com toda sua virulência em escala mundial, piorando ainda mais a situação do nosso país. Diante dessas crises, os gestores do capitalismo não têm outra escolha além de atacar os salários, direitos e condições de vida dos trabalhadores, para tentar salvar os lucros dos capitalistas. Isso está acontecendo no mundo inteiro, mesmo em países com governos ditos de “esquerda”, como a Grécia com o Syriza, que foi eleito para acabar com a austeridade, mas vai aplicá-la a ferro e fogo. É o que o PT está fazendo, e o que os seus opositores vão fazer. Não há saída para a crise, do ponto de vista dos capitalistas, a não ser atacar os trabalhadores, e do ponto de vista dos trabalhadores, a não ser uma saída anticapitalista.

...nem dia 20
Isso quer dizer, portanto, que também não se deve defender o governo do PT. No dia 20/08, os aparatos dos movimentos sociais dirigidos direta ou indiretamente pelo PT, como CUT, MST e MTST, entre outros estão também convocando manifestações em defesa da “democracia” e contra o “golpe”. Essas manifestações também podem atrair um número importante de trabalhadores, e inclusive de ativistas conscientes, preocupados com a ameaça da direita que está presente na ofensiva pelo impeachment. As bancadas do agronegócio, da repressão policial e do fundamentalismo neopentecostal, chamadas de “BBB” (boi, bala e bíblia), que formaram uma espécie de bloco no Congresso e tomaram a iniciativa política no país, representam os interesses mais reacionários e estão aprovando todos os projetos da sua pauta (terceirização, redução da maioridade penal, lei antiterrorismo). O seu avanço faz com que se sintam encorajados a ponto de querer derrubar a presidente.
Entretanto, ainda assim seria um erro reforçar as manifestações governistas. A luta contra a ameaça dessa ala da direita deve ser travada de maneira completamente independente do PT. Mesmo porque, o PT é uma outra ala dessa mesma direita. É sempre preciso insistir no significado correto das palavras. “Direita” significa defesa da ordem social existente, ou seja, o capitalismo, e “esquerda” significa mudança da ordem social, portanto fim do capitalismo. É por isso que nem o Syriza na Grécia, nem o PT no Brasil são de esquerda. Ambos tentam se acomodar às margens de manobra disponíveis para a gestão do capitalismo. Como essas margens estão se estreitando devido à crise estrutural do capital, o seu caráter de defesa do capitalismo, do lucro, dos interesses da classe dominante, da exploração e da opressão, acaba vindo à tona.
O governo do PT segue sendo um governo burguês, oposto aos trabalhadores, que busca de todas as formas atender os interesses da classe dominante. Quanto mais se deteriora a situação da economia e os empresários vêem seus lucros ameaçados, mais o PT se apressa a atender seus interesses, encaminhando medidas como o ajuste fiscal, cortes de verbas, incentivos para setores específicos, a lei que permite reduzir salários, etc. Ao mesmo tempo, os aparatos dirigidos pelo PT impedem que as lutas em defesa dos salários, direitos e condições de vida dos trabalhadores se desenvolvam. As empresas demitem, rebaixam salários, terceirizam, desrespeitam os direitos trabalhistas, sem que os sindicatos encaminhem as lutas. Não há mais organização nos locais de trabalho, não há mais democracia nas assembleias, os sindicatos e demais organizações estão burocratizados.
De maneira oportunista, o PT usa a ameaça da “direita” e do “golpe” para blindar Dilma, e impedir que se desenvolvam críticas ao governo. Enquanto a classe trabalhadora se apresenta indecisa e dividida entre os atos do dia 16 e do dia 20, o PT já escolheu de que lado vai ficar. Ao invés de romper com a burguesia e colocar as organizações sob sua direção a serviço da luta e da mobilização, o PT aprofundou sua aliança com o grande capital nacional, através do loteamento do ministério, da política econômica de Joaquim Levy, do ajuste fiscal e outras medidas. Essa opção não é recente, ela já estava traçada desde o momento em que o partido optou por administrar o capitalismo brasileiro.
Na verdade, desde muito antes de chegar ao governo com Lula em 2003, o PT já tinha se transformado no seu oposto. Já não era mais um partido de trabalhadores, um partido de classe, um partido de luta de classes, mas um partido eleitoral. A CUT já não praticava mais o sindicalismo combativo, mas um sindicalismo de conciliação de classes, um sindicalismo “cidadão”, sindicalismo “de resultado” (slogan da concorrente, a Força Sindical), que priorizava as negociações, as câmaras setoriais, etc. Desde aquele momento, o PT se afastou da sua antiga base social, se afastou da sua história, renegou sua trajetória de luta, desfez o acúmulo de politização. É tarde demais para que o partido queira se apresentar como representante da esquerda contra a ofensiva da direita. A direita “golpista” é uma cobra que o próprio PT agasalhou no seu peito. Agora, no momento em que o PT mais precisa de uma base social para enfrentar o ataque da bancada “BBB”, ela não está mais presente.

Construir nas lutas uma alternativa
Entretanto, a dramaticidade da situação social reside em que neste momento a classe trabalhadora também precisa de uma nova referência. Dissemos que seria um erro estar nas manifestações do dia 16 contra o PT, mas também é um erro estar no dia 20 a favor do PT. O que fazer então? Há alguns que dizem que não tomar partido de um bloco ou de outro é “abstencionismo” ou ficar “em cima do muro”, ou “perder o bonde da história”, ou ainda, “ser conivente com o golpe”, etc. Entretanto, insistimos em que é necessário encontrar uma saída classista para a situação, e não capitular a nenhum dos dois blocos burgueses em disputa.
A única saída está nas lutas concretas da classe trabalhadora, contra a crise capitalista e todos os seus sintomas. É preciso combater os ajustes aplicados pelo PT, e é preciso derrubar a pauta reacionária da bancada BBB (proibição dos professores falarem sobre política, estatuto da família, transferência da demarcação das terras indígenas e quilombolas para o Congresso – a lista de abominações parece não ter fim). Quando dissemos que é preciso encontrar uma saída classista, isso não é uma pura declaração de princípios, de quem não quer se comprometer ou está se “abstendo” da luta de classes. Muito pelo contrário, significa um compromisso muito concreto com as lutas e as demandas dos trabalhadores. Existe uma base material muito concreta para uma luta independente dos dois blocos burgueses que disputam os rumos do país.
A classe trabalhadora brasileira não está parada simplesmente assistindo aos ataques que lhe são disparados de todos os lados. O número de lutas e greves no país tem aumentado de maneira sustentada. Entre 2004 e 2007 o DIEESE registra uma média de 300 greves por ano. A partir de 2008 esse número começa a aumentar. Tivemos 518 greves em 2009, 446 greves em 2010, 554 em 2011 e 873 em 2012. A partir de 2013, não é mais possível encontrar dados sobre o número de greves no DIEESE (?). As principais centrais sindicais também não informam esse número. 2013 foi o ano das chamadas jornadas de junho, em que a insatisfação com a situação do país motivou protestos de todas as camadas sociais, e inclusive, é claro, muitas greves. Em 2014 tivemos a emblemática greve dos garis no Rio e os protestos contra a Copa. Não há razões para acreditar que as lutas tenham diminuído no país.
Nos próximos meses, entre setembro e outubro, temos as datas bases de importantes categorias nacionais, como bancários, metalúrgicos, funcionários dos Correios e petroleiros. Isso sem falar na greve dos funcionários das universidades federais e outros segmentos do funcionalismo, em andamento há várias semanas. Essas campanhas vão acontecer em um país em situação de crise econômica e política, com uma grave deterioração nas condições de vida dos trabalhadores, e muitos ataques em andamento (terceirização, lei de redução dos salários, demissões). A luta contra a carestia e o arrocho salarial, contra as demissões e contra a terceirização diz respeito muito diretamente a cada uma dessas categorias, e também aos demais trabalhadores. O papel da esquerda é ter uma intervenção política nessas campanhas, fazendo com que as diversas categorias atuem da forma mais unitária possível, em torno de bandeiras de luta que dizem respeito aos interesses do conjunto da classe.
O ponto de partida dessa intervenção é lutar para unificar as campanhas, enfrentando as barreiras impostas pela burocracias governistas e pelegas no controle dos aparatos sindicais. É tarefa da esquerda atuar ofensivamente na base das categorias, defendendo a unificação das lutas. Por um calendário conjunto de mobilização! Datas conjuntas para uma greve nacional das categorias! Comando de greve eleito nas assembleias de base e com mandatos revogáveis! Piquetes e manifestações unificadas!
A partir dessas campanhas, temos que iniciar um movimento para impor a pauta dos trabalhadores no debate político do país.
- Contra a inflação, reposição das perdas salariais, salário mínimo do DIEESE como piso!
- Contra as demissões, redução de jornada sem redução de salário, até que haja emprego para todos!
- Estatização das empresas que demitirem ou fecharem, sob controle dos trabalhadores!
- Estatização do sistema financeiro sob controle dos trabalhadores!
- Não pagamento da dívida pública e uso desse dinheiro num programa de obras e serviços públicos sob controle dos trabalhadores!
Essas demandas evidentemente se enfrentarão com a lógica do lucro capitalista e o Estado a seu serviço, com todas as suas instituições e partidos, mídia, etc. Por isso, é preciso defender também a luta por uma ruptura do capitalismo, por um governo dos trabalhadores baseado em suas organizações de luta.

Daniel M. Delfino

Agosto 2015

O mundo fantástico das seitas autoproclamatórias



A luta de classes apresenta inúmeros tipos de dificuldades. Uma das principais é o fato de que “a ideologia predominante numa sociedade é sempre a ideologia da classe dominante” (Marx e Engels). Isso significa que os trabalhadores vêem o mundo não como ele é, mas da forma como a classe dominante o define. Os trabalhadores acham que o mundo sempre foi e sempre vai ser tal como é hoje, com a divisão entre ricos e pobres, a presença do Estado, do trabalho assalariado, da propriedade privada dos meios de produção, da família patriarcal, etc. E mais, acreditam que o homem é individualista por natureza, que se trabalhar duro é possível “chegar lá” e “virar patrão”, etc. E para completar, acreditam que a História é feita por “heróis”, “grandes homens” e líderes, não pela ação coletiva e organizada das classes sociais em luta.
Esse conjunto de ideias constitui um obstáculo gigantesco para a luta contra o capitalismo e a construção de uma sociedade emancipada. Tais ideias somente podem ser superadas por meio da experiência prática, por meio de processos de luta que demonstrem a necessidade, a possibilidade e a viabilidade das ações coletivas. A experiência prática proporciona os conhecimentos necessários para a luta política, a partir daquelas experiências iniciais que acontecem em uma greve ou manifestação, até que se possa gradativamente chegar à luta pelo poder social e pela revoluções.
Na falta ou insuficiência de tais experiências práticas, o obstáculo da ideologia dominante se torna tão grande que muitas organizações preferem não enfrentá-lo. Ao invés de encarar a luta de classes tal como ela é, com todas as suas dificuldades, tais organizações preferem criar um mundo fictício, onde se sentem à vontade, e conseguem desempenhar para si mesmas o papel teatral de “revolucionários”. Essas organizações se convertem em seitas, cujos integrantes passam a ter a obsessão fanática de proclamar aos quatro ventos a “verdade absoluta” da qual são portadores.

Identificando uma seita
No mundo fictício das seitas, a luta a ser travada não é contra a ideologia dominante, a burguesia, o Estado, seus aparelhos ideológicos, a burocracia sindical, igrejas, meios de comunicação, etc. A luta é desviada contra as outras organizações, que passam a ser tratadas como inimigos. E contra os inimigos vale tudo: a calúnia, a difamação, a intriga, a falsificação, todos os tipos de golpes e manobras, para que a seita possa aparecer como a única portadora da verdade e da salvação.
O raciocínio das seitas é mais ou menos o seguinte: “a minha organização é a única organização revolucionária, logo, a minha organização tem que estar na direção de todas as lutas dos trabalhadores, logo, todas as outras organizações que participam das lutas são inimigos, logo, não só é aceitável como é necessário fazer qualquer coisa para derrotar, desmoralizar e destruir essas organizações”. O objetivo não é fazer um debate construtivo em que todas as organizações possam apresentar suas posições, e o movimento decida qual a mais correta. O objetivo é destruir qualquer concorrente que possa representar uma ameaça para as posições da seita. Não importa se uma determinada proposta é a mais correta para o movimento, importa apenas se ela provém ou não da seita. A disputa pelo controle, pela maioria, pela direção, substitui o debate de alternativas para o movimento. A rivalidade, a intriga, a mesquinharia substitui a política.
Seguindo esse critério, onde quer que exista uma outra organização atuando, ela será tratada como inimigo. Qualquer que seja o tipo de organização, um outro partido da esquerda, um coletivo estudantil, uma chapa sindical, um agrupamento independente, um movimento cultural, um grupo de estudo, etc., em qualquer caso essa organização será tratada como inimiga. Qualquer outro grupo organizado, simplesmente pelo fato de ser de alguma forma minimamente organizado, inevitavelmente representa um projeto de direção política. E isso é algo que a seita não pode aceitar, e precisa neutralizar de alguma maneira, seja cooptando uma parte dos seus militantes, seja de uma forma ou de outra buscando o fim da outra organização tal como ela era.
Toda organização tem seus limites, ou é burocrática, ou reformista, ou centrista, ou “sindicaleira”, ou sectária, ou propagandista, ou movimentista, ou mesmo pode ser revolucionária, mas com políticas equivocadas, e no entanto ser capaz de trabalhar em unidade, etc. Diante dessa diversidade de situações, que tem a ver com o estágio histórico da luta de classes, e que exigem em cada caso respostas diferenciadas, a atitude da seita é sempre uma só: qualquer outra organização é um inimigo por definição, e seu objetivo é sempre destruí-lo. Também não importa se a desaparição, o esvaziamento, o racha de um determinado partido da esquerda, coletivo estudantil, chapa sindical, agrupamento independente, movimento cultural, grupo de estudo, etc., vai enfraquecer a luta real dos trabalhadores. Não importa se militantes vão romper com a luta e voltar para casa, se relações e amizades vão ser destruídas, se um processo de organização independente vai ser abortado, pois vale tudo para que os ditos “revolucionários” assumam o controle. A seita não se preocupa com o desenvolvimento geral da luta, seu único objetivo, repetimos, é “dirigir” os processos em que participa.
Todo militante, ativista ou trabalhador certamente se lembra de quando participou de uma assembleia, plenária, chapa, movimento, etc., pela primeira vez, e se deparou com o espetáculo bizarro de “organizações revolucionárias” se digladiando umas contra as outras, uma fala depois da outra, interminavelmente, até esgotar a paciência das pessoas “normais”, que evidentemente se retiram de algo que aparentemente não tem nada a ver com a sua vida. Esse cenário é o sintoma dos vícios sectários que grassam entre as organizações.

O equívoco fundamental das concepções sectárias
O delírio das seitas autoproclamatórias, como qualquer outro fenômeno social, têm uma explicação histórica e política. Essas seitas partem da caracterização de que “a crise da humanidade é a crise da sua direção revolucionária”, frase escrita por Trotsky há quase 80 anos. Incapazes de pensar como o próprio Trotsky e ignorando que o mundo mudou muito desde que o “Programa de Transição” foi escrito em 1938, essas seitas imaginam estar sendo fiéis ao legado do grande revolucionário russo, adotando seu texto ao pé da letra, como se fosse algum tipo de dogma religioso, numa atitude exatamente oposta ao marxismo.
Se a crise da humanidade é a crise da sua direção revolucionária, a solução é muito simples: a seita proclama a si mesma como a nova direção revolucionária da humanidade. E se a seita é a direção revolucionária, todas as outras organizações que não seguem a cartilha dessa seita estão na verdade atrapalhando o processo. E temos então o cenário descrito acima. O problema é que a crise da humanidade não é mais apenas de “direção revolucionária”, mas algo muito mais profundo e de outra natureza. Quando Trotsky formulou essa caracterização, ela ainda fazia um certo sentido, daí o seu esforço para construir uma IV Internacional revolucionária, pouco antes de ser assassinado.
O problema hoje, no século XXI, não é apenas de “direção revolucionária”, mas de falta de alternativas. Há uma crise de alternativas socialistas, uma ausência de projetos de sociedade, de modo que os trabalhadores não acreditam que seja possível mudar o mundo e construir outra sociedade. Sem isso, não há como sequer se falar em um movimento revolucionário. E para que haja uma direção revolucionária, é preciso que haja um movimento revolucionário para dirigir. O movimento revolucionário, por sua vez, somente se constrói mediante o esforço combinado de incontáveis lutas dos trabalhadores, incontáveis experiências práticas (que produzam um avanço ideológico e de consciência, como dissemos no início), contribuições de incontáveis organizações e militantes. Não se constrói por um ato de vontade (ou pior, por autoproclamação de alguma seita) de qualquer organização, nem da noite para o dia.
Para que o movimento dos trabalhadores se torne revolucionário, o que certamente requer a intervenção de organizações revolucionárias (no sentido de debate das melhores propostas para o movimento, e não disputa desleal e rebaixada entre seitas pela “direção”), é preciso antes que exista um movimento, classista, independente, combativo, unitário. É preciso que os organismos de luta dos trabalhadores se fortaleçam e se libertem do controle de burocracias sindicais, partidos pró-capitalistas, oportunistas, etc. É preciso também que haja uma metodologia de funcionamento que assegure a participação e o aprendizado dos trabalhadores. E sobretudo, é preciso que as organizações revolucionárias intervenham nas lutas, concretamente, a partir de cada local de trabalho, estudo, moradia, a partir de cada greve, manifestação, debate, etc., sendo reconhecidas pelos trabalhadores, estando ombro a ombro, pondo a mão na massa.
Não há como separar a construção da direção revolucionária da construção do movimento revolucionário que essa direção irá um dia dirigir. A direção somente terá legitimidade enquanto direção se contribuir decisivamente para a construção do movimento que irá dirigir. E contribuir para a construção do movimento não significa nem se engalfinhar com as outras organizações de maneira sectária em debates estéreis, nem abrir mão de lutar pelas propostas mais corretas. Significa ter como critério precisamente a construção do conjunto do movimento, e não o predomínio das “minhas” propostas. Com esse critério, a luta dos trabalhadores deixaria de ser aquele espetáculo bizarro que presenciamos nas assembleias, plenárias, chapas, movimentos, etc., passando a ser algo que o trabalhador reconheceria como seu.
Somente assim é possível libertar os trabalhadores da influência da ideologia burguesa, do Estado, da burocracia sindical, da igreja, etc., os nossos verdadeiros adversários. Infelizmente, até que as concepções que buscam o avanço geral da luta prevaleçam, para seguir desenvolvendo a luta no dia a dia, precisaremos contar ainda com uma boa dose adicional de paciência, sangue frio e sabedoria para lidar com os ataques, as conspirações e os delírios da seitas.

Daniel M. Delfino
Julho 2015


Era uma vez o futebol brasileiro - Reflexões sobre o futebol na era da sua mercantilização - parte 2


Há pouco mais de 13 anos, quando o Brasil ganhou a Copa do Mundo de 2002, escrevemos um rápido texto explicando essa vitória, em termos sociais, econômicos e políticos, com o título justamente de “Por que o Brasil ganhou a Copa do Mundo?” (ver http://politicapqp.blogspot.com.br/2007/04/porque-o-brasil-ganhou-copa-copa-de_17.html) Agora, transcorrido 1 ano da derrota histórica da seleção brasileira na Copa de 2014 (e tendo a seleção brasileira já se tornado também adicionalmente “freguesa” do Paraguai, com uma segunda eliminação consecutiva na Copa América perdendo para o selecionado guarani), cabe resgatar aquele texto de anos atrás e partir do que ele expõe, para em seguida explicar porque os motivos que levaram o Brasil a ganhar sua última Copa já não se aplicam mais. O texto de 2002 é muito curto e vale à pena transcrevê-lo na íntegra:
“A copa de 2002 foi um produto típico da globalização. A globalização significou de certo modo uma brasilianização do mundo. Não é apenas o Brasil que se globaliza, mas o mundo que se brasilianiza. Todo processo histórico-social é uma via de mão dupla, ou contradição dialética, como diziam os antigos.
O Brasil é o país da desigualdade, da corrupção e do jeitinho. A desigualdade, a corrupção e a malandragem (ou desfaçatez) se tornaram as marcas do mundo globalizado. O planeta como um todo tornou-se uma versão ampliada do Brasil: ilhas de riqueza cercadas por bolsões de miséria. Os dirigentes e as instituições internacionais agora são vistos como corruptos irrecuperáveis e especuladores insaciáveis, atuando com o beneplácito da mídia global deslumbrada.
Dentre estas instituições, a que mais se brasilianizou foi a FIFA, resultado de uma gestão de 24 anos nas mãos do brasileiro João Havelange. Como qualquer político brasileiro, coronelista e corrupto, Havelange distribuiu benesses e favores aos aliados para ser reeleito continuamente, comprando os votos das federações, prática disseminada alhures...
O resultado disso foi uma Copa do Mundo inflada, com 32 participantes, e dividida em dois países. Uma Copa do Mundo realizada na Ásia inevitavelmente se defrontaria com o problema das monções, a estação das chuvas, que coincide com os meses tradicionalmente reservados para a disputa do Mundial. Como é impossível adiar as monções, a alternativa é mudar a data da Copa. Pois é preciso globalizar o futebol a qualquer custo, levando a disputa para a Ásia e agradando os caciques locais.
A Copa do Mundo foi antecipada em quinze dias. Com isso, ficou muito próxima do fim da temporada européia. O intervalo entre o fim das principais ligas nacionais européias e da Copa dos Campeões e o início da Copa do Mundo ficou muito pequeno, insuficiente para que os jogadores pudessem se recuperar fisicamente do desgaste. Jogadores como Figo e Zidane chegaram à Copa “bichados”. Em cada seleção do Mundial havia pelo menos um jogador “estourado”, que foi para a disputa cercado de dúvidas sobre suas reais condições físicas. Inclusive no Brasil, como era o caso de Ronaldo e Rivaldo.
Nestas condições, entretanto, o Brasil jogou em casa. Nossos jogadores tem o know-how da improvisação, aprendido na pátria-mãe. Aqui os times são montados às pressas, os jogadores se entrosam no decorrer do campeonato, os esquemas são improvisados, a preparação é “meia-boca”, os técnicos são chamados no meio da competição como salvadores da pátria (caso de Felipão na Seleção). O “empurrar com a barriga” faz parte do caráter do povo brasileiro, não só no futebol. É a receita da sobrevivência num país de soluções provisórias e carências perpétuas. Nosso futebol espelha a precariedade de nossa civilização. O que é o drible senão a habilidade de quem muito apanha de escapar da pancada?
Ora, uma Copa tão desorganizada quanto os campeonatos brasileiros (vide o problema da venda de ingressos) só poderia ser ganha pela seleção brasileira. O estilo brasileiro passou a predominar também fora de campo, o que é extremamente negativo. Ao invés de nos melhorarmos, pioramos os outros! Mas como os jogadores e técnicos brasileiros estão acostumados com esse estilo de seus dirigentes, saíram com vantagem na disputa! Times que fizeram tudo certo em sua preparação, como Argentina e França, fracassaram miseravelmente; o Brasil, que fez tudo errado, ganhou!”
Se em 2002 o “know-how da improvisação” e o método de “empurrar com a barriga” foram suficientes para vencer times que “fizeram tudo certo em sua preparação”, em 2014 isso não mais aconteceu. O procedimento de “empurrar com a barriga” e de convocar um “salvador da pátria” de última hora (caracteristicamente, apelou-se para o mesmo Felipão de 2002) resultou em um desastre completo. Uma das hipóteses para esse fracasso poderia ser uma mudança nas determinações sociais, econômicas e políticas mencionadas no texto de 2002. Façamos então uma rápida passagem pelo que aconteceu no cenário da dita “globalização” desde aquele momento.
No ano daquela Copa, o mundo acabava de começar a sair da crise econômica que teve como estopim a queda das ações das empresas de tecnologia da NASDAQ, as famosas empresas “ponto com”, sintoma de uma crise estrutural mais profunda do capitalismo, que momentaneamente se contornava mais uma vez. Estava começando um novo ciclo de crescimento alavancado por um conjunto de países do segundo escalão da divisão mundial do trabalho, como Brasil, Rússia, Índia e especialmente China, que está lutando para passar ao primeiro escalão. Esse ciclo foi impulsionado pela intensificação do comércio internacional, com América Latina, Oriente Médio (e Rússia) fornecendo matérias primas, minérios, grãos e petróleo, a China fazendo a montagem e exportando mercadorias, e Estados Unidos, Europa e Japão consumindo tais mercadorias e exportando capital e tecnologia de volta para a China.
No auge desse ciclo, o Brasil viveu a ilusão de prosperidade da era Lula, quando milhões de pessoas aparentemente saíram da miséria através de bolsas e outros milhões adquiriram a “cidadania do crédito”, o consumo através de endividamento, sem aumento real da renda. Esse ciclo de crescimento, no entanto, se esgotou na crise mundial de 2008. Num primeiro momento, aquela nova crise pareceu atingir apenas os países centrais e deixar quase ilesos os gigantes periféricos. Entretanto, nos anos seguintes os países centrais viveram uma quase recuperação, e no momento atual, em 2015, os gigantes periféricos é que ameaçam precipitar o próximo episódio cíclico da crise. A queda das ações na China pode ser um primeiro sintoma disso.
Voltando aos países centrais, a pseudo recuperação aconteceu em especial nos Estados Unidos, às custas da destruição das condições de vida da sua classe trabalhadora (os recentes casos de violência policial contra os negros, o setor mais pobre da classe, são um exemplo extremo desse processo) e na Alemanha, às custas do arrocho sobre a periferia europeia, como estamos presenciando na Grécia. Conforme a crise estrutural se aprofunda e as crises cíclicas se repetem, vai se produzindo um realinhamento das relações entre os países, com o reforço do poder dos países mais fortes e um enfraquecimento ainda maior dos mais fracos. Para contornar suas crises, o sistema capitalista privilegia a sobrevivência dos setores mais poderosos e concentrados do capital, e sacrifica os mais fracos. Estados Unidos e Alemanha estão no bloco dos mais fortes. O Brasil, no dos mais fracos.

Voltemos então ao campo do futebol para identificar como esta esfera foi afetada pelos fenômenos acima. De acordo com o que analisamos mais detidamente na parte 1 dessas reflexões, na comparação com o cenário do futebol de 2002, prossegue o mesmo fenômeno de agigantamento das competições de clubes europeus em detrimento das seleções nacionais, que só fez se aprofundar. Também apontamos a ocorrência de um desenraizamento do futebol, a perda de sua relação direta com a classe operária, a elitização do público dos estádios, o êxodo dos melhores jogadores, a colonização dos torcedores por clubes europeus, etc. Todas essas tendências já tinham sido embrionariamente detectadas em 2002, mas só pudemos tratar delas agora, na parte 1 destas reflexões, de forma mais desdobrada.
Essas tendências de transformação no futebol afetam de maneira diferenciada os vários países, de acordo com a sua posição relativa na divisão internacional do trabalho capitalista. Os Estados Unidos não são uma potência no futebol. A Alemanha é. A Alemanha foi também o país vencido pelo Brasil na final da Copa de 2002. Os alemães tiraram lições daquela derrota e buscaram agir a respeito. Desde a derrota para o Brasil (uma derrota perfeitamente normal, diga-se de passagem, sem nenhum grau de humilhação e tragédia), houve um esforço para repensar o futebol alemão. Com a tradicional eficiência germânica, a federação alemã lançou um programa de multiplicação de escolinhas de futebol, com uma nova orientação em relação ao modo de jogar. O resultado foi colhido agora, com uma geração de jovens jogadores talentosos, como Mario Götze, Marco Reus, Thomas Muller, e outros. Todos jogadores com talento, habilidade, capacidade de driblar e improvisar, jogo de cintura. Características novas e diferentes do antigo estilo alemão, baseado na força física e disciplina tática, de estilo mecânico, burocrático, “quadrado”.
Enquanto isso, no Brasil, o que aconteceu com o futebol local? Praticamente nada de novo em relação à organização. A fórmula de disputa do campeonato brasileiro mudou em 2003 para o modelo de pontos corridos, mas o calendário permaneceu desconectado do calendário europeu, os campeonatos estaduais continuaram inflados e deficitários, etc. Enquanto outras federações davam atenção à renovação do seu futebol, a CBF permaneceu “deitada eternamente em berço esplêndido”, fazendo comércio com os jogos da seleção, enquanto o futebol nacional seguiu definhando nas mãos de emissoras de TV, de dirigentes medíocres e sem visão nos clubes, e de empresários de jogadores. Algumas vitórias da seleção em Copa América e Copa das Confederações maquiavam o desempenho medíocre nas Copas do Mundo de 2006 e 2010. A ilusão de prosperidade dos governos do PT permitiu inclusive que alguns clubes brasileiros tivessem acesso ao mercado secundário de contratações, concorrendo com clubes e ligas europeias de 2º escalão e repatriando jogadores, como fez o Corinthians com Ronaldo em fins de 2008.
Mas o essencial da discussão é que o “modelo” histórico do futebol brasileiro, em que o talento e o “know how” da improvisação buscavam compensar as falhas de organização, estava ficando defasado em relação ao futebol altamente organizado e profissionalizado da Europa. A Copa de 2002 foi uma espécie de canto do cisne, o último alento desse “modelo” de futebol que vai aos trancos e barrancos, no improviso, empurrando com a barriga. Seria necessário uma revolução no futebol brasileiro para que tivesse condições de se manter competitivo internacionalmente. Essa revolução não ocorreu nos anos que se seguiram à vitória de 2002. Como era de se esperar, aquela vitória reforçou ainda mais a negligência em relação às tarefas necessárias para uma reorganização de grande porte e a complacência com os defeitos, tornando praticamente impossível a reformulação necessária.
Nem mesmo o vexame da Copa de 2014 provocou ainda uma tal revolução. Depois de 2014, seguimos com o mesmo modelo de gestão, que é o do amadorismo, do improviso, das mudanças que não mudam nada, que resultaram na campanha medíocre na Copa América de 2015. Prova de que os problemas vão muito além do fato de Felipão estar ultrapassado e Neymar não ter jogado contra a Alemanha na tarde trágica do Mineirão. Os problemas são mais profundos e requerem uma análise social.
Antes de empreender essa análise, cabe mencionar o único fato positivo em relação à Copa de 2014, que é o de ter acontecido num momento de politização e questionamento na sociedade brasileira, como em décadas não se via. As jornadas de junho de 2013 (pano de fundo da Copa das Confederações) trouxeram à tona um amplo descontentamento, em praticamente todas as classes sociais, com a falsa prosperidade da era do PT (e evidentemente, nos interessa organizar o descontentamento da classe trabalhadora). No antigo país do futebol, houve protestos contra a Copa do Mundo, abafados por meio de pesada repressão policial e de uma grosseira armação judicial e midiática para por a culpa da morte de um cinegrafista nos manifestantes.
Mesmo que os protestos não tenham sido suficientes para impedir a Copa, e mesmo que no período da Copa tenha havido um interesse razoável pelos jogos, uma parcela imensa da população simplesmente não estava preocupada com o futebol, nem com a seleção. O desinteresse pelo futebol (e até mesmo a hostilidade e ele) alcançou proporções inéditas no país pentacampeão do mundo. Tanto assim que o impacto da monumental derrota futebolística (a maior derrota da história da seleção, maior derrota da história de uma seleção campeã do mundo numa Copa*, maior goleada em uma semifinal de Copa**, maior derrota de um país anfitrião, etc.) não teve nem de longe o impacto que tiveram as derrotas de 1950, nem mesmo a de 1982, por exemplo.

Mencionamos a Copa de 1982 porque se trata de uma referência inescapável ao se falar de uma derrota futebolística muito sentida. A seleção brasileira de 1982 derrotada pela Itália é uma das melhores seleções da história que não ganharam a Copa, juntamente com a Hungria de 1954 e a Holanda de 1974 (ambas vencidas na final pela Alemanha). Tratava-se de uma das maiores gerações da história do futebol brasileiro, com jogadores que eram ídolos nos seus clubes (Zico, Leandro e Júnior do Flamengo, Sócrates do Corinthians, Falcão do Internacional, Cerezo e Eder do Atlético) e com um técnico que era um dos últimos defensores do bom futebol, o excepcional Telê Santana.
A derrota daquela seleção foi muito mais sofrida pelo torcedor brasileiro (e naquela época, quando se viviam os anos finais da ditadura e de renovação das esperanças no futuro do país, isso incluía praticamente todo o povo brasileiro) do que a tragédia do Mineirão em 2014. Essa afirmação está sendo sustentada por uma testemunha ocular dos fatos, em que pese ser um autor que tinha 6 anos de idade na época daquela Copa, a primeira que pôde acompanhar pela TV e em condições de entender o que estava acontecendo, e de se encantar com o futebol “de outra galáxia” (na definição de Enzo Bearzot, técnico da Itália campeã) daquela seleção. Deve se dar o devido desconto por se tratar de alguém para quem as lembranças daquela Copa estão indissociavelmente ligadas às lembranças das primeiras férias escolares, da vizinhança pela primeira vez pintada inteira de verde e amarelo, da primeira vez em que se ouvia um colossal foguetório a cada gol do Brasil, da primeira festa junina na cidade grande, quando ainda se fazia a festa na rua de casa e se soltavam balões em abundância (terríveis, mas naquele contexto sublimes aos olhos de uma criança).
Mesmo com esse desconto devido à memória afetiva do autor, mantemos a afirmação, mas a qualificamos. A derrota de 1982 foi mais sentida que a de 2014 não só porque a seleção de 1982 era muito melhor, mas porque em 1982 o futebol importava muito mais. Era muito mais presente e significativo na vida das pessoas, muito mais uma expressão do estado de espírito coletivo, das esperanças e sonhos daquela dada época. E o que precisamos explicar aqui é porque o futebol brasileiro, antes tão belo e vitorioso, se tornou medíocre. Pois o que levou o futebol a perder a importância que tinha antes foi justamente o fato de ter perdido a qualidade mágica de antes e ter se tornado medíocre.
A mudança fundamental por trás de todos esses processos é a que aconteceu no modo de vida das crianças e adolescentes no Brasil nas últimas três décadas. Em 1982 as crianças (em maior número os meninos) não faziam outra coisa além de “jogar bola”, no intervalo das aulas, no pátio da escola, no corredor da escola, na sala de aula, entre as cadeiras, chutando e driblando com qualquer coisa que aparecesse pela frente, desde tampinha de garrafa e bolinha de papel até bolas de verdade, e depois na rua, na calçada, no quintal das casas, nos terrenos baldios, nas praças, nas quadras, campinhos de várzea, etc., jogando um contra um, ou em duplas, em trios, em qualquer formação imaginável, uma partida após a outra, um time depois do outro, em jogos intermináveis, até 3 gols, até 10, etc. (e aqui não se trata de mais uma memória afetiva de um inveterado craque das peladas infantis, mas de alguém que não jogava bola, porque era gordo e vivia enfurnado nos livros).
Em 2015 as crianças e adolescentes estão trancados nas suas casas e apartamentos, não saem na rua, não socializam, não criam relações, não brincam nem brigam, apenas jogam videogame, navegam no “facebook”, conversam no “whatsapp”. Não há mais terrenos baldios, não há mais campinhos de várzea, não há mais a interminável “febre de bola”, as intermináveis peladas de rua (assim como não há mais carrinhos de rolimã, bolinhas de gude, esconde-esconde, etc.). Os jogadores de futebol de hoje são formados em escolinhas, onde aprendem tudo, esquema tático, posicionamento, etc., menos “jogar bola” de verdade, como sempre foi o estilo brasileiro.
Sempre tratamos a formação de jogadores de futebol como algo aleatório, como se fosse um fenômeno da natureza. O surgimento de novos craques, novos Rivaldos, Romários, fenômenos, gaúchos e Neymares era tratado como algo que iria acontecer naturalmente. “O Brasil sempre revela novos jogadores”. A falsa imagem que se tinha é do mesmo tipo da que se tem da Amazônia, uma imensidão sem fim de florestas e rios, que não vai acabar jamais, por mais que se derrubem as árvores. Da mesma forma, sempre se imaginou que iriam continuar surgindo gerações e gerações de novos jogadores, como no passado tivemos a geração de 1958, depois a de 1970, depois a de 1982. E com elas o Brasil sempre poderia continuar formando novas seleções, que estariam recheadas de novos craques, que manteriam o país como mais vitorioso.
Mas assim como a Amazônia, o fenômeno do surgimento de novos grandes jogadores está acabando. Não são recursos infinitos, indefinidamente renováveis. 2014 é a prova de que o futebol brasileiro perdeu essa capacidade inesgotável de formar jogadores em condições de competir com os melhores do mundo. Se até 2002 ainda era possível contar com o improviso e mesmo assim vencer, agora já não mais. Agora seria preciso um trabalho organizado, sistemático, planejado, científico, para aproveitar os talentos que ainda surgem. Não houve e não há tal trabalho, nem da parte dos clubes, nem da parte da CBF. O Brasil se rebaixou ao mesmo nível de qualquer outro país em que se gosta de futebol, com o agravante da desorganização, corrupção, autoritarismo e incompetência dos dirigentes brasileiros, que são características da burguesia brasileira em geral. Isso explica os 7 x 1.

A derrota de 2014 não será apagada facilmente e o prestígio construído em mais de um século pelo talento de muitas gerações de craques não será reconquistado com bravatas de Galvão Bueno. Diante da mudança no modo de vida da infância e da adolescência, o número de jovens que jogam futebol diminuiu enormemente. Aquela “febre de bola” da qual quem cresceu nos anos 1980 ainda se lembra tão vivamente arrefeceu. Não é que o número de crianças e adolescentes jogando bola baixou a zero, mas baixou brutalmente. Da quantidade nasce a qualidade, nos ensina a dialética. Sem a mesma abundância de crianças e adolescentes jogando bola, não surge mais a antiga abundância de craques.
A atitude necessária diante desse fenômeno, repetimos, deveria ser um trabalho organizado para aproveitar os bons jogadores que ainda surgem. Em havendo esse trabalho, o Brasil conseguiria ainda se manter no mesmo nível das demais potências, Alemanha, Argentina, Itália, etc., mas já sem o mesmo brilhantismo e a superioridade de antigamente. Mesmo assim, não daria vexame. Agora, estamos condenados a um rebaixamento, uma queda que não se sabe até onde pode ir. Enquanto uma atividade econômica, os dirigentes do futebol brasileiro finalmente conseguiram matar a galinha dos ovos de ouro. Aquilo que ninguém imaginava possível, transformar aquele manancial inesgotável de grandes jogadores em uma terra devastada, foi conseguido pelos nossos presidentes de clubes e da CBF. É uma proeza histórica.
Tudo começa nos clubes. Os grandes clubes brasileiros se tornaram reféns dos esquemas de empresários de jogadores. São os empresários que conseguem vagas para que os jovens, ainda adolescentes, entrem nas categorias de base, desde que os pais paguem as taxas e firmem contratos garantindo comissões a esses empresários quando da venda do jogador para o exterior. Os clubes não têm mais autonomia nas suas categorias de base para formar seus jogadores. Cada clube deveria instalar dezenas de escolinhas nas periferias, com o caráter de projeto social, vinculado à frequência escolar, etc., para garimpar novos talentos. O investimento num projeto como esse seria facilmente coberto com a venda dos novos Neymares que surgissem. Os jogadores teriam vínculo com o clube e não com empresários que intermedeiam e viciam as relações.
Mas mesmo os grandes clubes no Brasil são mal administrados, aprisionados em dívidas, incapazes de um planejamento estratégico, submetidos ao monopólio de uma grande emissora de TV que define os calendários e horários de jogos. Não têm a capacidade de desenvolver projetos como esses. Os clubes pequenos e de cidades menores estão definhando com um calendário em que os estaduais duram apenas 3 meses no início do ano, e as divisões nacionais inferiores são deficitárias. Para reverter esse cenário seria preciso uma reforma geral na estrutura e calendário do futebol brasileiro, que exigiria:
- adequação do campeonato brasileiro ao calendário europeu, com um turno de setembro a dezembro e outro de janeiro a maio. A vantagem dessa adequação é que os grandes clubes poderiam planejar a sua temporada, sabendo com qual elenco de jogadores podem contar, formando times de verdade, no sentido coletivo, entrosando jogadores (hoje temos amontoados de jogadores que se desfazem e refazem ao longo da temporada). Hoje os clubes começam o ano com um elenco, que se desfaz na metade do campeonato brasileiro devido à janela de transferências da intertemporada europeia, e terminam o ano com outro elenco. Quem é bem sucedido no início do ano, nos estaduais e na Libertadores, acaba sendo “punido” com o desmanche do time e a venda dos melhores jogadores para a Europa. Com a adequação do calendário, repetimos, teríamos times mais estáveis ao longo da temporada, melhorando a qualidade dos jogos.
- com o campeonato brasileiro sendo disputado entre setembro e maio, os jogos poderiam ser de domingo a domingo. E com isso, no meio de semana seriam jogadas outras competições, como os estaduais, Libertadores, Copa do Brasil. Como acontece também na Europa, em que as copas nacionais e europeias são jogadas em meio de semana. A vantagem desse formato é que os estaduais poderiam ser jogados ao longo do ano inteiro, mantendo em atividade os clubes pequenos ao longo de toda a temporada. Hoje os clubes pequenos nos estados menores deixam seus jogadores desempregados por seis meses, já que não há competições quando acabam os estaduais.
- os estaduais seriam classificatórios para a Copa do Brasil da temporada seguinte. Com os clubes grandes priorizando o campeonato brasileiro, a Libertadores ou a própria Copa do Brasil, eles acabariam jogando os estaduais com times mistos, aumentando as chances dos clubes pequenos vencerem os grandes (como acontece nas copas nacionais na Europa), aumentando o interesse e rentabilidade dos estaduais, mantendo a viabilidade financeira dos clubes pequenos.
- num país com a dimensão continental do Brasil, não é viável para os clubes pequenos jogar uma 3ª ou 4ª divisão nacional com viagens do Rio Grande do Sul ao Amapá ou da Paraíba ao Acre, por exemplo. Por isso, para os clubes que não estão na 1ª ou 2ª divisão do campeonato brasileiro, os estaduais e as primeiras rodadas da Copa do Brasil serviriam também como uma espécie de seletiva ou repescagem para a 2ª divisão, como uma forma suplementar de aumentar o interesse dos estaduais. E aumentaria a competitividade da 2ª divisão, já que o risco seria de rebaixamento para a repescagem/estaduais.
- a repartição das cotas de transmissão do campeonato brasileiro deveria ser mais igualitária, com um valor fixo para todos os clubes participantes da 1ª divisão e um porcentual variável a ser distribuído conforme a classificação final na tabela (e o mesmo critério para a 2ª divisão, a repescagem intermediária, Copa do Brasil, estaduais, etc.).
- para participar das competições nacionais os clubes deveriam ser obrigados a cumprir critérios de transparência financeira e gestão, com limites para endividamento (sob pena de rebaixamento) e outros, inclusive, por exemplo, a obrigatoriedade de investimento em categorias de base, etc.
- também deveria ser critério para participação nas competições nacionais mudanças estatutárias nos clubes que abrissem para os sócios torcedores (com critérios de adimplência) o direito de voto nas instâncias administrativas dos clubes, podendo escolher uma parte dos representantes que elegem o presidente, formar o conselho fiscal, etc.
Mudanças como essas dependeriam de uma intensa mobilização dos setores críticos da imprensa esportiva, das associações de torcedores, do Bom Senso FC. Somos céticos em relação à capacidade das torcidas organizadas servirem como agentes progressivos nesse processo necessário de reorganização. Afinal, a maior delas estabelece relações promíscuas com dirigentes, servindo como massa de manobra nas disputas políticas internas, favorecendo ora um dirigente ora outro, em troca de vantagens na compra de ingressos, etc. Por isso apostamos numa pressão consciente de torcedores “desorganizados”.
Essa “revolução” de base nos clubes e competições nacionais é uma pré-condição para que se possa reformular também a própria CBF e a seleção brasileira. Para acabar com os vexames e retomar a tradição daquele futebol, que como disse o grande Hobsbawm, não poderia ser comparado a nada menos que uma forma de arte.

*A mesma Alemanha já foi goleada pela Inglaterra por 12 x 0, mas num amistoso em 19XX, portanto ainda muito antes da era das Copas do Mundo. Em 1954, essa mesma Alemanha foi goleada por 8 x 3 pela Hungria, mas no momento desse jogo ainda não era uma seleção campeã, o que só conseguiria nessa mesma Copa, ao jogar de novo com a mesma Hungria na final, e vencer por 3 x 2.

**Em 1950, a Copa do Mundo disputada no Brasil teve um formato único, que não se repetiu em nenhuma outra Copa, sem semifinal nem final. Houve um quadrangular final, com as 4 seleções finalistas jogando todas entre si para definir o campeão. Nesse quadrangular, o Brasil venceu a Suécia por 7 a 1 e a Espanha 6 x 1, mas perdeu para o Uruguai por 2 x 1 no último jogo, que não era exatamente a final da Copa. Os 7 x 1 da Alemanha são portanto a maior goleada numa semifinal desde que a competição tem o atual formato.

Daniel M. Delfino
Junho 2015