A luta
de classes apresenta inúmeros tipos de dificuldades. Uma das
principais é o fato de que “a ideologia predominante numa
sociedade é sempre a ideologia da classe dominante” (Marx e
Engels). Isso significa que os trabalhadores vêem o mundo não
como ele é, mas da forma como a classe dominante o define. Os
trabalhadores acham que o mundo sempre foi e sempre vai ser tal como
é hoje, com a divisão entre ricos e pobres, a presença
do Estado, do trabalho assalariado, da propriedade privada dos meios
de produção, da família patriarcal, etc. E mais,
acreditam que o homem é individualista por natureza, que se
trabalhar duro é possível “chegar lá” e
“virar patrão”, etc. E para completar, acreditam que a
História é feita por “heróis”, “grandes
homens” e líderes, não pela ação
coletiva e organizada das classes sociais em luta.
Esse
conjunto de ideias constitui um obstáculo gigantesco para a
luta contra o capitalismo e a construção de uma
sociedade emancipada. Tais ideias somente podem ser superadas por
meio da experiência prática, por meio de processos de
luta que demonstrem a necessidade, a possibilidade e a viabilidade
das ações coletivas. A experiência prática
proporciona os conhecimentos necessários para a luta política,
a partir daquelas experiências iniciais que acontecem em uma
greve ou manifestação, até que se possa
gradativamente chegar à luta pelo poder social e pela
revoluções.
Na falta
ou insuficiência de tais experiências práticas, o
obstáculo da ideologia dominante se torna tão grande
que muitas organizações preferem não
enfrentá-lo. Ao invés de encarar a luta de classes tal
como ela é, com todas as suas dificuldades, tais organizações
preferem criar um mundo fictício, onde se sentem à
vontade, e conseguem desempenhar para si mesmas o papel teatral de
“revolucionários”. Essas organizações se
convertem em seitas, cujos integrantes passam a ter a obsessão
fanática de proclamar aos quatro ventos a “verdade absoluta”
da qual são portadores.
Identificando
uma seita
No mundo
fictício das seitas, a luta a ser travada não é
contra a ideologia dominante, a burguesia, o Estado, seus aparelhos
ideológicos, a burocracia sindical, igrejas, meios de
comunicação, etc. A luta é desviada contra as
outras organizações, que passam a ser tratadas como
inimigos. E contra os inimigos vale tudo: a calúnia, a
difamação, a intriga, a falsificação,
todos os tipos de golpes e manobras, para que a seita possa aparecer
como a única portadora da verdade e da salvação.
O
raciocínio das seitas é mais ou menos o seguinte: “a
minha organização é a única organização
revolucionária, logo, a minha organização tem
que estar na direção de todas as lutas dos
trabalhadores, logo, todas as outras organizações que
participam das lutas são inimigos, logo, não só
é aceitável como é necessário fazer
qualquer coisa para derrotar, desmoralizar e destruir essas
organizações”. O objetivo não é fazer
um debate construtivo em que todas as organizações
possam apresentar suas posições, e o movimento decida
qual a mais correta. O objetivo é destruir qualquer
concorrente que possa representar uma ameaça para as posições
da seita. Não importa se uma determinada proposta é a
mais correta para o movimento, importa apenas se ela provém ou
não da seita. A disputa pelo controle, pela maioria, pela
direção, substitui o debate de alternativas para o
movimento. A rivalidade, a intriga, a mesquinharia substitui a
política.
Seguindo
esse critério, onde quer que exista uma outra organização
atuando, ela será tratada como inimigo. Qualquer que seja o
tipo de organização, um outro partido da esquerda, um
coletivo estudantil, uma chapa sindical, um agrupamento independente,
um movimento cultural, um grupo de estudo, etc., em qualquer caso
essa organização será tratada como inimiga.
Qualquer outro grupo organizado, simplesmente pelo fato de ser de
alguma forma minimamente organizado, inevitavelmente representa um
projeto de direção política. E isso é
algo que a seita não pode aceitar, e precisa neutralizar de
alguma maneira, seja cooptando uma parte dos seus militantes, seja de
uma forma ou de outra buscando o fim da outra organização
tal como ela era.
Toda
organização tem seus limites, ou é burocrática,
ou reformista, ou centrista, ou “sindicaleira”, ou sectária,
ou propagandista, ou movimentista, ou mesmo pode ser revolucionária,
mas com políticas equivocadas, e no entanto ser capaz de
trabalhar em unidade, etc. Diante dessa diversidade de situações,
que tem a ver com o estágio histórico da luta de
classes, e que exigem em cada caso respostas diferenciadas, a atitude
da seita é sempre uma só: qualquer outra organização
é um inimigo por definição, e seu objetivo é
sempre destruí-lo. Também não importa se a
desaparição, o esvaziamento, o racha de um determinado
partido da esquerda, coletivo estudantil, chapa sindical, agrupamento
independente, movimento cultural, grupo de estudo, etc., vai
enfraquecer a luta real dos trabalhadores. Não importa se
militantes vão romper com a luta e voltar para casa, se
relações e amizades vão ser destruídas,
se um processo de organização independente vai ser
abortado, pois vale tudo para que os ditos “revolucionários”
assumam o controle. A seita não se preocupa com o
desenvolvimento geral da luta, seu único objetivo, repetimos,
é “dirigir” os processos em que participa.
Todo
militante, ativista ou trabalhador certamente se lembra de quando
participou de uma assembleia, plenária, chapa, movimento,
etc., pela primeira vez, e se deparou com o espetáculo bizarro
de “organizações revolucionárias” se
digladiando umas contra as outras, uma fala depois da outra,
interminavelmente, até esgotar a paciência das pessoas
“normais”, que evidentemente se retiram de algo que aparentemente
não tem nada a ver com a sua vida. Esse cenário é
o sintoma dos vícios sectários que grassam entre as
organizações.
O
equívoco fundamental das concepções sectárias
O
delírio das seitas autoproclamatórias, como qualquer
outro fenômeno social, têm uma explicação
histórica e política. Essas seitas partem da
caracterização de que “a crise da humanidade é
a crise da sua direção revolucionária”, frase
escrita por Trotsky há quase 80 anos. Incapazes de pensar como
o próprio Trotsky e ignorando que o mundo mudou muito desde
que o “Programa de Transição” foi escrito em 1938,
essas seitas imaginam estar sendo fiéis ao legado do grande
revolucionário russo, adotando seu texto ao pé da
letra, como se fosse algum tipo de dogma religioso, numa atitude
exatamente oposta ao marxismo.
Se a
crise da humanidade é a crise da sua direção
revolucionária, a solução é muito
simples: a seita proclama a si mesma como a nova direção
revolucionária da humanidade. E se a seita é a direção
revolucionária, todas as outras organizações que
não seguem a cartilha dessa seita estão na verdade
atrapalhando o processo. E temos então o cenário
descrito acima. O problema é que a crise da humanidade não
é mais apenas de “direção revolucionária”,
mas algo muito mais profundo e de outra natureza. Quando Trotsky
formulou essa caracterização, ela ainda fazia um certo
sentido, daí o seu esforço para construir uma IV
Internacional revolucionária, pouco antes de ser assassinado.
O
problema hoje, no século XXI, não é apenas de
“direção revolucionária”, mas de falta de
alternativas. Há uma crise de alternativas socialistas, uma
ausência de projetos de sociedade, de modo que os trabalhadores
não acreditam que seja possível mudar o mundo e
construir outra sociedade. Sem isso, não há como sequer
se falar em um movimento revolucionário. E para que haja uma
direção revolucionária, é preciso que
haja um movimento revolucionário para dirigir. O movimento
revolucionário, por sua vez, somente se constrói
mediante o esforço combinado de incontáveis lutas dos
trabalhadores, incontáveis experiências práticas
(que produzam um avanço ideológico e de consciência,
como dissemos no início), contribuições de
incontáveis organizações e militantes. Não
se constrói por um ato de vontade (ou pior, por
autoproclamação de alguma seita) de qualquer
organização, nem da noite para o dia.
Para que
o movimento dos trabalhadores se torne revolucionário, o que
certamente requer a intervenção de organizações
revolucionárias (no sentido de debate das melhores propostas
para o movimento, e não disputa desleal e rebaixada entre
seitas pela “direção”), é preciso antes que
exista um movimento, classista, independente, combativo, unitário.
É preciso que os organismos de luta dos trabalhadores se
fortaleçam e se libertem do controle de burocracias sindicais,
partidos pró-capitalistas, oportunistas, etc. É preciso
também que haja uma metodologia de funcionamento que assegure
a participação e o aprendizado dos trabalhadores. E
sobretudo, é preciso que as organizações
revolucionárias intervenham nas lutas, concretamente, a partir
de cada local de trabalho, estudo, moradia, a partir de cada greve,
manifestação, debate, etc., sendo reconhecidas pelos
trabalhadores, estando ombro a ombro, pondo a mão na massa.
Não
há como separar a construção da direção
revolucionária da construção do movimento
revolucionário que essa direção irá um
dia dirigir. A direção somente terá legitimidade
enquanto direção se contribuir decisivamente para a
construção do movimento que irá dirigir. E
contribuir para a construção do movimento não
significa nem se engalfinhar com as outras organizações
de maneira sectária em debates estéreis, nem abrir mão
de lutar pelas propostas mais corretas. Significa ter como critério
precisamente a construção do conjunto do movimento, e
não o predomínio das “minhas” propostas. Com esse
critério, a luta dos trabalhadores deixaria de ser aquele
espetáculo bizarro que presenciamos nas assembleias,
plenárias, chapas, movimentos, etc., passando a ser algo que o
trabalhador reconheceria como seu.
Somente
assim é possível libertar os trabalhadores da
influência da ideologia burguesa, do Estado, da burocracia
sindical, da igreja, etc., os nossos verdadeiros adversários.
Infelizmente, até que as concepções que buscam o
avanço geral da luta prevaleçam, para seguir
desenvolvendo a luta no dia a dia, precisaremos contar ainda com uma
boa dose adicional de paciência, sangue frio e sabedoria para
lidar com os ataques, as conspirações e os delírios
da seitas.
Daniel M.
Delfino
Julho
2015
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