O filme
polonês "Ida" está ambientado na década
de 1960, portanto cerca de duas décadas depois do fim da II
Guerra, em que a Polônia serviu como palco para a maior parte
do Holocausto judeu. O filme mostra uma jovem noviça (chamada
Ida) que, às vésperas de proferir seus votos no
convento em que foi criada como órfã, recebe a notícia
de que possui uma tia ainda viva, e junto com a notícia, a
ordem da madre superiora de que vá visitá-la A tia, uma
juíza chamada Wanda Gruz, lhe revela a sua origem judia e a
leva para sua cidade natal, para que visite o túmulo dos pais
e saiba como morreram. A tia na verdade sempre soube da existência
da sobrinha, mas somente neste momento resolveu lhe contar a verdade,
porque parece ser o momento em que resolveu também acertar as
contas com o próprio passado. Nesse passado se esconde a
tristeza de ter um filho morto ainda criança (juntamente com
os pais de Ida).
A
personagem Ida, teoricamente a protagonista, é o que há
de menos interessante no filme, porque ela própria não
se interessa por nada, e se comporta como uma mera espectadora dos
acontecimentos. A revelação de sua origem judia não
lhe provoca nenhuma comoção ou impacto. Em nenhum
momento ela cogita em conhecer o passado de sua família e de
seu povo. O drama do Holocausto parece ter acontecido em outro
planeta. Ida está desconectada da história, e mesmo da
história recente. Nem a história dos judeus na Polônia,
nem o discurso ateu da tia, nem a sedução da vida fora
do convento, seus prazeres, seus amores e suas dores, repetimos, nada
lhe interessa além da fábula da religião. Ida é
impermeável, parece bem adaptada ao tédio do convento,
onde o silêncio só é quebrado pelo som dos garfos
tilintando nos pratos na hora das refeições. No
convento tudo é decidido pelos superiores e já vem
pronto, sem requerer envolvimento existencial.
A
atitude de Ida em face da história do país e seu
entrelaçamento com sua própria história pessoal
é bastante semelhante àquela característica dos
dias atuais, que também parecem desconectados da história.
As grandes questões humanas, os conflitos políticos, as
guerras e revoluções, parece que nada disso faz algum
sentido ou tem explicação. O sentido da tragédia
que se abateu sobre o país, onde foi executado o maior número
de judeus pelos nazistas (basta lembrar que o mais infame dos campos
de concentração, Auschwitz, fica na Polônia), a
luta para se libertar do invasor alemão, a ocupação
pelo Exército Vermelho e a instalação da chamada
“democracia popular”, são um pano de fundo tão
distante que não aparece e não é questionado no
filme. Os personagens são jogados de um lado para o outro
pelos acontecimentos, é assim que a mentalidade pós-moderna
do século XXI os vê. Tudo não passa de idas e
vindas aleatórias, o contexto histórico parece
indiferente, e é assim que a própria Ida vê a sua
história pessoal.
A não
ser por algumas referências e formas de tratamento, como o uso
do termo "camarada", o espectador não tem noção
de que a Polônia foi durante algumas décadas do século
XX um dos chamados países "socialistas". O modo de
vida das personagens, que passeiam, se hospedam em um hotel, vão
a um salão de baile, onde uma banda toca John Coltrane,
novidade “cult” da época, parece idêntico ao de
qualquer outro país, capitalista ou não. O rápido
flerte de Ida com o saxofonista da banda parece não avançar
porque ele não tem nada de diferente a lhe oferecer a não
ser, como ele mesmo diz, um casamento, uma casa, um cão,
filhos, a "vida", tal como ela é vivida em qualquer
parte.
O
verdadeiro interesse do filme esta na tia de Ida, a juíza
Wanda Gruz. O movimento que desencadeia os acontecimentos da
narrativa parte de sua iniciativa, quando resolve se dar a conhecer à
sobrinha. Esse passo deve ser entendido na verdade como parte de um
movimento mais geral de busca de seu próprio passado, como
dissemos. Esse movimento, e o próprio filme, na verdade não
têm um final feliz. E a única forma de entendê-lo,
e entender a profundidade dramática do filme, é
recorrendo à história, ou seja, à luta de
classes.
As
sinopses e o próprio aparato publicitário de divulgação
comercial do filme vão citar suas apuradas qualidades
estéticas, a bela fotografia em preto e branco, o uso peculiar
da música e do silêncio (os personagens ouvem muita
música - jazz, pop, erudita - mas não há quase
trilha sonora), etc. E foi provavelmente em função
dessas qualidades estéticas que o filme foi premiado com o
Oscar para produções em língua não
inglesa. Mas esse modo de apresentar o filme, tipicamente pós
moderno, não permitirá entender o seu sentido profundo,
as motivações da personagem Wanda e as razões do
seu fracasso.
Em certo
momento a tia de Ida se refere a si mesma no passado como "Wanda,
a vermelha", pelo que deduzimos que ela foi uma militante
bastante ativa na juventude. Depois ficamos sabendo que ela teve um
filho, a quem abandonou (e que acabaria sendo morto junto com os pais
de Ida) para se engajar na guerra contra os nazistas. O tom com o
qual ela se refere ao seu passado vermelho é de um certo
deboche, como se a sua época de “vermelhidão”
ardente fosse uma época de ingenuidade. Daquele passado
militante ela manteve as características de uma mulher forte,
dura, que toma iniciativa em tudo, mantém o controle em
qualquer situação, características que ela
emprega em sua função de juíza. Entretanto,
apesar dessa força aparente, no geral Wanda parece uma mulher
amargurada e até arrependida. O retrato da mulher militante
acaba sendo desfavorável, como alguém que afoga as
frustrações no alcoolismo e no sexo casual, sem muito
propósito.
Essa é
a conclusão que pode surgir sobre Wanda, mas a verdade
profunda é outra. Wanda foi uma militante que dedicou a sua
juventude a uma revolução socialista. Mas o que houve
na Polônia não foi uma revolução, e sim a
libertação do país da ocupação
nazista pelo Exército Vermelho soviético, contando com
o apoio de militantes locais. O Exército Vermelho impôs
de fora para dentro e de cima para baixo um regime politico chamado
"socialista", que expropriou a burguesia, mas que não
colocou a produção e as demais relações
sociais sob controle da classe trabalhadora, e sim da burocracia do
partido comunista polonês, satélite do governo
soviético. Ou seja, o regime existente na Polônia (e em
todo o leste europeu onde o processo se reproduziu), como o da
própria URSS, não era de fato socialista, e sim o
resultado de uma transição interrompida. Rompeu-se com
o capitalismo, mas estacionou-se num ponto intermediário, que
não tinha para onde avançar, e ao final retrocedeu para
a restauração capitalista. O determinante para o
fracasso dessa transição foi a falta de organismos de
poder próprios da classe trabalhadora, onde os produtores
associados exercessem direta e conscientemente o poder político
e o econômico simultaneamente.
Na falta
desses elementos para uma transição ao socialismo, os
frutos da expropriação da burguesia foram colhidos pela
burocracia “comunista”, que estabeleceu uma forma de exploração
sobre os trabalhadores em benefício próprio. Essa forma
bastarda de sistema econômico emperrou na sua própria
ineficiência burocrática, na incapacidade de melhorar a
vida dos trabalhadores e assim contar com sua adesão, e na
impossibilidade de se subtrair à concorrência do mercado
mundial e à vigência da lei do valor. Essas formas de
transição interrompidas não tinham condições
de se perpetuar e naufragaram décadas depois dos
acontecimentos do filme, entre 1989 e 1991.
Wanda
Gruz era uma dessas burocratas, exerceu o cargo de promotora,
tornou-se juíza, mas experimentava um sensação
profunda de tédio e vazio com sua função. Nós
a presenciamos julgando causas insignificantes, picuinhas,
perseguindo antigos opositores (como um réu contra o qual
pesava a evidência condenatória de haver herdado do avô
uma relíquia da legião do general Pilsudski). Isso é
muito pouco para quem foi “vermelha” na juventude. Com a função
que tinha, Wanda levava uma vida confortável, num país
estacionado mediocremente acima da pobreza, mas isso não lhe
trazia consolo. Reencontrar a sobrinha, confrontar o passado, a morte
dos pais dela e de seu próprio filho, tirar Ida do convento e
lhe apresentar o ateísmo e a liberdade sexual, nada disso
acabou trazendo um novo sentido para a vida de Wanda, por isso, como
dissemos, não temos um final feliz.
Felizmente,
a história não acabou (ao contrário do que dizem
os apologetas vulgares do capitalismo), a revolução não
morreu, a luta de classes continua, a emancipação
humana ainda está no horizonte, e temos que avançar
para o socialismo, para não cair na barbárie. Ou nos
conectamos com a história e aprendemos com ela para mudar o
presente, ou não teremos futuro. O limbo cinzento da pós
modernidade, da impermeabilidade e de pessoas indiferentes, dará
lugar ao vermelho vivo de novas Wandas.
Daniel M.
Delfino
Fevereiro
2015
Nenhum comentário:
Postar um comentário