No
sábado dia 18 de maio de 2014 aconteceu em São Paulo um
ato do dia de luta antimanicomial, ao qual comparecemos como
observadores. Trata-se do primeiro ato desse movimento que
acompanhamos, como parte daquilo que chamamos de atuação
totalizante, ou seja, uma perspectiva abrangente das questões
humanas, que vá para além daquilo que é
imediatamente econômico e político. Existe uma ampla
diversidade de questões que não são tratadas
pela esquerda socialista revolucionária tradicional e que
entendemos que é nosso dever explorar.
O
objetivo da luta antimanicomial é o desmonte dos hospitais
psiquiátricos (ou manicômios) em que os pacientes de
saúde mental são amontoados como lixo humano, sujeitos
a maus tratos, privações, agressões, estupros,
torturas, descaso, etc., sem receber nenhum tipo de tratamento real e
sem qualquer possibilidade de ressocialização, que
deveria ser o objetivo da internação. Ao invés
disso, o movimento da reforma psiquiátrica propõe um
tratamento humanizado, sem internação ou confinamento,
próximo das famílias, acompanhado por profissionais
especializados, em uma rede multidisciplinar de atenção
à saúde.
Nessa
primeira aproximação de nossa parte, nos deparamos com
vários problemas. Assim como nas lutas mais diretamente
econômicas, aqui também existem linhas políticas
em disputa. O ato não surge por geração
espontânea, ele é convocado e construído por
organizações e ativistas que possuem uma orientação,
um projeto e um discurso.
O
ato reuniu um número razoavelmente grande de pessoas para um
sábado à tarde, no mesmo dia da Virada Cultural da
prefeitura (atividade que mereceria um comentário à
parte), ou talvez por isso mesmo. Cerca de 500 a 700 pessoas
marcharam da Avenida Paulista ao Anhangabaú, escoltadas por
pequeno efetivo policial e caminhando ao som de batuques. Compunham a
passeata profissionais da saúde mental, estudantes de
psicologia, pacientes da saúde mental e seus familiares.
Encaramos como um aspecto muito positivo a mobilização
dos usuários dos serviços de saúde mental, do
ponto de vista do resgate da sua dignidade e auto-estima.
Não
identificamos a presença de nenhum setor da esquerda
tradicional organizada, intervindo enquanto organização,
apenas a presença de um ou dois militantes, que compareceram
enquanto indivíduos. Agregaram-se à marcha “militantes”
de outras causas paralelas, como o movimento pela descriminalização
da maconha (que distribuíram um folheto de impressão
luxuosa, o que abre uma grande interrogação quanto à
sua independência em relação ao financiamento).
O
questionamento quanto à independência afeta porém
de maneira mais grave o principal setor que responde pela organização
da marcha, a Frente Estadual Antimanicomial. A frente se compõe
de entidades, grupos e ativistas da área da saúde
mental. Ainda que isso não esteja explícito nos seus
materiais ou mesmo que uma boa parte dos participantes não
esteja sequer ciente disso, o impulso para a Frente e seus atos vem
de uma entidade de classe, o Conselho Regional de Psicologia – CRP
/ SP, que, em última instância, é dirigido por
setores do PT. Trata-se então de um dos muitos movimentos
sociais em que militantes de base do PT, ou da “velha guarda do
PT”, ou simpatizantes do PT, ainda participam e impulsionam com
alguma combatividade, como os movimentos de direitos humanos, LGBT,
atendimento à população de rua, etc.
Esses
setores ainda têm alguma combatividade e “know how” de
mobilização, pois não é simples reunir
essa quantidade de pessoas para um ato. Mas essa combatividade se
limita à sua causa específica, não vai além
dela, e o que é mais importante, não questiona o
elemento central, o projeto político em aplicação
no país pelo PT, que é o responsável em última
instância pela continuidade dos problemas sociais que os
organizadores da marcha querem de alguma forma combater. Além
disso, o limite dessa combatividade está em manifestações
“bem comportadas”, em atos de pressão, em que não
há a menor sombra de ação direta, enfrentamento
real, etc. Nos causou muita estranheza entre as bandeiras do ato a
municipalização da saúde mental. Por que a
municipalização é melhor do que a gestão
pelo estado ou pelo governo federal? Isso não ficou claro, mas
para bom entendedor meia palavra basta: Haddad do PT é o atual
prefeito do município de São Paulo.
Portanto
além de não questionar a política do governo
federal do PT de modo geral, o ato quer subordinar a política
para saúde mental ao governo municipal do PT. Só isso
já bastaria para acender o sinal de alerta. Há algumas
armadilhas graves que precisamos debater a respeito desse movimento.
Uma
primeira armadilha é: por mais que a luta antimanicomial seja
uma reivindicação correta, por conta da necessidade de
humanizar o tratamento aos pacientes da saúde mental, ela
corre o risco de se tornar mais um aspecto do processo de desmonte
neoliberal do Estado. Assim como o Estado se desobriga de oferecer
educação de qualidade, sucateando e desmontando a
escola, o Estado pode também se desobrigar de oferecer
tratamento à saúde mental, desmontando as estruturas
que existem. Ao invés de tratamento em manicômio (que
está errado), podemos ter tratamento nenhum (que está
erradíssimo). Não é que manter os manicômios
seja “menos pior”, mas é que a reivindicação
de tratamento de qualidade em Centros de Atenção
Psicossocial (CAPS) deve estar no mesmo plano da reivindicação
de desmonte dos hospitais psiquiátricos. Do contrário,
teremos apenas o desmonte dos hospitais psiquiátricos. Se não
há um debate muito bem feito, o Estado pode muito bem atender
a reivindicação de desmonte dos manicômios e em
lugar disso oferecer coisa nenhuma. Ou ainda, o estado pode
simplesmente terceirizar o serviço a entidades como ONGs, ou
coisa pior, entidades religiosas, que embolsariam verbas em troca de
um serviço tão desqualificado quanto o dos manicômios.
Voltando ao campo da educação, o Estado adotou o
discurso da “inclusão” de crianças deficientes nas
escolas, mas isso é mero pretexto para deixar de financiar
instituições especializadas em crianças
deficientes, jogando o problema no colo dos professores, já
massacrados por uma série de problemas no trabalho com as
crianças “comuns”, sem que o Estado lhes ofereça
nenhum tipo de recurso ou qualificação. O Estado pode
incorporar esse discurso da reforma psiquiátrica, mas não
para aperfeiçoar o tratamento aos pacientes e sim para
abandoná-los no colo das famílias e de profissionais de
CAPS sem estrutura.
Uma
segunda armadilha é: o discurso da reforma psiquiátrica
e da humanização ao tratamento dos pacientes de saúde
mental não pode se tornar um “elogio da loucura”, e aqui
falamos em elogio da loucura não no sentido de Erasmo de
Roterdã, mas no sentido de Foucault. A defesa dos pacientes da
saúde mental não pode se tornar uma defesa do
irracionalismo e um ataque à razão. Os pacientes da
saúde mental não podem ser soltos dos manicômios
porque a “sua razão” particular tem o mesmo “direito de
cidadania” que a razão dos “normais”, como no discurso
dos irracionalistas pós-modernos. Esse discurso está em
um dos slogans do ato: “qual é a sua locura?” O
pressuposto dessa pergunta é de que somos todos loucos, e ao
mesmo tempo, somos todos normais, ou seja, ninguém é
louco. Precisamos ser muito cuidadosos com esse discurso para não
compactuar com o relativismo pós-moderno. Nos círculos
de profissionais da área e simpatizantes, nas faculdades de
psicologia, o pós-modernismo, o relativismo, com seu discurso
“politicamente correto” e vazio é o que aparece como
fundamento filosófico. Nosso fundamento filosófico como
marxistas é outro, e precisamos dizer com clareza: razão
é razão e loucura é loucura. Ao mesmo tempo,
precisamos concordar que “de perto ninguém é normal”,
e que a definição de saúde mental, como está
em Winnicott, não é a ausência de loucura, mas a
capacidade de entrar na loucura e sair dela.
Uma
terceira armadilha é: a reforma psiquiátrica e o
tratamento humanizado aos pacientes de saúde mental não
pode ser defendido de uma forma oportunista e superficial como se
defende mais uma vítima do sistema. Na falta de uma militância
que dê resultado em alguma frente, diversas correntes correm
atrás de vítimas para defender. Um homossexual é
agredido aqui? Vamos em defesa dos homossexuais! Um índio é
expropriado acolá? Vamos em defesa dos índios! Não
podemos ser uma espécie de “bombeiro das causas perdidas”,
apagando os incêndios do capitalismo. Os problemas devem ser
abordados na sua especificidade e com a devida profundidade. É
preciso ter conhecimento de causa e inserção na
realidade para falar no assunto com autoridade e ser reconhecido. É
preciso ter o pé no barro e fazer a lição de
casa e o trabalho de base. É preciso conhecer em detalhe a
realidade sobre a qual se está atuando, para não chegar
com respostas prontas e artificiais. Não podemos ser “arroz
de festa” das manifestações.
Uma
quarta armadilha é: tanto no caso dos pacientes da saúde
mental, como dos usuários de drogas, da população
de rua, dos presidiários, etc., não podemos assumir a
postura de que são, sempre, sem qualquer exceção
ou diferenciação, por definição e
automaticamente, apenas e unicamente vítimas inocentes de um
Estado perverso e de um capitalismo desumano. Em alguns casos, essas
vítimas são também agressores, e isso é
preciso reconhecer também. Em alguns casos, alguns setores
dessa população dever ser sim isolados do convívio
social por não terem condições de conviver com
os demais sem se tornarem agressivos e destrutivos. Essas medidas
devem ser tomadas em qualquer sociedade, seja ela capitalista ou
socialista. Claro que a sociedade capitalista o faz de maneira
desumana, empilha as pessoas em manicômios, presídios,
albergues, etc., sem qualquer estrutura, fazendo-os vítimas de
agressões, estupros, abusos, torturas, privações,
maus tratos, etc., sem a menor condição de serem
ressocializados, o que deve ser combatido. E que numa sociedade
socialista, esse setor a ser isolado será muito menor, e terá
uma chance real de ressocialização. As internações
não serão uma prisão perpétua, no máximo
acontecerão em períodos de crise, conforme a avaliação
técnica de profissionais qualificados do setor, etc.
Uma
quinta armadilha é: nossa política para esse setor se
confronta com os preconceitos, a desinformação e o
bombardeio ideológico que sofrem diariamente os trabalhadores.
Para a maior parte da classe trabalhadora, as demandas do movimento
antimanicomial ou das lutas por direitos humanos soam irreais:
“abolir os manicômios? Então vão soltar os
loucos nas ruas para matar as pessoas?” “descriminalizar as
drogas? Então vão soltar os drogados nas ruas para
assaltar as pessoas?”. É preciso desfazer um imenso trabalho
de desinformação e envenenamento ideológico que
a burguesia e seus agentes fazem para impedir que os trabalhadores
vejam a realidade de maneira complexa e multifacetada como é,
e as soluções dos problemas com muitas dimensões
e detalhes.
Essas
são, a nosso ver, as armadilhas que terão que ser
contornadas se se quer construir uma intervenção no
setor. Essas armadilhas e o caráter governista do ato somente
saltam aos olhos para a visão treinada de militantes marxistas
revolucionários. A maior parte dos participantes do ato, a sua
base, os profissionais de saúde mental e estudantes de
psicologia e serviço social não distinguem a linha do
PT por trás do discurso da municipalização,
entre outras razões, pelo fato de que o PT não se
apresenta como PT nos atos e fóruns do movimento, mas como CRP
e Frente Estadual Antimanicomial. A base desses atos participa deles
movida por um desejo vago de ativismo, de estar em movimento, de
lutar por alguma coisa, de “fazer o bem”, de apaziguar a
consciência, etc. Pode-se dizer então que ao menos uma
parte dessa base está em disputa para uma política
classista.
O
PT trata a base do movimento como massa de manobra. Havia caravanas
de outros municípios, provavelmente todos governados pelo PT,
em que os profissionais do setor provavelmente são convocados
pelas chefias. O PT conduz esse movimento sem se preocupar em
politizá-lo fornecendo-lhe fundamentos teóricos e
consistência programática. O PT não se apresenta
como PT, não faz defesa do governo Dilma, não entra nas
questões de fundo. No máximo faz a crítica do
governo estadual (PSDB) e no mais se limita a levantar algumas
bandeiras aparentemente válidas. Feito isso, o PT introduz
então, como contrabando, aquela palavra de ordem que lhe
interessa, no caso a municipalização da saúde
mental, por onde deve conseguir alguns cavar cargos para os
aprendizes de burocratas que aparelham o movimento. Sua intervenção
se limita ao imediato e fragmenta as questões.
Na
verdade, trata-se de uma avenida aberta a quem quiser explorar. Se
tivéssemos um panfleto nesse ato, poderíamos causar
grandes estragos. Claro que não está em aberto a
disputa desse movimento e que o PT reagiria diante de qualquer ameaça
ao seu controle. Mas o que é preciso destacar é que,
com um discurso minimamente elaborado, temos condições
de ganhar uma setor que nunca teve contato com um discurso socialista
e mostrar todo um novo horizonte de luta. Pelo menos num primeiro
momento, até que se acirrasse a disputa, teríamos um
terreno fértil para semear. Como marxistas revolucionários,
podemos dialogar com a base desses movimentos com uma metodologia
oposta à do PT: politizando as questões, relacionando o
específico ao geral, apresentando a explicação
da realidade com base nos sólidos fundamentos do marxismo.
A
conclusão que fica é que:
-
o ato e o movimento antimanicomial são governistas, portanto
não podemos participar da sua construção e
convocação sem uma crítica e uma diferenciação,
de preferência em panfleto próprio;
-
ainda que haja muitos problemas, é muitíssimo possível
dialogar com setores de base do movimento a partir de uma política
classista para a saúde mental;
-
essa política deve incluir as seguintes questões:
a)
o agravamento dos problemas de saúde mental nas condições
degenerativas do capitalismo em crise societal;
b)
a relação entre a pauta antimanicomial e a pauta dos
direitos humanos, contra a higienização social e a
criminalização da miséria, a onda repressiva e a
ofensiva conservadora;
c)
as melhorias exigidas nos serviços sociais de atendimento para
saúde mental, usuários de drogas, população
de rua, como parte de reformas sociais necessárias;
d)
as necessidades dos profissionais do setor em termos de condições
de trabalho, recursos, qualificação;
e)
o papel do Estado e das políticas públicas e a sua
inviabilidade no capitalismo em crise estrutural gerido pela
burocracia do PT;
f)
a necessidade de uma ruptura revolucionária com a sociedade
capitalista para que as demandas da saúde mental, como outras
demandas humanas, sejam efetivamente atendidas.
Daniel
M. Delfino e Karen A. de Carvalho
Maio
2014
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