5.11.15

Comentário sobre o ato do dia de luta antimanicomial de 18 de maio de 2014


No sábado dia 18 de maio de 2014 aconteceu em São Paulo um ato do dia de luta antimanicomial, ao qual comparecemos como observadores. Trata-se do primeiro ato desse movimento que acompanhamos, como parte daquilo que chamamos de atuação totalizante, ou seja, uma perspectiva abrangente das questões humanas, que vá para além daquilo que é imediatamente econômico e político. Existe uma ampla diversidade de questões que não são tratadas pela esquerda socialista revolucionária tradicional e que entendemos que é nosso dever explorar.
O objetivo da luta antimanicomial é o desmonte dos hospitais psiquiátricos (ou manicômios) em que os pacientes de saúde mental são amontoados como lixo humano, sujeitos a maus tratos, privações, agressões, estupros, torturas, descaso, etc., sem receber nenhum tipo de tratamento real e sem qualquer possibilidade de ressocialização, que deveria ser o objetivo da internação. Ao invés disso, o movimento da reforma psiquiátrica propõe um tratamento humanizado, sem internação ou confinamento, próximo das famílias, acompanhado por profissionais especializados, em uma rede multidisciplinar de atenção à saúde.
Nessa primeira aproximação de nossa parte, nos deparamos com vários problemas. Assim como nas lutas mais diretamente econômicas, aqui também existem linhas políticas em disputa. O ato não surge por geração espontânea, ele é convocado e construído por organizações e ativistas que possuem uma orientação, um projeto e um discurso.
O ato reuniu um número razoavelmente grande de pessoas para um sábado à tarde, no mesmo dia da Virada Cultural da prefeitura (atividade que mereceria um comentário à parte), ou talvez por isso mesmo. Cerca de 500 a 700 pessoas marcharam da Avenida Paulista ao Anhangabaú, escoltadas por pequeno efetivo policial e caminhando ao som de batuques. Compunham a passeata profissionais da saúde mental, estudantes de psicologia, pacientes da saúde mental e seus familiares. Encaramos como um aspecto muito positivo a mobilização dos usuários dos serviços de saúde mental, do ponto de vista do resgate da sua dignidade e auto-estima.
Não identificamos a presença de nenhum setor da esquerda tradicional organizada, intervindo enquanto organização, apenas a presença de um ou dois militantes, que compareceram enquanto indivíduos. Agregaram-se à marcha “militantes” de outras causas paralelas, como o movimento pela descriminalização da maconha (que distribuíram um folheto de impressão luxuosa, o que abre uma grande interrogação quanto à sua independência em relação ao financiamento).
O questionamento quanto à independência afeta porém de maneira mais grave o principal setor que responde pela organização da marcha, a Frente Estadual Antimanicomial. A frente se compõe de entidades, grupos e ativistas da área da saúde mental. Ainda que isso não esteja explícito nos seus materiais ou mesmo que uma boa parte dos participantes não esteja sequer ciente disso, o impulso para a Frente e seus atos vem de uma entidade de classe, o Conselho Regional de Psicologia – CRP / SP, que, em última instância, é dirigido por setores do PT. Trata-se então de um dos muitos movimentos sociais em que militantes de base do PT, ou da “velha guarda do PT”, ou simpatizantes do PT, ainda participam e impulsionam com alguma combatividade, como os movimentos de direitos humanos, LGBT, atendimento à população de rua, etc.
Esses setores ainda têm alguma combatividade e “know how” de mobilização, pois não é simples reunir essa quantidade de pessoas para um ato. Mas essa combatividade se limita à sua causa específica, não vai além dela, e o que é mais importante, não questiona o elemento central, o projeto político em aplicação no país pelo PT, que é o responsável em última instância pela continuidade dos problemas sociais que os organizadores da marcha querem de alguma forma combater. Além disso, o limite dessa combatividade está em manifestações “bem comportadas”, em atos de pressão, em que não há a menor sombra de ação direta, enfrentamento real, etc. Nos causou muita estranheza entre as bandeiras do ato a municipalização da saúde mental. Por que a municipalização é melhor do que a gestão pelo estado ou pelo governo federal? Isso não ficou claro, mas para bom entendedor meia palavra basta: Haddad do PT é o atual prefeito do município de São Paulo.
Portanto além de não questionar a política do governo federal do PT de modo geral, o ato quer subordinar a política para saúde mental ao governo municipal do PT. Só isso já bastaria para acender o sinal de alerta. Há algumas armadilhas graves que precisamos debater a respeito desse movimento.
Uma primeira armadilha é: por mais que a luta antimanicomial seja uma reivindicação correta, por conta da necessidade de humanizar o tratamento aos pacientes da saúde mental, ela corre o risco de se tornar mais um aspecto do processo de desmonte neoliberal do Estado. Assim como o Estado se desobriga de oferecer educação de qualidade, sucateando e desmontando a escola, o Estado pode também se desobrigar de oferecer tratamento à saúde mental, desmontando as estruturas que existem. Ao invés de tratamento em manicômio (que está errado), podemos ter tratamento nenhum (que está erradíssimo). Não é que manter os manicômios seja “menos pior”, mas é que a reivindicação de tratamento de qualidade em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) deve estar no mesmo plano da reivindicação de desmonte dos hospitais psiquiátricos. Do contrário, teremos apenas o desmonte dos hospitais psiquiátricos. Se não há um debate muito bem feito, o Estado pode muito bem atender a reivindicação de desmonte dos manicômios e em lugar disso oferecer coisa nenhuma. Ou ainda, o estado pode simplesmente terceirizar o serviço a entidades como ONGs, ou coisa pior, entidades religiosas, que embolsariam verbas em troca de um serviço tão desqualificado quanto o dos manicômios. Voltando ao campo da educação, o Estado adotou o discurso da “inclusão” de crianças deficientes nas escolas, mas isso é mero pretexto para deixar de financiar instituições especializadas em crianças deficientes, jogando o problema no colo dos professores, já massacrados por uma série de problemas no trabalho com as crianças “comuns”, sem que o Estado lhes ofereça nenhum tipo de recurso ou qualificação. O Estado pode incorporar esse discurso da reforma psiquiátrica, mas não para aperfeiçoar o tratamento aos pacientes e sim para abandoná-los no colo das famílias e de profissionais de CAPS sem estrutura.
Uma segunda armadilha é: o discurso da reforma psiquiátrica e da humanização ao tratamento dos pacientes de saúde mental não pode se tornar um “elogio da loucura”, e aqui falamos em elogio da loucura não no sentido de Erasmo de Roterdã, mas no sentido de Foucault. A defesa dos pacientes da saúde mental não pode se tornar uma defesa do irracionalismo e um ataque à razão. Os pacientes da saúde mental não podem ser soltos dos manicômios porque a “sua razão” particular tem o mesmo “direito de cidadania” que a razão dos “normais”, como no discurso dos irracionalistas pós-modernos. Esse discurso está em um dos slogans do ato: “qual é a sua locura?” O pressuposto dessa pergunta é de que somos todos loucos, e ao mesmo tempo, somos todos normais, ou seja, ninguém é louco. Precisamos ser muito cuidadosos com esse discurso para não compactuar com o relativismo pós-moderno. Nos círculos de profissionais da área e simpatizantes, nas faculdades de psicologia, o pós-modernismo, o relativismo, com seu discurso “politicamente correto” e vazio é o que aparece como fundamento filosófico. Nosso fundamento filosófico como marxistas é outro, e precisamos dizer com clareza: razão é razão e loucura é loucura. Ao mesmo tempo, precisamos concordar que “de perto ninguém é normal”, e que a definição de saúde mental, como está em Winnicott, não é a ausência de loucura, mas a capacidade de entrar na loucura e sair dela.
Uma terceira armadilha é: a reforma psiquiátrica e o tratamento humanizado aos pacientes de saúde mental não pode ser defendido de uma forma oportunista e superficial como se defende mais uma vítima do sistema. Na falta de uma militância que dê resultado em alguma frente, diversas correntes correm atrás de vítimas para defender. Um homossexual é agredido aqui? Vamos em defesa dos homossexuais! Um índio é expropriado acolá? Vamos em defesa dos índios! Não podemos ser uma espécie de “bombeiro das causas perdidas”, apagando os incêndios do capitalismo. Os problemas devem ser abordados na sua especificidade e com a devida profundidade. É preciso ter conhecimento de causa e inserção na realidade para falar no assunto com autoridade e ser reconhecido. É preciso ter o pé no barro e fazer a lição de casa e o trabalho de base. É preciso conhecer em detalhe a realidade sobre a qual se está atuando, para não chegar com respostas prontas e artificiais. Não podemos ser “arroz de festa” das manifestações.
Uma quarta armadilha é: tanto no caso dos pacientes da saúde mental, como dos usuários de drogas, da população de rua, dos presidiários, etc., não podemos assumir a postura de que são, sempre, sem qualquer exceção ou diferenciação, por definição e automaticamente, apenas e unicamente vítimas inocentes de um Estado perverso e de um capitalismo desumano. Em alguns casos, essas vítimas são também agressores, e isso é preciso reconhecer também. Em alguns casos, alguns setores dessa população dever ser sim isolados do convívio social por não terem condições de conviver com os demais sem se tornarem agressivos e destrutivos. Essas medidas devem ser tomadas em qualquer sociedade, seja ela capitalista ou socialista. Claro que a sociedade capitalista o faz de maneira desumana, empilha as pessoas em manicômios, presídios, albergues, etc., sem qualquer estrutura, fazendo-os vítimas de agressões, estupros, abusos, torturas, privações, maus tratos, etc., sem a menor condição de serem ressocializados, o que deve ser combatido. E que numa sociedade socialista, esse setor a ser isolado será muito menor, e terá uma chance real de ressocialização. As internações não serão uma prisão perpétua, no máximo acontecerão em períodos de crise, conforme a avaliação técnica de profissionais qualificados do setor, etc.
Uma quinta armadilha é: nossa política para esse setor se confronta com os preconceitos, a desinformação e o bombardeio ideológico que sofrem diariamente os trabalhadores. Para a maior parte da classe trabalhadora, as demandas do movimento antimanicomial ou das lutas por direitos humanos soam irreais: “abolir os manicômios? Então vão soltar os loucos nas ruas para matar as pessoas?” “descriminalizar as drogas? Então vão soltar os drogados nas ruas para assaltar as pessoas?”. É preciso desfazer um imenso trabalho de desinformação e envenenamento ideológico que a burguesia e seus agentes fazem para impedir que os trabalhadores vejam a realidade de maneira complexa e multifacetada como é, e as soluções dos problemas com muitas dimensões e detalhes.
Essas são, a nosso ver, as armadilhas que terão que ser contornadas se se quer construir uma intervenção no setor. Essas armadilhas e o caráter governista do ato somente saltam aos olhos para a visão treinada de militantes marxistas revolucionários. A maior parte dos participantes do ato, a sua base, os profissionais de saúde mental e estudantes de psicologia e serviço social não distinguem a linha do PT por trás do discurso da municipalização, entre outras razões, pelo fato de que o PT não se apresenta como PT nos atos e fóruns do movimento, mas como CRP e Frente Estadual Antimanicomial. A base desses atos participa deles movida por um desejo vago de ativismo, de estar em movimento, de lutar por alguma coisa, de “fazer o bem”, de apaziguar a consciência, etc. Pode-se dizer então que ao menos uma parte dessa base está em disputa para uma política classista.
O PT trata a base do movimento como massa de manobra. Havia caravanas de outros municípios, provavelmente todos governados pelo PT, em que os profissionais do setor provavelmente são convocados pelas chefias. O PT conduz esse movimento sem se preocupar em politizá-lo fornecendo-lhe fundamentos teóricos e consistência programática. O PT não se apresenta como PT, não faz defesa do governo Dilma, não entra nas questões de fundo. No máximo faz a crítica do governo estadual (PSDB) e no mais se limita a levantar algumas bandeiras aparentemente válidas. Feito isso, o PT introduz então, como contrabando, aquela palavra de ordem que lhe interessa, no caso a municipalização da saúde mental, por onde deve conseguir alguns cavar cargos para os aprendizes de burocratas que aparelham o movimento. Sua intervenção se limita ao imediato e fragmenta as questões.
Na verdade, trata-se de uma avenida aberta a quem quiser explorar. Se tivéssemos um panfleto nesse ato, poderíamos causar grandes estragos. Claro que não está em aberto a disputa desse movimento e que o PT reagiria diante de qualquer ameaça ao seu controle. Mas o que é preciso destacar é que, com um discurso minimamente elaborado, temos condições de ganhar uma setor que nunca teve contato com um discurso socialista e mostrar todo um novo horizonte de luta. Pelo menos num primeiro momento, até que se acirrasse a disputa, teríamos um terreno fértil para semear. Como marxistas revolucionários, podemos dialogar com a base desses movimentos com uma metodologia oposta à do PT: politizando as questões, relacionando o específico ao geral, apresentando a explicação da realidade com base nos sólidos fundamentos do marxismo.
A conclusão que fica é que:
- o ato e o movimento antimanicomial são governistas, portanto não podemos participar da sua construção e convocação sem uma crítica e uma diferenciação, de preferência em panfleto próprio;
- ainda que haja muitos problemas, é muitíssimo possível dialogar com setores de base do movimento a partir de uma política classista para a saúde mental;
- essa política deve incluir as seguintes questões:
a) o agravamento dos problemas de saúde mental nas condições degenerativas do capitalismo em crise societal;
b) a relação entre a pauta antimanicomial e a pauta dos direitos humanos, contra a higienização social e a criminalização da miséria, a onda repressiva e a ofensiva conservadora;
c) as melhorias exigidas nos serviços sociais de atendimento para saúde mental, usuários de drogas, população de rua, como parte de reformas sociais necessárias;
d) as necessidades dos profissionais do setor em termos de condições de trabalho, recursos, qualificação;
e) o papel do Estado e das políticas públicas e a sua inviabilidade no capitalismo em crise estrutural gerido pela burocracia do PT;
f) a necessidade de uma ruptura revolucionária com a sociedade capitalista para que as demandas da saúde mental, como outras demandas humanas, sejam efetivamente atendidas.

Daniel M. Delfino e Karen A. de Carvalho
Maio 2014



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