3.11.15

Brevíssimo comentário sobre a questão das drogas



A recente “onda de violência” em São Paulo (ver o texto “Na guerra entre a polícia e o crime organizado o alvo são os trabalhadores” na página principal do site) trouxe novamente à discussão a questão das drogas. Afinal, o tráfico de drogas é o principal nicho de atvidade das organizações criminosas, aquele que obtém mais lucro e do qual derivam os demais (tráfico de armas, que por sua vez alimenta os assaltos a mão armada, sequestros, etc.). O tráfico de drogas é praticamente sinônimo de crime organizado e de violência, essas expressões são em geral intercambiáveis. Ou ainda, fala-se simplesmente em “problema das drogas”.
Ora, as drogas não representam um problema e sim dois: primeiro o uso de drogas em si e os malefícios a ele associados, entre os quais a dependência; e segundo, os crimes de violência associados ao fato de que as drogas são proibidas, praticados pelas organizações do comércio ilegal de drogas e pelas forças policiais encarregadas da sua repressão (e que na verdade disputam parte do seu lucro). É preciso separar as duas dimensões do problema. Pois se o comércio de drogas não fosse proibido, existiria apenas o primeiro problema e não o segundo. A proibição das drogas, como uma política de Estado destinada a lidar com o primeiro problema (o uso de drogas e a dependência), não resolve esse problema, e acaba criando outro, os crimes de violência associados ao tráfico.
A descriminalização do uso de drogas não acabaria de uma vez por todas com todo tipo de crime, pois como vimos no texto citado acima, continuaria havendo a miséria provocada pelo capitalismo, que é a causa fundamental da prática de crimes. Entretanto, é muito razoável supor que o crime diminuiria bastante. A atual situação de proibição das drogas gera muito mais prejuízos sociais do que a eventual descriminalização. A violência provocada pela guerra das organizações do tráfico com a polícia e pela guerra dessas organizações entre si representa uma forma de opressão que castiga cotidianamente principalmente as populações das periferias. Diariamente acontecem dezenas de mortes nesses confrontos, seja pelas armas de policiais ou de organizações do tráfico. Esse número de mortes, comparável ao de países em situação de conflagração, só se torna socialmente tolerável porque se trata de mortos das classes subalternas, que são tratados pela mídia como meras estatísticas. A ideologia dos meios de comunicação só trata como vítimas os brancos e pessoas de classe média para cima. Esse número inaceitável de mortes tenderia a diminuir enormemente se as drogas passassem a ser comercializadas legalmente. Se empresas que operam dentro da lei passassem a vender drogas, diminuiria a necessidade dos usuários de recorrer a comerciantes ilegais. O tráfico deixaria de ser lucrativo e de recrutar seus soldados e “aviõezinhos".
O pressuposto de que estamos partindo é de que é impossível impedir que as pessoas usem drogas, o máximo que se pode fazer é reduzir os danos que as drogas provocam. A militarização da questão das drogas, baseada numa ideologia proibicionista, é uma política que já se provou fracassada. Ao longo da história da humanidade praticamente todas as sociedades fizeram uso de substâncias que alteram o estado de consciência, seja para fins de rituais religiosos, seja para a simples obtenção de prazer. Apenas no século XX algumas drogas foram proscritas na maioria dos países, como maconha, ópio e cocaína, enquanto outras permaneceram sendo consideradas legais, como o álcool e o tabaco. A maior parte dessa proibição partiu dos Estados Unidos, por motivos políticos, seja para reprimir os trabalhadores de origem mexicana, seja para reprimir os movimentos contra a guerra do Vietnã, seja para vigiar os países da América Latina. De modo geral, a proibição do uso de drogas é reforçada pelas religiões, que de resto querem reprimir toda forma de prazer, como fazem em relação ao sexo.
A proibição do consumo de drogas obedece a critérios políticos, não técnicos. Ainda que o consumo de qualquer droga tenha efeitos potencialmente nocivos para o usuário, a decisão de usá-las ou não deve permanecer sendo uma escolha do indivíduo, não do Estado. Nos casos em que o usuário causa prejuízos a terceiros, como o motorista embriagado, ou como o dependente químico que rouba para alimentar seu vício, esse usuário deve ser devidamente responsabilizado pelas ações que cometeu, não pelo consumo de drogas em si. Esses casos devem ser vistos com a dimensão que realmente tem, de uma minoria. Nem todo usuário de drogas se torna um viciado, assim como nem todo usuário de álcool se torna um alcoólatra. Não se pode confundir uso de drogas com abuso, não se pode confundir usuário com viciado (ainda que algumas drogas tenham maior poder de provocar dependência). E acima de tudo, não se pode atribuir ao Estado o poder de legislar sobre o que os indivíduos fazem para obter prazer para si.
Para reduzir os danos provocados pelo uso de drogas, é preciso construir uma estrutura adequada dentro do sistema de saúde para tratar desse problema. Além de descriminalizar as drogas hoje proibidas, seria preciso criar uma taxação sobre elas, e também sobre as drogas que hoje são legalizadas. Os recursos dessa taxação seriam usados para financiar o tratamento do primeiro problema mencionado acima, ou seja, os malefícios causados pela droga. As drogas atualmente legalizadas, como álcool e o tabaco também são socialmente muito destrutivas. Basta lembrar a quantidade de casos de câncer e outros problemas de saúde causados pelo cigarro, ou a quantidade de acidentes automobilísticos, com mortes, ferimentos e prejuízos provocados pelo consumo de álcool, ou ainda, os casos de violência doméstica causados por embriaguez, etc. As indústrias de álcool e tabaco deveriam ser pesadamente taxadas de modo a financiar o tratamento dos problemas diretamente relacionados ao uso de seus produtos. A mesma abordagem deveria ser empregada para todo tipo de droga, tanto álcool e tabaco quanto maconha, cocaína, etc.: a taxação sobre os usuários deve financiar o tratamento dos dependentes. Evidentemente, existem casos extremos de drogas que não são passíveis de qualquer uso recreativo, como o crack, totalmente destrutivas. Para esses casos especiais, o sistema de saúde teria que ter uma abordagem especial (que não se confunde com a internação compulsória hoje sendo aplicada, que não passa de uma medida de higienização social e legitimação do autoritarismo e da militarização).
Para finalizar, é preciso ir à raiz primordial do problema e considerar o fato de que muitos usuários, seja de drogas hoje consideradas legais ou ilegais, somente se tornam viciados porque o consumo da droga acaba sendo uma forma de escapar da miséria subjetiva da sociedade capitalista. Não é apenas a miséria material que causa sofrimento, mas também a miséria espiritual, a falta de sentido, de realização, de humanidade, de relações plenas, num mundo baseado na lógica da competição e da mercadoria. O uso de drogas muitas vezes é o refúgio contra essa realidade bárbara. Ná há campanha educativa ou restrição à publicidade que possam fazer com que as pessoas deixem de buscar alívio em drogas, nos momentos em que a miséria existencial da vida alienada sob o capitalismo assola nossas individualidades estranhadas. Apenas o fim do capitalismo, da exploração e do trabalho alienado permitirá a construção de relações humanas livres e um uso humano do tempo. Consequentemente, o uso de drogas (assim como os casos de loucura, os crimes, etc.) passará a ser um fenômeno minoritário, residual. E mesmo que as drogas continuem sendo usadas, esse uso não terá o mesmo conteúdo dramático que tem hoje, de alívio existencial, restando apenas o seu aspecto recreativo.

Daniel M. Delfino
Novembro 2012


Nenhum comentário: