A
recente “onda de violência” em São Paulo (ver o
texto “Na guerra entre a polícia e o crime organizado o alvo
são os trabalhadores” na página principal do site)
trouxe novamente à discussão a questão das
drogas. Afinal, o tráfico de drogas é o principal nicho
de atvidade das organizações criminosas, aquele que
obtém mais lucro e do qual derivam os demais (tráfico
de armas, que por sua vez alimenta os assaltos a mão armada,
sequestros, etc.). O tráfico de drogas é praticamente
sinônimo de crime organizado e de violência, essas
expressões são em geral intercambiáveis. Ou
ainda, fala-se simplesmente em “problema das drogas”.
Ora,
as drogas não representam um problema e sim dois: primeiro o
uso de drogas em si e os malefícios a ele associados, entre
os quais a dependência; e segundo, os crimes de violência
associados ao fato de que as drogas são proibidas, praticados
pelas organizações do comércio ilegal de drogas
e pelas forças policiais encarregadas da sua repressão
(e que na verdade disputam parte do seu lucro). É preciso
separar as duas dimensões do problema. Pois se o comércio
de drogas não fosse proibido, existiria apenas o primeiro
problema e não o segundo. A proibição das
drogas, como uma política de Estado destinada a lidar com o
primeiro problema (o uso de drogas e a dependência), não
resolve esse problema, e acaba criando outro, os crimes de violência
associados ao tráfico.
A
descriminalização do uso de drogas não acabaria
de uma vez por todas com todo tipo de crime, pois como vimos no texto
citado acima, continuaria havendo a miséria provocada pelo
capitalismo, que é a causa fundamental da prática de
crimes. Entretanto, é muito razoável supor que o crime
diminuiria bastante. A atual situação de proibição
das drogas gera muito mais prejuízos sociais do que a eventual
descriminalização. A violência provocada pela
guerra das organizações do tráfico com a polícia
e pela guerra dessas organizações entre si representa
uma forma de opressão que castiga cotidianamente
principalmente as populações das periferias.
Diariamente acontecem dezenas de mortes nesses confrontos, seja pelas
armas de policiais ou de organizações do tráfico.
Esse número de mortes, comparável ao de países
em situação de conflagração, só se
torna socialmente tolerável porque se trata de mortos das
classes subalternas, que são tratados pela mídia como
meras estatísticas. A ideologia dos meios de comunicação
só trata como vítimas os brancos e pessoas de classe
média para cima. Esse número inaceitável de
mortes tenderia a diminuir enormemente se as drogas passassem a ser
comercializadas legalmente. Se empresas que operam dentro da lei
passassem a vender drogas, diminuiria a necessidade dos usuários
de recorrer a comerciantes ilegais. O tráfico deixaria de ser
lucrativo e de recrutar seus soldados e “aviõezinhos".
O
pressuposto de que estamos partindo é de que é
impossível impedir que as pessoas usem drogas, o máximo
que se pode fazer é reduzir os danos que as drogas provocam. A
militarização da questão das drogas, baseada
numa ideologia proibicionista, é uma política que já
se provou fracassada. Ao longo da história da humanidade
praticamente todas as sociedades fizeram uso de substâncias que
alteram o estado de consciência, seja para fins de rituais
religiosos, seja para a simples obtenção de prazer.
Apenas no século XX algumas drogas foram proscritas na maioria
dos países, como maconha, ópio e cocaína,
enquanto outras permaneceram sendo consideradas legais, como o álcool
e o tabaco. A maior parte dessa proibição partiu dos
Estados Unidos, por motivos políticos, seja para reprimir os
trabalhadores de origem mexicana, seja para reprimir os movimentos
contra a guerra do Vietnã, seja para vigiar os países
da América Latina. De modo geral, a proibição do
uso de drogas é reforçada pelas religiões, que
de resto querem reprimir toda forma de prazer, como fazem em relação
ao sexo.
A
proibição do consumo de drogas obedece a critérios
políticos, não técnicos. Ainda que o consumo de
qualquer droga tenha efeitos potencialmente nocivos para o usuário,
a decisão de usá-las ou não deve permanecer
sendo uma escolha do indivíduo, não do Estado. Nos
casos em que o usuário causa prejuízos a terceiros,
como o motorista embriagado, ou como o dependente químico que
rouba para alimentar seu vício, esse usuário deve ser
devidamente responsabilizado pelas ações que cometeu,
não pelo consumo de drogas em si. Esses casos devem ser vistos
com a dimensão que realmente tem, de uma minoria. Nem todo
usuário de drogas se torna um viciado, assim como nem todo
usuário de álcool se torna um alcoólatra. Não
se pode confundir uso de drogas com abuso, não se pode
confundir usuário com viciado (ainda que algumas drogas tenham
maior poder de provocar dependência). E acima de tudo, não
se pode atribuir ao Estado o poder de legislar sobre o que os
indivíduos fazem para obter prazer para si.
Para
reduzir os danos provocados pelo uso de drogas, é preciso
construir uma estrutura adequada dentro do sistema de saúde
para tratar desse problema. Além de descriminalizar as drogas
hoje proibidas, seria preciso criar uma taxação sobre
elas, e também sobre as drogas que hoje são
legalizadas. Os recursos dessa taxação seriam usados
para financiar o tratamento do primeiro problema mencionado acima, ou
seja, os malefícios causados pela droga. As drogas atualmente
legalizadas, como álcool e o tabaco também são
socialmente muito destrutivas. Basta lembrar a quantidade de casos de
câncer e outros problemas de saúde causados pelo
cigarro, ou a quantidade de acidentes automobilísticos, com
mortes, ferimentos e prejuízos provocados pelo consumo de
álcool, ou ainda, os casos de violência doméstica
causados por embriaguez, etc. As indústrias de álcool e
tabaco deveriam ser pesadamente taxadas de modo a financiar o
tratamento dos problemas diretamente relacionados ao uso de seus
produtos. A mesma abordagem deveria ser empregada para todo tipo de
droga, tanto álcool e tabaco quanto maconha, cocaína,
etc.: a taxação sobre os usuários deve financiar
o tratamento dos dependentes. Evidentemente, existem casos extremos
de drogas que não são passíveis de qualquer uso
recreativo, como o crack, totalmente destrutivas. Para esses casos
especiais, o sistema de saúde teria que ter uma abordagem
especial (que não se confunde com a internação
compulsória hoje sendo aplicada, que não passa de uma
medida de higienização social e legitimação
do autoritarismo e da militarização).
Para
finalizar, é preciso ir à raiz primordial do problema e
considerar o fato de que muitos usuários, seja de drogas hoje
consideradas legais ou ilegais, somente se tornam viciados porque o
consumo da droga acaba sendo uma forma de escapar da miséria
subjetiva da sociedade capitalista. Não é apenas a
miséria material que causa sofrimento, mas também a
miséria espiritual, a falta de sentido, de realização,
de humanidade, de relações plenas, num mundo baseado na
lógica da competição e da mercadoria. O uso de
drogas muitas vezes é o refúgio contra essa realidade
bárbara. Ná há campanha educativa ou restrição
à publicidade que possam fazer com que as pessoas deixem de
buscar alívio em drogas, nos momentos em que a miséria
existencial da vida alienada sob o capitalismo assola nossas
individualidades estranhadas. Apenas o fim do capitalismo, da
exploração e do trabalho alienado permitirá a
construção de relações humanas livres e
um uso humano do tempo. Consequentemente, o uso de drogas (assim como
os casos de loucura, os crimes, etc.) passará a ser um
fenômeno minoritário, residual. E mesmo que as drogas
continuem sendo usadas, esse uso não terá o mesmo
conteúdo dramático que tem hoje, de alívio
existencial, restando apenas o seu aspecto recreativo.
Daniel
M. Delfino
Novembro
2012
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