Depois
de entrar no circuito das mobilizações de massa que se
estendem pelo mundo desde a Primavera Árabe em 2011, o Brasil
deve entrar também no debate estratégico sobre o modo
como essas mobilizações determinarão daqui em
diante a luta anticapitalista. Essas mobilizações não
tiveram as organizações tradicionais como partidos e
sindicatos no seu comando. Pelo contrário, as massas foram às
ruas convocadas pelas redes sociais da internet, e as organizações
tradicionais tiveram que seguí-las, à reboque. De modo
geral, os partidos e sindicatos se converteram em instituições
adaptadas à legalidade do Estado capitalista, acostumadas a
uma disputa de posições milimétrica, rotineira e
institucionalizada, jogando dentro das regras estabelecidas. Por
isso, não tiveram agilidade para acompanhar os processos de
luta.
As novas
mobilizações rejeitam essas regras, são
espontâneas, imedatistas e intransigentes. As massas nas ruas
não negociam com a polícia, ocupam o espaço e o
defendem enquanto podem, batem e apanham. Por meio da ação
direta, forçam o Estado e seus poderes a retroceder. Dessa
forma, as mobilizações estariam supostamente realizando
a vindicação prática da teoria anarquista, que
rejeita por princípio qualquer concessão ao Estado e as
demais regras de jogo pelas quais jogam as organizações
tradicionais. 1 X 0 contra as organizações partidárias
e sindicais. Mas já não se trata aqui do anarquismo
clássico, de Bakunin, Kropotkin ou Malatesta, mas do
anarquismo dos Sex Pistols, o anarcopunk, cyberpunk, o anonymous.
O
neoanarquismo das mobilizações, com cabelo moicano ou
máscara do filme “V de Vingança”, se escora na
espontaneidade e horizontalidade das massas. Não é
possível fazer assembleias e votações nesse
movimento, não é possível manipular os
resultados com manobras burocráticas, justamente porque não
há burocracia. Não é possível eleger
representantes, porque não há cargos de representação.
A lógica antiburocrática das mobilizações
contrasta com as fórmulas prontas com as quais o Estado está
acostumado a lidar com os movimentos sociais (e com as quais os
partidos e sindicatos estão acostumados a comandá-los).
O potencial de ruptura dessas mobilizações deixa os
defensores da ordem atordoados, mas também desconcerta os
adeptos da militância tradicional.
Problemas
da rixa entre anarquismo e socialismo
Por
enquanto, os partidos e organizações tradicionais que
se colocam no campo anticapitalista têm reagido de uma forma
defensiva, meramente reivindicando o seu direito de participar dos
atos. Refugiam-se no direito democrático de participar (no que
aliás estão corretos), mas ao fazer disso o seu único
cavalo de batalha na disputa estratégica, recusam-se a
reconhecer que algo radicalmente novo está acontecendo, que
precisará ser analisado de maneira profunda, e com isso buscam
se eximir da tarefa de repensar os métodos de ação.
Os
anarquistas, porém, também não estão
isentos de pecados. Nas mobilizações de São
Paulo, foram setores anarquistas no interior do Movimento Passe Livre
que pela primeira vez proibiram os partidos de participar com suas
bandeiras. Uma coisa é aparelhar o movimento, ou seja, querer
se colocar na frente sem ter participado da sua construção,
um vício deplorável das organizações de
esquerda, que de maneira oportunista querem ganhar visibilidade com a
luta construída pelos outros. Outra coisa porém é
o direito de fazer parte do movimento, onde todos os setores que
estão na luta devem ter liberdade de debater e criticar as
propostas uns dos outros. Num segundo momento, quando grupos de
skinheads e neonazistas quiseram expulsar os militantes dos partidos
das mobilizações para lhe dar um conteúdo de
direita, o MPL se omitiu na defesa das organizações de
esquerda.
Com
isso, setores do anarquismo revelam também o mesmo vício
de aparelhamento, tendo como única preocupação
expulsar os partidos do movimento, convertendo-se assim, sem
perceber, no “partido dos sem partido”, mas que não deixa
de ser um partido. Sua prática tradicional nos movimentos
sociais, por mais que tenha a virtude da ação direta
que as organizações socialistas perderam, tem também
o mesmo viés sectário e aparelhista. Em nome da
horizontalidade, colocam a forma acima do conteúdo. Com isso,
enfraquecem a necessária unidade dos setores anticapitalistas
contra os defensores desse sistema, aqueles fardados e os de cabeça
raspada.
As
partes e o todo na luta contra o capital
A
novidade formal das mobilizações de massa desta década
não invalida o seu conteúdo essencial, de manifestação
da crise estrutural do capitalismo. É a análise
científica das contradições do capitalismo
(hábito que as organizações socialistas também
perderam, viciadas na repetição de dogmas e fórmulas
prontas) que explica os processos em andamento. Um movimento não
se cria por imitação e voluntarismo. A tentativa de
imitar o “Ocupar Wall Street” em São Paulo em 2011 beirava
o patético. O Brasil só entrou na onda de mobilizações
quando o esgotamento do modelo econômico em aplicação
no país começou a acumular insatisfações
(inflação, endividamento, assédio moral nos
locais de trabalho), a tal ponto que os R$ 0,20 de tarifa pudessem
ser a gota d'água. As contradições da economia e
da produção ainda são o fator que empurra as
pessoas à luta, mesmo que elas próprias não o
percebam. Os métodos de luta tradicionais da classe
trabalhadora, com suas greves que paralisam a produção,
ainda são a arma decisiva capaz de abalar o sistema.
As
organizações tradicionais, porém, transformaram
o seu apego à classe trabalhadora em fetiche, levando à
acomodação e adaptação social. Com isso,
sua superioridade teórica e programática fica em
segundo plano e abre espaço para falsas alternativas que
surfam na onda do pós-modernismo, da “multiplicidade” de
sujeitos sociais, da descentralização como virtude, dos
anonimos como heróis. É urgente recuperar a capacidade
de teorizar a partir da totalidade social do capitalismo (totalidade
que não é uma soma justaposta das partes, mas a lógica
do conjunto), para apontar os caminhos que levem de fato a um
questionamento do sistema e sua substituição por uma
outra ordem social. Este é só o início de um
longo debate.
Daniel M.
Delfino
Julho
2013
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