3.11.15

O Brasil na era das mobilizações e o debate de alternativas


Depois de entrar no circuito das mobilizações de massa que se estendem pelo mundo desde a Primavera Árabe em 2011, o Brasil deve entrar também no debate estratégico sobre o modo como essas mobilizações determinarão daqui em diante a luta anticapitalista. Essas mobilizações não tiveram as organizações tradicionais como partidos e sindicatos no seu comando. Pelo contrário, as massas foram às ruas convocadas pelas redes sociais da internet, e as organizações tradicionais tiveram que seguí-las, à reboque. De modo geral, os partidos e sindicatos se converteram em instituições adaptadas à legalidade do Estado capitalista, acostumadas a uma disputa de posições milimétrica, rotineira e institucionalizada, jogando dentro das regras estabelecidas. Por isso, não tiveram agilidade para acompanhar os processos de luta.
As novas mobilizações rejeitam essas regras, são espontâneas, imedatistas e intransigentes. As massas nas ruas não negociam com a polícia, ocupam o espaço e o defendem enquanto podem, batem e apanham. Por meio da ação direta, forçam o Estado e seus poderes a retroceder. Dessa forma, as mobilizações estariam supostamente realizando a vindicação prática da teoria anarquista, que rejeita por princípio qualquer concessão ao Estado e as demais regras de jogo pelas quais jogam as organizações tradicionais. 1 X 0 contra as organizações partidárias e sindicais. Mas já não se trata aqui do anarquismo clássico, de Bakunin, Kropotkin ou Malatesta, mas do anarquismo dos Sex Pistols, o anarcopunk, cyberpunk, o anonymous.
O neoanarquismo das mobilizações, com cabelo moicano ou máscara do filme “V de Vingança”, se escora na espontaneidade e horizontalidade das massas. Não é possível fazer assembleias e votações nesse movimento, não é possível manipular os resultados com manobras burocráticas, justamente porque não há burocracia. Não é possível eleger representantes, porque não há cargos de representação. A lógica antiburocrática das mobilizações contrasta com as fórmulas prontas com as quais o Estado está acostumado a lidar com os movimentos sociais (e com as quais os partidos e sindicatos estão acostumados a comandá-los). O potencial de ruptura dessas mobilizações deixa os defensores da ordem atordoados, mas também desconcerta os adeptos da militância tradicional.

Problemas da rixa entre anarquismo e socialismo
Por enquanto, os partidos e organizações tradicionais que se colocam no campo anticapitalista têm reagido de uma forma defensiva, meramente reivindicando o seu direito de participar dos atos. Refugiam-se no direito democrático de participar (no que aliás estão corretos), mas ao fazer disso o seu único cavalo de batalha na disputa estratégica, recusam-se a reconhecer que algo radicalmente novo está acontecendo, que precisará ser analisado de maneira profunda, e com isso buscam se eximir da tarefa de repensar os métodos de ação.
Os anarquistas, porém, também não estão isentos de pecados. Nas mobilizações de São Paulo, foram setores anarquistas no interior do Movimento Passe Livre que pela primeira vez proibiram os partidos de participar com suas bandeiras. Uma coisa é aparelhar o movimento, ou seja, querer se colocar na frente sem ter participado da sua construção, um vício deplorável das organizações de esquerda, que de maneira oportunista querem ganhar visibilidade com a luta construída pelos outros. Outra coisa porém é o direito de fazer parte do movimento, onde todos os setores que estão na luta devem ter liberdade de debater e criticar as propostas uns dos outros. Num segundo momento, quando grupos de skinheads e neonazistas quiseram expulsar os militantes dos partidos das mobilizações para lhe dar um conteúdo de direita, o MPL se omitiu na defesa das organizações de esquerda.
Com isso, setores do anarquismo revelam também o mesmo vício de aparelhamento, tendo como única preocupação expulsar os partidos do movimento, convertendo-se assim, sem perceber, no “partido dos sem partido”, mas que não deixa de ser um partido. Sua prática tradicional nos movimentos sociais, por mais que tenha a virtude da ação direta que as organizações socialistas perderam, tem também o mesmo viés sectário e aparelhista. Em nome da horizontalidade, colocam a forma acima do conteúdo. Com isso, enfraquecem a necessária unidade dos setores anticapitalistas contra os defensores desse sistema, aqueles fardados e os de cabeça raspada.

As partes e o todo na luta contra o capital
A novidade formal das mobilizações de massa desta década não invalida o seu conteúdo essencial, de manifestação da crise estrutural do capitalismo. É a análise científica das contradições do capitalismo (hábito que as organizações socialistas também perderam, viciadas na repetição de dogmas e fórmulas prontas) que explica os processos em andamento. Um movimento não se cria por imitação e voluntarismo. A tentativa de imitar o “Ocupar Wall Street” em São Paulo em 2011 beirava o patético. O Brasil só entrou na onda de mobilizações quando o esgotamento do modelo econômico em aplicação no país começou a acumular insatisfações (inflação, endividamento, assédio moral nos locais de trabalho), a tal ponto que os R$ 0,20 de tarifa pudessem ser a gota d'água. As contradições da economia e da produção ainda são o fator que empurra as pessoas à luta, mesmo que elas próprias não o percebam. Os métodos de luta tradicionais da classe trabalhadora, com suas greves que paralisam a produção, ainda são a arma decisiva capaz de abalar o sistema.
As organizações tradicionais, porém, transformaram o seu apego à classe trabalhadora em fetiche, levando à acomodação e adaptação social. Com isso, sua superioridade teórica e programática fica em segundo plano e abre espaço para falsas alternativas que surfam na onda do pós-modernismo, da “multiplicidade” de sujeitos sociais, da descentralização como virtude, dos anonimos como heróis. É urgente recuperar a capacidade de teorizar a partir da totalidade social do capitalismo (totalidade que não é uma soma justaposta das partes, mas a lógica do conjunto), para apontar os caminhos que levem de fato a um questionamento do sistema e sua substituição por uma outra ordem social. Este é só o início de um longo debate.

Daniel M. Delfino
Julho 2013


Nenhum comentário: