Na
edição de nº 79 do jornal do Espaço
Socialista, o companheiro Sérgio Lessa publicou mais um texto
da série de materiais de formação teórica,
com o propósito de responder, conforme o título do
texto, “Por que as revoluções do século XX não
levaram à sociedade socialista?”
(http://espacosocialista.org/portal/?p=4003).
Na nota introdutória do artigo, a coordenação do
Espaço Socialista deixou claro que este tema é uma
questão ainda em aberto no movimento dos trabalhadores e
também dentro da própria organização, de
modo que publicamos o texto de Lessa como uma contribuição
ao debate. Seguiremos publicando as contribuições do
companheiro Lessa, as quais reputamos valiosíssimas para a
formação dos militantes, ativistas e trabalhadores e
para o debate rumo à construção de uma
alternativa socialista.
O
que apresento a seguir é mais uma contribuição
individual, assinada por mim, Daniel M. Delfino, e que portanto
também não necessariamente reflete a posição
do conjunto do Espaço Socialista. Ao entrar nesse debate,
ressalto mais uma vez que o texto de Sérgio Lessa foi escrito
com o propósito de formação, portanto sem o
espaço adequado para entrar em detalhes na argumentação.
Assim, ao fazer uma crítica ao texto, de certa forma estou
sendo “injusto”, já que o objeto da crítica não
se propunha também, por sua vez, a se colocar como instrumento
de polêmica, e dessa forma não pôde expor todo o
arsenal necessário para defender suas posições.
Mesmo assim, em face da importância do tema, e considerando
essa ressalva, a polêmica se faz necessária.
Onde
concordo
De
saída, concordo em alguns pontos com o companheiro Sérgio
Lessa, mesmo tendo uma compreensão ligeiramente diferente
sobre cada um desses pontos de concordância. Para começar,
as revoluções do século XX de fato não
abriram a transição para o socialismo. Os processos
iniciados naquele momento foram derrotados. Isso tem como
conseqüência a conclusão de que houve mudanças
estruturais no mundo desde então, e de que a luta de classes e
o desafio das revoluções não se colocam da mesma
forma hoje que no início do século XX, mas de maneira
bem diferente. O simples fato de termos que explicar que a URSS (e
China, Cuba, Coréia do Norte, Vietnã, etc.,) não
era socialista, e de que portanto não defendemos o “modelo”
que existia naqueles países já é um problema.
Hoje a maior parte do senso comum (influenciado é claro pela
propaganda dos apologetas do capitalismo) ainda diz que não
acredita no socialismo porque já “deu errado” na URSS e
outros casos (isso quando sequer tem conhecimento de que existiu algo
que foi chamado de “socialismo”). Esse é um obstáculo
sério, que não existia quando os revolucionários
lutaram pelo poder naquela época.
Uma
segunda concordância está em que também entendo
que nos países que romperam com o capitalismo permaneceu de pé
o sistema do capital, ou seja, o valor econômico abstrato, que
se reproduz de maneira ampliada através da exploração
do trabalho de tipo assalariado, sob a tutela do Estado. As
revoluções substituíram a exploração
privada capitalista pela exploração estatal
burocrática. Ao romper com o capitalismo, não se inicia
automaticamente, de maneira mecânica, o socialismo. No caso
concreto do século XX, o que surgiram foram regimes
intermediários, que iniciaram a transição para
além do capitalismo, mas que foram interrompidos a certa
altura do caminho. Ao serem interrompidos, permaneceram com uma forma
mista, com elementos não capitalistas (fim da propriedade
privada dos meios de produção, planificação
centralizada) e permanência do sistema do capital (valor,
trabalho assalariado e Estado) misturados. Essa forma mista,
finalmente, não tendia para a superação do
capital e a construção do socialismo, mas para a
restauração do capitalismo, que foi o que de fato
aconteceu.
Uma
terceira concordância é o reconhecimento de que as
revoluções trouxeram enorme desenvolvimento material
para os países que romperam com o capitalismo (ainda que não
tenham rompido com o sistema do capital). O fato de que nesses países
a burguesia foi expropriada e os meios de produção
estatizados; a instauração da planificação
centralizada, em lugar da anarquia do mercado capitalista; e o
monopólio do comércio exterior pelo estado; esses
elementos combinados foram suficientes para que países
atrasados e semifeudais como a Rússia e a China saltassem em
poucas décadas o que as potências capitalistas levaram
séculos para atingir. É claro que a extensão
territorial, as riquezas naturais e o volume populacional desses
países ajudaram, mas sem a revolução jamais
teriam chegado a ser as potências que são hoje. E é
claro também que esse salto tinha os seus limites, e em algum
momento iria “bater no teto”, como de fato aconteceu. O modo de
produção neles instalado, ao não avançar
de fato para o socialismo, o que não poderia fazer sem uma
nova revolução interna e internacional, só
poderia retornar para o capitalismo, como de fato aconteceu (esse
ponto não está presente na explicação de
Lessa).
Por
último, também concordo que o capital atingiu um
estágio de crise estrutural, em que os mecanismos clássicos
de administração das contradições do
sistema não mais funcionam. A superprodução de
mercadorias e de capital não pode mais ser dissipada pela
simples destruição de capital, como nas crises cíclicas
anteriores, que provocaram duas guerras mundiais para que o
capitalismo pudesse se reciclar. Uma nova guerra mundial hoje, em que
todas as potências estão equipadas com armas nucleares,
significaria a destruição da humanidade, e da própria
burguesia inclusive. Assim, a superprodução tem que ser
deslocada para outras esferas, como a da especulação
financeira, o consumo perdulário de recursos em mercadorias
com vida útil artificialmente reduzida (taxa de utilização
decrescente das mercadorias), a criação de necessidades
artificiais, a produção destrutiva de mais armamentos,
guerras parciais de recolonização, etc. Esse
deslocamento, por sua vez, não resolve os problemas do
capitalismo, ao contrário cria outros: o impulso para
renovação tecnológica produz o desemprego
estrutural, o aumento da produção de objetos de pouca
utilização produz uma crise ambiental, e assim por
diante.
Onde
discordo
Estabelecidos
os pontos em que tenho acordo, passo para os pontos em que não
concordo. O raciocínio do companheiro Sérgio Lessa é
de que as revoluções do século XX não
poderiam dar certo porque esbarravam num limite objetivo: ainda havia
margem para um certo grau de desenvolvimento das forças
produtivas em países atrasados, no contexto de um modo de
produção ainda baseado no trabalho proletário,
ou seja, no trabalho assalariado, alienado. Uma vez que ainda era
possível obter esse desenvolvimento por dentro de um sistema
baseado no trabalho proletário, as revoluções
podiam estacionar no meio do caminho, romper com o capitalismo, e
estabelecer formas intermediárias temporariamente viáveis,
tais como as que existiram na URSS e demais países não
capitalistas. E podiam fazer isso sem seguir avançando na
busca pelo socialismo.
Sendo
assim, era possível para as correntes governantes nesses
países se acomodar nessa situação intermediária,
oferecendo melhorias para as massas, mas ao mesmo tempo preservando o
poder nas mãos da burocracia. A partir do momento em que se
instala a crise estrutural do capital, entretanto, não é
mais possível obter esse desenvolvimento por dentro de um
sistema baseado no trabalho proletário. Somente rompendo com a
lógica do capital e ultrapassando o trabalho alienado seria
possível obter novos avanços. Os países não
capitalistas não deram esse passo, e o modo de produção
neles vigente tornou-se inviável. Em algumas décadas,
esse modo de produção intermediário seria
derrubado e haveria a restauração capitalista.
Entretanto,
o texto em questão não alcança o momento da
derrubada do modo de produção vigente nos países
não capitalistas e do seu retorno ao redil do capitalismo. A
elaboração se detém na explicação
de que as revoluções não avançaram para o
socialismo porque os países que romperam com o capitalismo
tinham margem para desenvolvimento mesmo mantendo um modo de produção
baseado no trabalho proletário. Em outras palavras, a
explicação oferecida diz que os países que
romperam com o capitalismo não estavam maduros para avançar
para o socialismo, porque o próprio sistema do capital ainda
não havia chegado a sua crise estrutural.
Considero
essa explicação um determinismo grosseiro, com algumas
conseqüências muito graves. A primeira delas é que
resolve um problema criando outro. De um lado, supostamente resolve o
problema de porque as revoluções não levaram ao
socialismo: porque o capital ainda não havia atingido o
estágio de sua crise estrutural. Ainda havia margem para que o
capital fizesse concessões (ou tolerasse as conquistas dos
trabalhadores), tanto pela via reformista social-democrata como pela
via burocrática stalinista. Mas se é assim, então
por que no período atual, agora que o capital está
nessa fase de crise estrutural (e já fazem 4 décadas),
portanto agora que não há mais margem para reformas e
concessões, e que temos condições de partir de
um patamar de abundância e alto desenvolvimento das forças
produtivas, e que portanto já há condições
materiais para uma transição ao socialismo, agora que
estão dadas todas essas condições, não
acontecem nem sequer revoluções? O que falta para que a
crise estrutural abra um novo período revolucionário?
Na perspectiva adotada por Lessa, não sabemos.
Outro
absurdo: se na época mais revolucionária da história
da humanidade, entre 1905 e 1949, quando aconteceram revoluções
em praticamente todos os continentes, etc., se nesse período o
capital ainda não havia atingido a crise estrutural, portanto,
não havia ainda um grau de abundância e desenvolvimento
suficiente das forças produtivas (e portanto ainda havia
espaço para um desenvolvimento sob a égide do trabalho
alienado), então, na verdade, seguindo esse raciocínio,
os revolucionários não deveriam ter feito a revolução!
O capitalismo ainda não estava maduro para ser derrubado, e
nem o socialismo para ser alcançado. Lenin, Trotsky, Rosa,
Gramsci, Lukacs, e todos os revolucionários da primeira metade
do século XX, todos eles deveriam ter guardado as armas e
esperado mais algumas décadas, até que o capital
chegasse à crise estrutural. E que dizer então de Marx,
Engels e seus companheiros no longínquo século XIX,
desde as barricadas de 1848 até a Comuna de Paris? Não
deveriam ter tentado o “assalto ao céu”, como disse Marx?
Não
posso aceitar essa conclusão. Ainda que a crise estrutural não
estivesse instalada, houve crises muito graves, houve guerras
mundiais, houve brechas no poder das burguesias. E o que talvez seja
o elemento principal, houve lutas massivas dos trabalhadores. A
classe operária estava na ofensiva pela construção
de uma nova sociedade, com seus sindicatos, partidos, associações,
fundos de ajuda mútua, caixas de assistência,
publicações, bibliotecas, clubes de futebol, etc. A
tarefa dos revolucionários era intervir nessas lutas para
tentar superar o capitalismo. Se o socialismo seria atingido ou não,
isso dependeria do resultado final da luta. Mas a luta tinha que ser
feita, até mesmo para deixar para a posteridade algum ponto de
apoio a partir do qual continuar a caminhada. As revoluções
do século XX poderiam não ter chegado ao socialismo,
poderiam retroceder de diversas maneiras, poderiam esbarrar em
limites materiais, no desenvolvimento insuficiente das forças
produtivas, etc. Mas não estava escrito que necessariamente
tinham que se afundar no beco sem saída do stalinismo. Outras
alternativas eram possíveis, e os revolucionários que
pegaram em armas o fizeram corretamente ao lutar por tais
alternativas.
O
terceiro absurdo: essa explicação implicitamente admite
que, caso já estivéssemos no estágio de uma
crise estrutural do capital, no momento em que aconteceram as
revoluções (ou caso aconteçam novas revoluções
nos dias atuais, em que já chegamos a tal estágio)
alguns países isoladamente poderiam chegar ao socialismo. E
isso não é possível, uma vez que o socialismo só
pode ser estabelecido em escala mundial. Essa perspectiva da
necessidade de uma revolução mundial não aparece
na explicação de Lessa. O texto se desenvolve tendo um
pressuposto implícito de que alguns países romperam com
o capitalismo, mas não chegaram ao socialismo, e poderiam ter
chegado, a não ser tão somente por um problema de
natureza objetiva, um limite histórico, a ausência de
uma crise estrutural. Mas isso não é correto, esses
países que romperam com capitalismo precisavam, também,
como condição sine qua non para o avanço rumo
ao socialismo, lutar pela revolução mundial.
Individualmente,
os países em que acontecerem revoluções e
derrubarem o capitalismo podem instalar regimes transitórios,
que impulsionem o processo de construção do socialismo.
Mas o socialismo propriamente dito só é possível
em escala mundial, com a socialização das forças
produtivas da humanidade, a multiplicação da ciência
e da tecnologia a partir do seu patamar mais desenvolvido. Inclusive,
era isso o que defendiam os revolucionários que atuaram
naqueles países e naquele período. Cada um lutava pela
revolução em seu país e entendia essa luta como
parte da luta geral pela revolução mundial. Por isso,
uma primeira alternativa que se pode oferecer à resposta dada
por Lessa é de que as revoluções do século
XX não levaram à sociedade socialista porque não
se expandiram em escala mundial, e ficaram isoladas em alguns poucos
países atrasados. E isso nos conduz então a uma série
de outras questões.
O
problema de fundo
A
explicação determinista dada por Lessa se desenvolve a
partir de um pressuposto implícito, que é o de
desconsiderar completamente a direção política e
a estratégia aplicada nos processos revolucionários.
Essa explicação é uma tentativa abstrata e
unilateral de negar qualquer importância à esfera da
política. Na tentativa de corrigir os erros da esquerda
socialista no século XX, em especial a perspectiva politicista
de praticamente todas as correntes e organizações (que
aliás permanece no século XXI), comete-se o erro
oposto, de negar completamente qualquer papel positivo para a ação
na esfera da política. E esse defeito de origem que está
na base da explicação dada por Lessa causa vários
problemas, que impede que tal explicação seja uma
resposta real e totalizante para a questão.
O
primeiro desses problemas é a incapacidade de fazer uma
análise concreta da história da luta pelo socialismo no
século XX. Sem fazer essa análise, o texto de Lessa
acaba por igualar indistintamente o stalinismo, o maoísmo, o
trotskismo, o anarquismo, etc., e tratá-los todos
indevidamente como puras seitas ou "religiões
ideológicas", sem nenhuma base social real e sem nenhuma
condição de oferecer caminhos distintos para a
humanidade. Essa igualação é um erro grave, pois
não permite reler a história encontrando as
alternativas possíveis que se colocavam concretamente em cada
situação. No caso da revolução mais
importante do século XX, reconhecida como tal por Lessa, a
Revolução Russa de 1917, fez muita diferença na
História o fato de a direção da URSS ter sido
assumida por um setor, o stalinismo, a partir de 1924, que
representava os interesses sociais da burocracia, e não pela
Oposição de Esquerda liderada por Trotsky.
Para
começar, o stalinismo defendia a tese do “socialismo em um
só país”. Trotsky, fiel à perspectiva do
marxismo revolucionário, defendia a expansão da
revolução para outros países. Se essa linha
tivesse prevalecido na III Internacional, e outras revoluções
tivessem acontecido em outros países, a URSS poderia ter saído
do isolamento dramático em que se encontrava. Poderia ter
construído um intercâmbio com outras sociedades não
capitalistas que teriam surgido de outras revoluções.
Com isso, o campo dos países não capitalistas poderia
ter obtido um salto em suas forças produtivas, a ponto de se
colocar em condições de cercar e futuramente suplantar
o imperialismo, e iniciar, aí sim, a construção
do socialismo, em escala mundial. Essa é uma das alternativas
que poderiam ter se materializado, a depender do resultado da disputa
política. Outra questão é se a linha de Trotsky
tinha condições de vencer a disputa no interior da
URSS, já que a burocratização da revolução
era um processo social e não apenas político.
O
stalinismo não era a causa da burocratização,
era também uma conseqüência (dialeticamente, os
processos sociais e políticos se influenciam de maneira
recíproca). Mas de qualquer forma, a estratégia
internacionalista, a independência de classe, a revolução
permanente, permaneciam como perspectivas políticas, como
alternativas estratégicas, em outros processos que se
desenvolveram para além da URSS, como a China, a Revolução
Espanhola, as revoluções do pós II Guerra, etc.
Reconhecer que a alternativa estratégica defendida por Trotsky
poderia ter feito diferença até um certo ponto não
significa desconhecer os erros e limites teóricos do próprio
Trotsky, nem os erros muito mais graves daquilo que se constituiu
como trotskismo (ou trotskismos) depois de sua morte. Significa
tratar da História de maneira concreta. Os problemas de cada
corrente teórico/política, de cada estratégia,
tem que ser explicados em detalhe para que se encontre o fio da meada
da luta histórica pela revolução, determinando
os erros e acertos cometidos ao longo do processo.
Sem
reconstruir o fio da meada e apontar os erros e os acertos, como
vamos colaborar para construir a revolução no século
XXI? Esse é o segundo problema embutido nesse pressuposto de
negação da política. Ao renunciar a qualquer
análise concreta de uma estratégia política
determinada, na verdade se renuncia a qualquer tipo de ação.
Cai-se num determinismo que não reconhece nenhum papel ativo
para o elemento subjetivo na revolução. Se o que
determina a possibilidade de transição rumo ao
socialismo é a vigência ou não de condições
objetivas, ou seja, a presença ou não da crise
estrutural do sistema do capital, então o elemento subjetivo
não determina absolutamente nada, não há nenhuma
margem para a intervenção do sujeito histórico.
Se o que determina tudo é a vigência da crise
estrutural, então devemos apenas esperar uma catástrofe
social e/ou ambiental gigantesca, provocada pela abundância/miséria.
Mas e quando essa catástrofe se materializar, o que fazemos?
Ficamos sentados olhando os trabalhadores fazerem tudo? Não há
necessidade de um projeto assumido de maneira coletiva, consciente e
organizada?
A
necessidade de uma superação dialética da esfera
alienada da política
Essa
concepção de negação absoluta e abstrata
da política não oferece uma resposta que permita servir
como base para a construção de um projeto, uma
alternativa, uma estratégia a ser apresentada como referência
para a luta pela revolução no século XXI. Essa
concepção busca contornar o debate sobre as
alternativas políticas, ao invés de enfrentá-lo.
Para isso, basta condenar a política à irrelevância.
E essa abordagem é grosseiramente unilateral, anti dialética.
No esforço de negar o politicismo que contaminou toda a
esquerda do século XX, e que permanece no século XXI,
desenvolve-se uma negação da política que é
absoluta e abstrata, mas não é real. A negação,
no sentido dialético, como ensinam os clássicos, é
um processo em três dimensões: destruição,
conservação e ultrapassagem. E a negação
da política tem que ser também um processo de
destruição, conservação e ultrapassagem.
Ou
seja, em termos concretos, a direção política na
revolução tem que existir, mas com o objetivo de
suprimir a política enquanto esfera alienada (destruição
do Estado burguês, e suas instituições
fundamentais, poderes executivo, legislativo, judiciário,
forças armadas, polícia, prisões, direito
burguês), construir um poder transicional que de certa forma
ainda conserva elementos de uma forma de estado, de poder político
(ditadura do proletariado, com o máximo de democracia para os
trabalhadores e repressão sobre a burguesia, lúmpens e
setores contra revolucionários, de modo a garantir a luta pela
revolução mundial) e por fim negar a política,
restituindo os poderes de decisão aos trabalhadores,
dissolvendo o estado e o poder político. O objetivo de negar a
política tem que ser obtido por um meio que é também
de certa forma político. Essa dificuldade terá que ser
enfrentada por nós que lutamos pela revolução no
século XXI. Temos que por em prática uma luta que vá
para além da política, mas fazendo uso da política,
de uma maneira que caminhe para a negação da política.
A
intenção de onde parte a concepção de
Lessa, de combater o politicismo da esquerda, está na sua
origem correta. Ela parte de uma avaliação de um grave
erro da esquerda que atravessou o século XX e permanece
presente nas organizações e correntes que reivindicam a
revolução no presente: a obsessão pelo poder
político. A esquerda socialista revolucionária tem
tratado a revolução de maneira reducionista como
sinônimo de uma simples tomada do poder político. E isso
não é totalmente correto, pois a tomada do poder é
uma parte do processo, o objetivo da revolução é
muito mais amplo e profundo. É preciso que os trabalhadores
disputem o poder na sociedade, mas não apenas para ocupar o
poder (nem muito menos o poder do Estado tal como existe, que deve
ser quebrado, dissolvido, destruído), e sim para dissolver o
poder político enquanto esfera separada da sociedade. A
revolução é política “com alma social”,
como dizia Marx. A revolução é uma mudança
na postura dos trabalhadores, que passam de seres passivos para
sujeitos ativos no processo de reprodução social,
decidindo de maneira coletiva, consciente e organizada sobre a
produção e todos os aspectos da vida.
A
luta pela revolução tem que ter em mente essa
perspectiva de uma revolução social, uma mudança
na estrutura profunda da sociedade, na atitude dos trabalhadores
perante todas as questões, trazendo-os para a discussão
dos problemas, ampliando ao máximo os fóruns de
decisão. Como parte desse processo, destrói-se o Estado
burguês. Essa era a perspectiva clássica dos
revolucionários do início do século XX. É
essa perspectiva que precisamos retomar hoje. Em algum momento do
século XX essa perspectiva foi perdida. É preciso
recuperá-la, mas a explicação oferecida por
Lessa, ao se negar a fazer uma arqueologia concreta da luta pela
revolução no século XX, uma análise
detalhada das alternativas disponíveis então em
disputa, bloqueia o caminho para uma explicação real e
concreta.
Considerações
finais
Para
finalizar, infelizmente também não vou poder responder
aqui a essa questão crucial: porque as revoluções
do século XX não levaram à sociedade socialista?
Não há mais espaço aqui para apresentar sequer
um esboço de resposta, mas talvez apenas para sistematizar
algumas linhas de raciocínio, que estão implícitas
nas objeções que apresentei à explicação
de Lessa:
-
a luta pelo socialismo não foi derrotada no terreno da URSS,
mas no da revolução mundial. Quando a revolução
é derrotada nos países avançados (Alemanha,
França, etc.), a luta pelo socialismo ficou isolada na URSS;
-
ao ficar isolada, a perspectiva revolucionária tinha como
tarefa resistir dentro da URSS e fortalecer a luta pela revolução
internacional, que pudesse tirar a URSS do isolamento;
-
a primeira parte da tarefa foi cumprida até certo ponto, mas a
partir do momento em que os revolucionários foram afastados do
poder, e substituídos por representantes da burocracia, a luta
pela revolução internacional foi abandonada;
-
ao se abandonar a luta pela revolução internacional, a
URSS ao mesmo tempo se afirma como “modelo” de “socialismo”,
e as medidas que foram tomadas em função do atraso
russo, o regime de partido único, a centralização
autoritária, a ausência de democracia, foram tomadas
como regra e não como exceção que eram;
-
essa inversão da exceção que se torna regra
contaminou inclusive os setores que reivindicavam a luta pela
revolução em oposição ao stalinismo, como
os trotskistas, que adotaram um viés policitista,
reducionista, de que a revolução se limita à
luta pelo poder político (uma “crise de direção”),
abandonando a perspectiva totalizante da revolução
social;
-
algumas poucas revoluções aconteceram depois da II
Guerra (China, Cuba, Vietnã), derrubando o capitalismo em
alguns países também atrasados como a URSS, mas também
em base a uma perspectiva restrita, politicista e reducionista, de
“socialismo em um só país”;
-
os regimes adotados nesses países mantiveram a exploração
do trabalho assalariado e a extração de mais valia,
centralizada nas mãos da burocracia, ao invés da
extração econômica nas mãos de empresas
privadas;
-
ao mesmo tempo, o capitalismo, reciclado depois da destruição
provocada pelas guerras mundiais, experimentou décadas de
crescimento extraordinário, até o início dos
anos 1970;
-
no contraste com o crescimento capitalista, os países não
capitalistas, produtos das revoluções do século
XX, com seus regimes de transição interrompida,
esbarraram nos seus limites internos, na falta de dinamismo, na
estagnação, e acabaram retornando ao capitalismo;
-
a queda dos regimes existentes nos países não
capitalistas, entre 1989-91, seu retorno ao capitalismo, serviu como
propaganda da vitória do capitalismo na “Guerra Fria”,
como prova da vigência eterna do capitalismo, instalando a
ideia de “fim da história” e de que não há
alternativa ao capitalismo;
-
a queda URSS e do leste europeu e toda a propaganda em torno do “fim
da história” ofuscaram a crise estrutural do capital que
vinha desde a década de 1970, escondendo a impossibilidade de
um novo período de crescimento como o do pós II Guerra,
ocultando o atingimento de limites estruturais absolutos desse modo
de produção;
-
as contradições do capitalismo seguiram produzindo
novas crises e instabilidades (ou seja, a história não
acabou), mas as novas gerações que lutam contra as
conseqüências do capitalismo estão desprovidas de
uma alternativa social totalizante a esse sistema, porque não
visualizam o socialismo como uma possibilidade;
-
é preciso reconstruir a perspectiva do socialismo, retomando
os princípios do internacionalismo, da independência de
classe, da superação da política, da revolução
social em todas as suas dimensões.
Encerro
essa contribuição ao debate com a ideia de que os
revolucionários do passado estiveram diante de escolhas, a
respeito das quais tomaram decisões, que tiveram
conseqüências. No nosso presente, há muitas
escolhas que podemos fazer, e que vão afetar os resultados do
futuro. Só no futuro saberemos onde erramos. O que podemos
fazer hoje é tentar errar menos. E para isso temos que superar
os erros dos que atuaram antes de nós. Superar significa
aprender com eles, e não ignorá-los, jogá-los na
vala comum da irrelevância. Essa falsa negação do
passado, sem uma superação real, é uma escolha
que não podemos fazer!
Daniel M.
Delfino
Junho
2015
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