7.11.15

Por que as revoluções não levaram à sociedade socialista? Um debate com Sérgio Lessa



Na edição de nº 79 do jornal do Espaço Socialista, o companheiro Sérgio Lessa publicou mais um texto da série de materiais de formação teórica, com o propósito de responder, conforme o título do texto, “Por que as revoluções do século XX não levaram à sociedade socialista?” (http://espacosocialista.org/portal/?p=4003). Na nota introdutória do artigo, a coordenação do Espaço Socialista deixou claro que este tema é uma questão ainda em aberto no movimento dos trabalhadores e também dentro da própria organização, de modo que publicamos o texto de Lessa como uma contribuição ao debate. Seguiremos publicando as contribuições do companheiro Lessa, as quais reputamos valiosíssimas para a formação dos militantes, ativistas e trabalhadores e para o debate rumo à construção de uma alternativa socialista.
O que apresento a seguir é mais uma contribuição individual, assinada por mim, Daniel M. Delfino, e que portanto também não necessariamente reflete a posição do conjunto do Espaço Socialista. Ao entrar nesse debate, ressalto mais uma vez que o texto de Sérgio Lessa foi escrito com o propósito de formação, portanto sem o espaço adequado para entrar em detalhes na argumentação. Assim, ao fazer uma crítica ao texto, de certa forma estou sendo “injusto”, já que o objeto da crítica não se propunha também, por sua vez, a se colocar como instrumento de polêmica, e dessa forma não pôde expor todo o arsenal necessário para defender suas posições. Mesmo assim, em face da importância do tema, e considerando essa ressalva, a polêmica se faz necessária.

Onde concordo
De saída, concordo em alguns pontos com o companheiro Sérgio Lessa, mesmo tendo uma compreensão ligeiramente diferente sobre cada um desses pontos de concordância. Para começar, as revoluções do século XX de fato não abriram a transição para o socialismo. Os processos iniciados naquele momento foram derrotados. Isso tem como conseqüência a conclusão de que houve mudanças estruturais no mundo desde então, e de que a luta de classes e o desafio das revoluções não se colocam da mesma forma hoje que no início do século XX, mas de maneira bem diferente. O simples fato de termos que explicar que a URSS (e China, Cuba, Coréia do Norte, Vietnã, etc.,) não era socialista, e de que portanto não defendemos o “modelo” que existia naqueles países já é um problema. Hoje a maior parte do senso comum (influenciado é claro pela propaganda dos apologetas do capitalismo) ainda diz que não acredita no socialismo porque já “deu errado” na URSS e outros casos (isso quando sequer tem conhecimento de que existiu algo que foi chamado de “socialismo”). Esse é um obstáculo sério, que não existia quando os revolucionários lutaram pelo poder naquela época.
Uma segunda concordância está em que também entendo que nos países que romperam com o capitalismo permaneceu de pé o sistema do capital, ou seja, o valor econômico abstrato, que se reproduz de maneira ampliada através da exploração do trabalho de tipo assalariado, sob a tutela do Estado. As revoluções substituíram a exploração privada capitalista pela exploração estatal burocrática. Ao romper com o capitalismo, não se inicia automaticamente, de maneira mecânica, o socialismo. No caso concreto do século XX, o que surgiram foram regimes intermediários, que iniciaram a transição para além do capitalismo, mas que foram interrompidos a certa altura do caminho. Ao serem interrompidos, permaneceram com uma forma mista, com elementos não capitalistas (fim da propriedade privada dos meios de produção, planificação centralizada) e permanência do sistema do capital (valor, trabalho assalariado e Estado) misturados. Essa forma mista, finalmente, não tendia para a superação do capital e a construção do socialismo, mas para a restauração do capitalismo, que foi o que de fato aconteceu.
Uma terceira concordância é o reconhecimento de que as revoluções trouxeram enorme desenvolvimento material para os países que romperam com o capitalismo (ainda que não tenham rompido com o sistema do capital). O fato de que nesses países a burguesia foi expropriada e os meios de produção estatizados; a instauração da planificação centralizada, em lugar da anarquia do mercado capitalista; e o monopólio do comércio exterior pelo estado; esses elementos combinados foram suficientes para que países atrasados e semifeudais como a Rússia e a China saltassem em poucas décadas o que as potências capitalistas levaram séculos para atingir. É claro que a extensão territorial, as riquezas naturais e o volume populacional desses países ajudaram, mas sem a revolução jamais teriam chegado a ser as potências que são hoje. E é claro também que esse salto tinha os seus limites, e em algum momento iria “bater no teto”, como de fato aconteceu. O modo de produção neles instalado, ao não avançar de fato para o socialismo, o que não poderia fazer sem uma nova revolução interna e internacional, só poderia retornar para o capitalismo, como de fato aconteceu (esse ponto não está presente na explicação de Lessa).
Por último, também concordo que o capital atingiu um estágio de crise estrutural, em que os mecanismos clássicos de administração das contradições do sistema não mais funcionam. A superprodução de mercadorias e de capital não pode mais ser dissipada pela simples destruição de capital, como nas crises cíclicas anteriores, que provocaram duas guerras mundiais para que o capitalismo pudesse se reciclar. Uma nova guerra mundial hoje, em que todas as potências estão equipadas com armas nucleares, significaria a destruição da humanidade, e da própria burguesia inclusive. Assim, a superprodução tem que ser deslocada para outras esferas, como a da especulação financeira, o consumo perdulário de recursos em mercadorias com vida útil artificialmente reduzida (taxa de utilização decrescente das mercadorias), a criação de necessidades artificiais, a produção destrutiva de mais armamentos, guerras parciais de recolonização, etc. Esse deslocamento, por sua vez, não resolve os problemas do capitalismo, ao contrário cria outros: o impulso para renovação tecnológica produz o desemprego estrutural, o aumento da produção de objetos de pouca utilização produz uma crise ambiental, e assim por diante.

Onde discordo
Estabelecidos os pontos em que tenho acordo, passo para os pontos em que não concordo. O raciocínio do companheiro Sérgio Lessa é de que as revoluções do século XX não poderiam dar certo porque esbarravam num limite objetivo: ainda havia margem para um certo grau de desenvolvimento das forças produtivas em países atrasados, no contexto de um modo de produção ainda baseado no trabalho proletário, ou seja, no trabalho assalariado, alienado. Uma vez que ainda era possível obter esse desenvolvimento por dentro de um sistema baseado no trabalho proletário, as revoluções podiam estacionar no meio do caminho, romper com o capitalismo, e estabelecer formas intermediárias temporariamente viáveis, tais como as que existiram na URSS e demais países não capitalistas. E podiam fazer isso sem seguir avançando na busca pelo socialismo.
Sendo assim, era possível para as correntes governantes nesses países se acomodar nessa situação intermediária, oferecendo melhorias para as massas, mas ao mesmo tempo preservando o poder nas mãos da burocracia. A partir do momento em que se instala a crise estrutural do capital, entretanto, não é mais possível obter esse desenvolvimento por dentro de um sistema baseado no trabalho proletário. Somente rompendo com a lógica do capital e ultrapassando o trabalho alienado seria possível obter novos avanços. Os países não capitalistas não deram esse passo, e o modo de produção neles vigente tornou-se inviável. Em algumas décadas, esse modo de produção intermediário seria derrubado e haveria a restauração capitalista.
Entretanto, o texto em questão não alcança o momento da derrubada do modo de produção vigente nos países não capitalistas e do seu retorno ao redil do capitalismo. A elaboração se detém na explicação de que as revoluções não avançaram para o socialismo porque os países que romperam com o capitalismo tinham margem para desenvolvimento mesmo mantendo um modo de produção baseado no trabalho proletário. Em outras palavras, a explicação oferecida diz que os países que romperam com o capitalismo não estavam maduros para avançar para o socialismo, porque o próprio sistema do capital ainda não havia chegado a sua crise estrutural.
Considero essa explicação um determinismo grosseiro, com algumas conseqüências muito graves. A primeira delas é que resolve um problema criando outro. De um lado, supostamente resolve o problema de porque as revoluções não levaram ao socialismo: porque o capital ainda não havia atingido o estágio de sua crise estrutural. Ainda havia margem para que o capital fizesse concessões (ou tolerasse as conquistas dos trabalhadores), tanto pela via reformista social-democrata como pela via burocrática stalinista. Mas se é assim, então por que no período atual, agora que o capital está nessa fase de crise estrutural (e já fazem 4 décadas), portanto agora que não há mais margem para reformas e concessões, e que temos condições de partir de um patamar de abundância e alto desenvolvimento das forças produtivas, e que portanto já há condições materiais para uma transição ao socialismo, agora que estão dadas todas essas condições, não acontecem nem sequer revoluções? O que falta para que a crise estrutural abra um novo período revolucionário? Na perspectiva adotada por Lessa, não sabemos.
Outro absurdo: se na época mais revolucionária da história da humanidade, entre 1905 e 1949, quando aconteceram revoluções em praticamente todos os continentes, etc., se nesse período o capital ainda não havia atingido a crise estrutural, portanto, não havia ainda um grau de abundância e desenvolvimento suficiente das forças produtivas (e portanto ainda havia espaço para um desenvolvimento sob a égide do trabalho alienado), então, na verdade, seguindo esse raciocínio, os revolucionários não deveriam ter feito a revolução! O capitalismo ainda não estava maduro para ser derrubado, e nem o socialismo para ser alcançado. Lenin, Trotsky, Rosa, Gramsci, Lukacs, e todos os revolucionários da primeira metade do século XX, todos eles deveriam ter guardado as armas e esperado mais algumas décadas, até que o capital chegasse à crise estrutural. E que dizer então de Marx, Engels e seus companheiros no longínquo século XIX, desde as barricadas de 1848 até a Comuna de Paris? Não deveriam ter tentado o “assalto ao céu”, como disse Marx?
Não posso aceitar essa conclusão. Ainda que a crise estrutural não estivesse instalada, houve crises muito graves, houve guerras mundiais, houve brechas no poder das burguesias. E o que talvez seja o elemento principal, houve lutas massivas dos trabalhadores. A classe operária estava na ofensiva pela construção de uma nova sociedade, com seus sindicatos, partidos, associações, fundos de ajuda mútua, caixas de assistência, publicações, bibliotecas, clubes de futebol, etc. A tarefa dos revolucionários era intervir nessas lutas para tentar superar o capitalismo. Se o socialismo seria atingido ou não, isso dependeria do resultado final da luta. Mas a luta tinha que ser feita, até mesmo para deixar para a posteridade algum ponto de apoio a partir do qual continuar a caminhada. As revoluções do século XX poderiam não ter chegado ao socialismo, poderiam retroceder de diversas maneiras, poderiam esbarrar em limites materiais, no desenvolvimento insuficiente das forças produtivas, etc. Mas não estava escrito que necessariamente tinham que se afundar no beco sem saída do stalinismo. Outras alternativas eram possíveis, e os revolucionários que pegaram em armas o fizeram corretamente ao lutar por tais alternativas.
O terceiro absurdo: essa explicação implicitamente admite que, caso já estivéssemos no estágio de uma crise estrutural do capital, no momento em que aconteceram as revoluções (ou caso aconteçam novas revoluções nos dias atuais, em que já chegamos a tal estágio) alguns países isoladamente poderiam chegar ao socialismo. E isso não é possível, uma vez que o socialismo só pode ser estabelecido em escala mundial. Essa perspectiva da necessidade de uma revolução mundial não aparece na explicação de Lessa. O texto se desenvolve tendo um pressuposto implícito de que alguns países romperam com o capitalismo, mas não chegaram ao socialismo, e poderiam ter chegado, a não ser tão somente por um problema de natureza objetiva, um limite histórico, a ausência de uma crise estrutural. Mas isso não é correto, esses países que romperam com capitalismo precisavam, também, como condição sine qua non para o avanço rumo ao socialismo, lutar pela revolução mundial.
Individualmente, os países em que acontecerem revoluções e derrubarem o capitalismo podem instalar regimes transitórios, que impulsionem o processo de construção do socialismo. Mas o socialismo propriamente dito só é possível em escala mundial, com a socialização das forças produtivas da humanidade, a multiplicação da ciência e da tecnologia a partir do seu patamar mais desenvolvido. Inclusive, era isso o que defendiam os revolucionários que atuaram naqueles países e naquele período. Cada um lutava pela revolução em seu país e entendia essa luta como parte da luta geral pela revolução mundial. Por isso, uma primeira alternativa que se pode oferecer à resposta dada por Lessa é de que as revoluções do século XX não levaram à sociedade socialista porque não se expandiram em escala mundial, e ficaram isoladas em alguns poucos países atrasados. E isso nos conduz então a uma série de outras questões.

O problema de fundo
A explicação determinista dada por Lessa se desenvolve a partir de um pressuposto implícito, que é o de desconsiderar completamente a direção política e a estratégia aplicada nos processos revolucionários. Essa explicação é uma tentativa abstrata e unilateral de negar qualquer importância à esfera da política. Na tentativa de corrigir os erros da esquerda socialista no século XX, em especial a perspectiva politicista de praticamente todas as correntes e organizações (que aliás permanece no século XXI), comete-se o erro oposto, de negar completamente qualquer papel positivo para a ação na esfera da política. E esse defeito de origem que está na base da explicação dada por Lessa causa vários problemas, que impede que tal explicação seja uma resposta real e totalizante para a questão.
O primeiro desses problemas é a incapacidade de fazer uma análise concreta da história da luta pelo socialismo no século XX. Sem fazer essa análise, o texto de Lessa acaba por igualar indistintamente o stalinismo, o maoísmo, o trotskismo, o anarquismo, etc., e tratá-los todos indevidamente como puras seitas ou "religiões ideológicas", sem nenhuma base social real e sem nenhuma condição de oferecer caminhos distintos para a humanidade. Essa igualação é um erro grave, pois não permite reler a história encontrando as alternativas possíveis que se colocavam concretamente em cada situação. No caso da revolução mais importante do século XX, reconhecida como tal por Lessa, a Revolução Russa de 1917, fez muita diferença na História o fato de a direção da URSS ter sido assumida por um setor, o stalinismo, a partir de 1924, que representava os interesses sociais da burocracia, e não pela Oposição de Esquerda liderada por Trotsky.
Para começar, o stalinismo defendia a tese do “socialismo em um só país”. Trotsky, fiel à perspectiva do marxismo revolucionário, defendia a expansão da revolução para outros países. Se essa linha tivesse prevalecido na III Internacional, e outras revoluções tivessem acontecido em outros países, a URSS poderia ter saído do isolamento dramático em que se encontrava. Poderia ter construído um intercâmbio com outras sociedades não capitalistas que teriam surgido de outras revoluções. Com isso, o campo dos países não capitalistas poderia ter obtido um salto em suas forças produtivas, a ponto de se colocar em condições de cercar e futuramente suplantar o imperialismo, e iniciar, aí sim, a construção do socialismo, em escala mundial. Essa é uma das alternativas que poderiam ter se materializado, a depender do resultado da disputa política. Outra questão é se a linha de Trotsky tinha condições de vencer a disputa no interior da URSS, já que a burocratização da revolução era um processo social e não apenas político.
O stalinismo não era a causa da burocratização, era também uma conseqüência (dialeticamente, os processos sociais e políticos se influenciam de maneira recíproca). Mas de qualquer forma, a estratégia internacionalista, a independência de classe, a revolução permanente, permaneciam como perspectivas políticas, como alternativas estratégicas, em outros processos que se desenvolveram para além da URSS, como a China, a Revolução Espanhola, as revoluções do pós II Guerra, etc. Reconhecer que a alternativa estratégica defendida por Trotsky poderia ter feito diferença até um certo ponto não significa desconhecer os erros e limites teóricos do próprio Trotsky, nem os erros muito mais graves daquilo que se constituiu como trotskismo (ou trotskismos) depois de sua morte. Significa tratar da História de maneira concreta. Os problemas de cada corrente teórico/política, de cada estratégia, tem que ser explicados em detalhe para que se encontre o fio da meada da luta histórica pela revolução, determinando os erros e acertos cometidos ao longo do processo.
Sem reconstruir o fio da meada e apontar os erros e os acertos, como vamos colaborar para construir a revolução no século XXI? Esse é o segundo problema embutido nesse pressuposto de negação da política. Ao renunciar a qualquer análise concreta de uma estratégia política determinada, na verdade se renuncia a qualquer tipo de ação. Cai-se num determinismo que não reconhece nenhum papel ativo para o elemento subjetivo na revolução. Se o que determina a possibilidade de transição rumo ao socialismo é a vigência ou não de condições objetivas, ou seja, a presença ou não da crise estrutural do sistema do capital, então o elemento subjetivo não determina absolutamente nada, não há nenhuma margem para a intervenção do sujeito histórico. Se o que determina tudo é a vigência da crise estrutural, então devemos apenas esperar uma catástrofe social e/ou ambiental gigantesca, provocada pela abundância/miséria. Mas e quando essa catástrofe se materializar, o que fazemos? Ficamos sentados olhando os trabalhadores fazerem tudo? Não há necessidade de um projeto assumido de maneira coletiva, consciente e organizada?

A necessidade de uma superação dialética da esfera alienada da política
Essa concepção de negação absoluta e abstrata da política não oferece uma resposta que permita servir como base para a construção de um projeto, uma alternativa, uma estratégia a ser apresentada como referência para a luta pela revolução no século XXI. Essa concepção busca contornar o debate sobre as alternativas políticas, ao invés de enfrentá-lo. Para isso, basta condenar a política à irrelevância. E essa abordagem é grosseiramente unilateral, anti dialética. No esforço de negar o politicismo que contaminou toda a esquerda do século XX, e que permanece no século XXI, desenvolve-se uma negação da política que é absoluta e abstrata, mas não é real. A negação, no sentido dialético, como ensinam os clássicos, é um processo em três dimensões: destruição, conservação e ultrapassagem. E a negação da política tem que ser também um processo de destruição, conservação e ultrapassagem.
Ou seja, em termos concretos, a direção política na revolução tem que existir, mas com o objetivo de suprimir a política enquanto esfera alienada (destruição do Estado burguês, e suas instituições fundamentais, poderes executivo, legislativo, judiciário, forças armadas, polícia, prisões, direito burguês), construir um poder transicional que de certa forma ainda conserva elementos de uma forma de estado, de poder político (ditadura do proletariado, com o máximo de democracia para os trabalhadores e repressão sobre a burguesia, lúmpens e setores contra revolucionários, de modo a garantir a luta pela revolução mundial) e por fim negar a política, restituindo os poderes de decisão aos trabalhadores, dissolvendo o estado e o poder político. O objetivo de negar a política tem que ser obtido por um meio que é também de certa forma político. Essa dificuldade terá que ser enfrentada por nós que lutamos pela revolução no século XXI. Temos que por em prática uma luta que vá para além da política, mas fazendo uso da política, de uma maneira que caminhe para a negação da política.
A intenção de onde parte a concepção de Lessa, de combater o politicismo da esquerda, está na sua origem correta. Ela parte de uma avaliação de um grave erro da esquerda que atravessou o século XX e permanece presente nas organizações e correntes que reivindicam a revolução no presente: a obsessão pelo poder político. A esquerda socialista revolucionária tem tratado a revolução de maneira reducionista como sinônimo de uma simples tomada do poder político. E isso não é totalmente correto, pois a tomada do poder é uma parte do processo, o objetivo da revolução é muito mais amplo e profundo. É preciso que os trabalhadores disputem o poder na sociedade, mas não apenas para ocupar o poder (nem muito menos o poder do Estado tal como existe, que deve ser quebrado, dissolvido, destruído), e sim para dissolver o poder político enquanto esfera separada da sociedade. A revolução é política “com alma social”, como dizia Marx. A revolução é uma mudança na postura dos trabalhadores, que passam de seres passivos para sujeitos ativos no processo de reprodução social, decidindo de maneira coletiva, consciente e organizada sobre a produção e todos os aspectos da vida.
A luta pela revolução tem que ter em mente essa perspectiva de uma revolução social, uma mudança na estrutura profunda da sociedade, na atitude dos trabalhadores perante todas as questões, trazendo-os para a discussão dos problemas, ampliando ao máximo os fóruns de decisão. Como parte desse processo, destrói-se o Estado burguês. Essa era a perspectiva clássica dos revolucionários do início do século XX. É essa perspectiva que precisamos retomar hoje. Em algum momento do século XX essa perspectiva foi perdida. É preciso recuperá-la, mas a explicação oferecida por Lessa, ao se negar a fazer uma arqueologia concreta da luta pela revolução no século XX, uma análise detalhada das alternativas disponíveis então em disputa, bloqueia o caminho para uma explicação real e concreta.

Considerações finais
Para finalizar, infelizmente também não vou poder responder aqui a essa questão crucial: porque as revoluções do século XX não levaram à sociedade socialista? Não há mais espaço aqui para apresentar sequer um esboço de resposta, mas talvez apenas para sistematizar algumas linhas de raciocínio, que estão implícitas nas objeções que apresentei à explicação de Lessa:
- a luta pelo socialismo não foi derrotada no terreno da URSS, mas no da revolução mundial. Quando a revolução é derrotada nos países avançados (Alemanha, França, etc.), a luta pelo socialismo ficou isolada na URSS;
- ao ficar isolada, a perspectiva revolucionária tinha como tarefa resistir dentro da URSS e fortalecer a luta pela revolução internacional, que pudesse tirar a URSS do isolamento;
- a primeira parte da tarefa foi cumprida até certo ponto, mas a partir do momento em que os revolucionários foram afastados do poder, e substituídos por representantes da burocracia, a luta pela revolução internacional foi abandonada;
- ao se abandonar a luta pela revolução internacional, a URSS ao mesmo tempo se afirma como “modelo” de “socialismo”, e as medidas que foram tomadas em função do atraso russo, o regime de partido único, a centralização autoritária, a ausência de democracia, foram tomadas como regra e não como exceção que eram;
- essa inversão da exceção que se torna regra contaminou inclusive os setores que reivindicavam a luta pela revolução em oposição ao stalinismo, como os trotskistas, que adotaram um viés policitista, reducionista, de que a revolução se limita à luta pelo poder político (uma “crise de direção”), abandonando a perspectiva totalizante da revolução social;
- algumas poucas revoluções aconteceram depois da II Guerra (China, Cuba, Vietnã), derrubando o capitalismo em alguns países também atrasados como a URSS, mas também em base a uma perspectiva restrita, politicista e reducionista, de “socialismo em um só país”;
- os regimes adotados nesses países mantiveram a exploração do trabalho assalariado e a extração de mais valia, centralizada nas mãos da burocracia, ao invés da extração econômica nas mãos de empresas privadas;
- ao mesmo tempo, o capitalismo, reciclado depois da destruição provocada pelas guerras mundiais, experimentou décadas de crescimento extraordinário, até o início dos anos 1970;
- no contraste com o crescimento capitalista, os países não capitalistas, produtos das revoluções do século XX, com seus regimes de transição interrompida, esbarraram nos seus limites internos, na falta de dinamismo, na estagnação, e acabaram retornando ao capitalismo;
- a queda dos regimes existentes nos países não capitalistas, entre 1989-91, seu retorno ao capitalismo, serviu como propaganda da vitória do capitalismo na “Guerra Fria”, como prova da vigência eterna do capitalismo, instalando a ideia de “fim da história” e de que não há alternativa ao capitalismo;
- a queda URSS e do leste europeu e toda a propaganda em torno do “fim da história” ofuscaram a crise estrutural do capital que vinha desde a década de 1970, escondendo a impossibilidade de um novo período de crescimento como o do pós II Guerra, ocultando o atingimento de limites estruturais absolutos desse modo de produção;
- as contradições do capitalismo seguiram produzindo novas crises e instabilidades (ou seja, a história não acabou), mas as novas gerações que lutam contra as conseqüências do capitalismo estão desprovidas de uma alternativa social totalizante a esse sistema, porque não visualizam o socialismo como uma possibilidade;
- é preciso reconstruir a perspectiva do socialismo, retomando os princípios do internacionalismo, da independência de classe, da superação da política, da revolução social em todas as suas dimensões.
Encerro essa contribuição ao debate com a ideia de que os revolucionários do passado estiveram diante de escolhas, a respeito das quais tomaram decisões, que tiveram conseqüências. No nosso presente, há muitas escolhas que podemos fazer, e que vão afetar os resultados do futuro. Só no futuro saberemos onde erramos. O que podemos fazer hoje é tentar errar menos. E para isso temos que superar os erros dos que atuaram antes de nós. Superar significa aprender com eles, e não ignorá-los, jogá-los na vala comum da irrelevância. Essa falsa negação do passado, sem uma superação real, é uma escolha que não podemos fazer!

Daniel M. Delfino
Junho 2015


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