Na
segunda metade do século 20 a América Latina foi
assolada por uma onda de ditaduras militares: Brasil (1964-1985),
Argentina (1976-1983), Chile (1973-1990), Paraguai (1954-1989),
Uruguai (1973-1985), Bolívia (1964-1982), Peru (1968-1980),
Equador (1972-1979), Guatemala (1970-1985), Honduras (1963-1974),
Nicarágua (1967-1979), Panamá (1968-1989).
As
ditaduras resultaram da ação de forças internas
a cada país, os setores reacionários da classe
dominante, e externas, em especial o imperialismo estadunidense. As
forças internas eram a grande burguesia, o latifúndio,
os bancos, os setores ligados às transnacionais, mas também
as classes médias, influenciadas pela cúpula da Igreja
católica e pela maioria dos meios de comunicação.
Não se tratava portanto apenas de ditaduras militares, mas
civis-militares, ou empresariais-militares, já que contavam
com a participação e o apoio direto da burguesia e
favoreciam abertamente as classes patronais contra os trabalhadores.
Foram
décadas de terror de Estado, assassinatos, desaparecimentos,
prisões, torturas, demissões, perseguição,
exílio, vitimando em especial aqueles que lutavam pela classe
trabalhadora, lideranças operárias, camponesas,
estudantis, intelectuais, artistas, etc. Sindicatos, organizações
estudantis e populares foram fechados ou colocados sob controle do
Estado. Greves e manifestações eram proibidas ou
duramente reprimidas. A imprensa e a produção cultural
era censurada. Esmagando e amordaçando a oposição
popular, os governos militares deram livre curso à corrupção
desenfreada, à ação predatória das
empresas transnacionais, à entrega das riquezas naturais, à
exploração dos trabalhadores.
O papel
dos imperialismo estadunidense
No plano
externo, vivia-se o contexto da Guerra Fria, período de
confronto geopolítico entre a União Soviética e
os Estados Unidos, que buscaram assegurar o controle sobre o seu
“pátio traseiro”, implantando regimes ditatoriais no
continente para impedir a disseminação de movimentos e
governos simpatizantes ou tutelados pelos soviéticos. Havia um
acirramento da luta de classes em vários países, com
diversos movimentos de contestação, armados ou não,
alguns defendendo a revolução socialista como solução
para a miséria e a submissão de seus países. O
exemplo da revolução cubana de 1959 (que em 1961
adotaria definitivamente o “modelo” soviético) serviu como
um sinal de alerta para o imperialismo. Os Estados Unidos
intensificaram sua atuação na aplicação
de golpes militares, que derrubaram os governos legalmente eleitos
para estabelecer as ditaduras.
Tropas
estadunidenses foram deslocadas para apoiar os golpistas (caso da
operação “brother Sam”, em que uma frota
estadunidense posicionou-se no litoral do Brasil em 1964, para o caso
de haver resistência ao golpe), assim como agentes secretos e
assessores. Diplomatas estadunidenses deram respaldo e reconhecimento
internacional aos regimes assassinos. Tudo isso resultou, é
claro, em rendosos negócios para as empresas estadunidenses no
continente. Um dos principais instrumentos dos Estados Unidos em
favor das ditaduras militares foi o estabelecimento da “Escola das
Américas” no Panamá em 1946 (funcionando nesse local
até 1984), um centro de treinamento para os oficiais das
forças armadas dos países latino americanos, em que
mais de 60 mil militares foram instruídos em técnicas
de contra insurgência, guerra de guerrilhas, esquadrões
da morte, execuções sumárias, desaparecimento de
pessoas, interrogatório, tortura, etc.
Os
militares treinados na infame Escola das Américas foram os
autores dos golpes militares e executores da repressão que
desmantelou a resistência às ditaduras, matando e
torturando milhares de opositores em cada país. No início
da década de 1970, os militares egressos da Escola das
Américas, já empossados como ditadores em vários
países, organizaram a “Operação Condor”, uma
rede de colaboração entre os aparatos repressivos de
diversos países sulamericanos, visando caçar
dissidentes, em especial os grupos que praticavam a luta armada,
impedindo que pudessem se deslocar de um país para o outro,
perseguindo os exilados, entregando-os aos seus países de
origem, prendendo, assassinando, etc.
Após
as ditaduras, as sequelas
As lutas
para derrubar as ditaduras consumiram enormes esforços, que
envolveram múltiplas estratégias: em alguns casos a
luta armada, o lento e paciente trabalho de organização
nos bairros e movimentos populares (em especial por obra de um setor
de base da Igreja católica orientado pela Teologia da
Libertação), a reconstrução e retomada
dos sindicatos por setores combativos, a reorganização
do movimento estudantil, campanhas pela retomada das liberdades
civis, anistia para os exilados, eleições,
manifestações culturais, etc (contaram também
com fatores externos, como crises econômicas, mudança da
política do imperialismo, etc.). As ditaduras militares
deixaram feridas abertas na vida desses países, devido a
milhares de mortes, desaparecimentos, torturas, perseguições,
debilitando organizações operárias e populares,
destroçando famílias, interrompendo e traumatizando
vidas.
Depois
da retomada dos governos civis, houve em alguns países o
esforço para levar à justiça os ditadores e
comandantes militares, vários dos quais foram julgados e
condenados, em especial na Argentina e no Chile. No Brasil, ao
contrário, houve uma aberrante “Lei da Anistia”, que
anistiou os crimes cometidos “dos dois lados”, como se o lado dos
opositores do regime fosse também criminoso, quando na verdade
estava combatendo um regime ilegal. Além da lei da impunidade
para os criminosos da ditadura, o Brasil manteve a Lei de Segurança
Nacional do regime militar, e manteve a cultura repressiva,
assassina, violenta, corrupta e violadora dos direitos humanos em
suas forças policiais, em especial a PM.
A
democracia burguesa como ditadura de classe
A
manutenção dos aparatos repressivos está ligado
ao fato central de que o fim das ditaduras e a volta da democracia
não mudou as relações de classe. A possibilidade
de eleger governantes ou legisladores não muda o fato de que o
Estado existe para preservar os elementos essenciais do funcionamento
do capitalismo: a propriedade privada dos meios de produção,
o trabalho assalariado, a extração de mais valia, a
exploração. Os trabalhadores produzem toda a riqueza da
sociedade, mas são roubados diariamente ao receber na forma de
salário apenas uma fração daquilo que
produziram. A transformação do trabalho em mercadoria
dá origem a uma série de relações
alienadas que controlam todos os aspectos da vida humana, inclusive a
relação entre os sexos, a família, a educação,
etc.
Esse
roubo diário contra os trabalhadores é protegido por
lei, já que o contrato de trabalho é realizado entre
“iguais”. O trabalhador e o empresário são iguais,
já que ambos podem votar e eleger os governantes. Esse
“truque” da democracia transforma em iguais classes sociais que
são fundamentalmente diferentes por sua relação
com a reprodução social. Por isso, essa democracia
falsificada deve ser chamada pelo seu nome, o nome da classe social à
qual favorece, o nome de democracia burguesa. A democracia burguesa
segue sendo a ditadura de uma classe social, a classe dos
proprietários. O capitalismo tem essa capacidade de funcionar
com diversos tipos de superestrutura política: democracia
burguesa, ditadura fascista, monarquia absoluta, etc. Muda-se o
pessoal político, mas o sistema econômico permanece o
mesmo.
A luta
pelo fim das ditaduras na América Latina conseguiu uma vitória
parcial, a volta das liberdades civis e o direito de voto. Mas esses
mesmos direitos, paradoxalmente, se transformaram em armas nas mãos
da classe dominante para impedir que haja novas lutas. Por meio das
instituições democráticas, a classe dominante
pode iludir os trabalhadores com a promessa de que a eleição
de um novo governante pode mudar tudo, quando na verdade, só a
luta muda a vida. Por meio do legislativo e do judiciário, a
burguesia pode aprovar e aplicar leis contrárias aos
trabalhadores, sem precisar dar um golpe de Estado. É o caso
das leis contra o direito de greve e de manifestação,
etc. Ainda por cima, a burguesia controla as eleições
ao financiar as campanhas dos candidatos que lhe interessam e usar a
mídia para difamar outras candidaturas e movimentos.
A era
das democracias autoritárias
Os
trabalhadores acreditam nas instituições democráticas,
por isso se limitam a lutas pontuais e não se mobilizam para
substituir esse regime por um poder sob seu controle. Com isso, a
democracia burguesa se torna um instrumento tão eficiente para
controlar a classe dominada quanto as ditaduras mais repressoras. A
burguesia tem a capacidade de escolher o tipo de regime que seja mais
adequado para manter sua dominação. Na segunda metade
do século XX, usou as ditaduras militares. No início do
século XXI, usa as democracias burguesas.
No atual
momento, porém, ainda que a democracia burguesa continue sendo
o instrumento preferencial da classe dominante, trata-se de uma
democracia cada vez menos “democrática” e cada vez mais
autoritária e ditatorial. Essa democracia permite fazer greve,
desde que não haja prejuízo para os patrões,
desde que não se faça piquete. Permite fazer
manifestações, desde que não enfrentem de fato
os símbolos do poder. Permite lançar candidatos, desde
que não questionem os pilares do capitalismo, a propriedade
privada e a exploração. A democracia burguesa permite
que se escolha entre o vermelho do PT e os tucanos do PSDB, que
aplicam o mesmo programa nos governos federal e estadual, mas não
permite uma alternativa de fato, uma alternativa revolucionária.
Num
contexto de crise do capitalismo e aumento das lutas, a burguesia
precisa evitar que os trabalhadores se mobilizem, mas sem ainda
apelar para golpes de estado e ditaduras. A burguesia apela para a
repressão, para o uso da polícia e do judiciário
contra as greves e manifestações, o uso da mídia
para colocar o grosso da população contra as lutas. Com
a cobertura da mídia e do judiciário, a repressão
pode ser exercida sobre os setores de vanguarda que se colocam em
luta. É uma questão de vida ou morte para a burguesia
isolar esses setores de vanguarda que estão em luta e impedir
que estabeleçam a conexão com o restante dos
trabalhadores.
Para nós
trabalhadores que estão em luta, por outro lado, é uma
questão de vida ou morte organizar movimentos que envolvam o
conjunto da classe e se coloquem contra essa falsa democracia e suas
instituições, contra os partidos governantes e seus
representantes nos movimentos sociais, contra a exploração
e o capitalismo.
Daniel M.
Delfino
Outubro
2014
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