O filme
“O abutre” trata do mundo do jornalismo policial sensacionalista.
Ambientado em Los Angeles, retrata a ascensão de um
cinegrafista amador, chamado Louis Bloom, que começa de
maneira improvisada vendendo vídeos para uma emissora local, e
aos poucos se torna uma espécie de pequeno empresário
do ramo. No início, ele aparece como um jovem desempregado,
sem perspectivas, que vivia de bicos e pequenos delitos. Ao
presenciar um acidente automobilístico e a ação
de um cinegrafista “freelancer” profissional e já bem
estabelecido, Bloom resolve ingressar na área e se tornar
também cinegrafista.
Sua
coragem para quebrar as regras, se aproximar das cenas, expor em
detalhes os incidentes, chegar antes mesmo da polícia ou do
resgate, o levam para um lugar de destaque no mundo das notícias.
Suas filmagens são repetidamente exibidas como matéria
de abertura do telejornal matinal de uma emissora local. A regra
básica do jornalismo policial sensacionalista é exposta
logo no início pelo veterano cinegrafista e concorrente de
Bloom, com um poder de síntese que só é possível
na língua inglesa: “if it bleeds, it leads”, algo como,
“se tem sangue, tem manchete”. A audiência do jornalismo
“mundo cão” depende de sangue, de cenas violentas,
tiroteios, atropelamentos, incêndios, com as vítimas
sendo expostas sangrando.
Quanto
mais brutal, melhor. Louis Bloom aprende rápido, como ele
mesmo diz mais de uma vez. Tanto que aprende a manipular os
acontecimentos, para que sejam os mais espetaculares e
cinematográficos possíveis. Para ser o melhor, ele não
apenas retrata os incidentes, mas também os produz, nem que
para isso tenha que colocar vidas humanas em risco e enganar a
polícia. A ascensão de Bloom o leva até mesmo
para o apartamento da diretora de jornalismo Nina, que se torna
dependente dos seus materiais. A equação é muito
simples: violência traz audiência, audiência traz
dinheiro, dinheiro traz poder e poder traz sexo. O sexo traz
compromisso e a exigência de mais dinheiro e poder, o ciclo do
capital não pode parar.
Que o
jornalismo sensacionalista não tem escrúpulos e seja
levado ao cúmulo da desumanização pelo impulso
da concorrência por cenas mais espetaculares, isso já é
de certa forma conhecido. O mais interessante do filme, porém,
não é a simples denúncia da falta de escrúpulos
e de limites dos abutres que vivem às custas de expor a
violência urbana. O que dá ao filme uma importância
maior são dois elementos muito marcantes no seu pano de fundo:
a demonstração impiedosa da função
ideológica do jornalismo sensacionalista na luta de classes e
também da degradação social dos Estados Unidos
na era Obama.
A função
do jornalismo: meias verdades que se tornam uma mentira
Numa
certa passagem alguém diz que os programas jornalísticos
dedicam 20 segundos para as notícias que dizem respeito à
economia, política, questões sociais mais gerais, e 20
minutos para a violência urbana. Nessa proporção,
qualquer possibilidade de estímulo a uma visão geral e
crítica da realidade está impossibilitada já
desde o início. O jornalismo sucumbe ao sensacionalismo, e o
sensacionalismo transforma o jornalismo num ramo de entretenimento,
com a função narrar uma história, cujo roteiro
já está definido.
A
finalidade do jornalismo sensacionalista, sua função
como ramo da mídia, aparece por meio da personagem Nina. Como
diretora de jornalismo, ela sabe o que interessa à audiência
e ensina à equipe da emissora e ao cinegrafista Bloom. O
critério ideológico para avaliar o que é notícia
é bastante preciso. Há uma narrativa padrão que
deve ser permanentemente reforçada. As histórias que
interessam são as que mostram os brancos, bem sucedidos, de
famílias de alta renda, que moram em bairros de classe média
e de luxo, sendo vítimas de crimes cometidos por negros,
latinos e asiáticos. Isso é notícia, o restante
não é. Se os crimes acontecem nos bairros onde moram
essas minorias, já não interessam à audiência,
não são notícia.
A função
da notícia no jornalismo sensacionalista não é
expor a realidade, é enquadrá-la numa narrativa
ideologicamente pré definida. Os brancos do segmento “WASP”
(white, anglo-saxon, protestant – branco, anglo-saxão,
protestante) são os mocinhos, as minorias são os
vilões. Essa é a narrativa padrão que deve ser
reforçada, e tudo o que foge dessa narrativa deve ser oculto.
No principal incidente do filme, um traficante de drogas que mora num
bairro de luxo é assassinado com a família. Para o
jornalismo sensacionalista, o assassinato é a única
parte da realidade que interessa. Mostrar que se tratava de um
traficante não interessa. A descoberta posterior de que ele
tinha grande quantidade de cocaína em casa não precisa
ser mostrada, não é notícia, porque “estraga a
história”. A história tem que ser sempre a mesma:
brancos como vítimas, minorias como vilões.
O
jornalismo policial sensacionalista parece estar mostrando uma
realidade nua e crua, expondo em detalhes a violência urbana de
uma grande metrópole. Na verdade, essa aproximação
das lentes, essa exposição cirúrgica dos
detalhes dos incidentes, das pessoas sangrando no chão das
ruas, não está se aproximando da realidade, mas se
afastando dela. A verdade não está no detalhe em si,
mas na sua relação com o conjunto.
“A
verdade está no todo”, dizia Hegel
Para
entender a violência urbana, é preciso explicar a função
política da proibição do consumo de drogas, o
fato de que a humanidade sempre consumiu drogas, de que algumas são
permitidas e outras são proibidas; de que o critério
para a proibição não tem a ver com a letalidade
das substâncias em si (afinal, álcool e cigarro, que são
legalizados, também causam uma quantidade enorme de mortes,
doenças, violência doméstica, acidentes de
trânsito, etc.), mas com a história, a política e
a luta de classes; de que o estado pode montar um imenso aparato
policial e militar para reprimir as minorias, sob o pretexto de
reprimir o tráfico; de que os lucros do tráfico são
repartidos entre traficantes, policiais, juízes, banqueiros,
políticos, etc.
A
verdade sobre a violência urbana e sobre os incidentes
mostrados no jornalismo policial sensacionalista está no
contexto social que produz a violência, não no detalhe
dos incidentes em si. Mas o que é exaustivamente mostrado são
justamente os incidentes. A fragmentação da realidade e
a falta de visão do conjunto e do contexto só servem
para produzir medo e ódio contra as minorias, para reforçar
estereótipos, preconceitos, discriminação,
segregação e repressão.
Cumpre
assinalar também que essa metodologia não é
exclusiva do jornalismo policial estadunidense. Não se trata
apenas de que a concorrência comercial obriga as empresas de
mídia a exibir o que parece atraente para seu público,
mas de que os dirigentes dessas empresas exercem conscientemente uma
função ideológica. Seja em “O abutre” ou nos
programas “mundo cão” da TV brasileira (cujo público,
inversamente, está mais na própria periferia do que na
classe média), o jornalismo policial sensacionalista cumpre a
função política de mostrar a cada classe social
qual é o seu lugar. A mídia tem o poder de fabricar uma
narrativa que estabelece quem é digno de ser considerado
humano e cuja vida possui valor, e quem não é.
Esse
poder de apresentar grupos sociais como protagonistas e vilões
é usado em favor da manutenção de políticas
que reforçam a dominação de classe e os
interesses globais e particulares da burguesia. Tal critério é
aplicado, por exemplo, na cobertura jornalística internacional
do processo de limpeza étnica e genocídio dos
palestinos nas mãos do exército de ocupação
sionista. As vidas dos palestinos não contam, podem morrer aos
milhares, porque são parte de um povo “bárbaro”,
“fanático” e “terrorista”. As vidas que contam são
as dos israelenses, um povo “civilizado” e “democrático”.
É o mesmo caso das “balas perdidas” que matam cidadãos
da classe média carioca, e que motivam passeatas “pela paz”,
enquanto que as mortes de Amarildos e Cláudias, que se sucedem
aos milhares, não merecem sequer uma nota de rodapé.
A
decadência social nos Estados Unidos da era Obama
Outro
aspecto bastante marcante do filme “O abutre” é a crônica
da decadência social nos Estados Unidos pós crise de
2008. Louis Bloom se apresenta como alguém que não teve
muita educação formal, mas fez um curso “on line”
de administração de empresas. Para progredir na
carreira, Bloom contrata um assistente e o explora até o
limite, reproduzindo a mesma exploração de que já
foi vítima e que observa por toda parte. Ao longo do filme,
ele repete exaustivamente para seu assistente os chavões e
clichês do mundo da administração. As frases
feitas dos gurus do “management” são uma espécie de
religião para ele. Os mantras da gestão capitalista
tomam uma feição sinistra e caricata ao serem repetidos
sem parar por um personagem sem escrúpulos, e que confessa que
não gosta das pessoas.
Na
verdade, não é uma caricatura, mas a expressão
de uma realidade social brutalizada. A crise econômica de 2008
produziu um empobrecimento drástico nos Estados Unidos, que é
o país com o maior número de miseráveis e a
maior desigualdade social entre os países ricos. A classe
trabalhadora estadunidense foi penalizada com a crise, forçada
a conviver com o desemprego e o subemprego. Há uma parcela
imensa da juventude que não tem perspectiva, que vive de bicos
e subempregos. É o caso do próprio Bloom e do
assistente que ele contrata em regime ultra precarizado, como
“estagiário”, com a promessa de que se houver suficiente
esforço, será recompensado quando vier uma “avaliação
de desempenho”.
Nos
Estados Unidos, as relações trabalhistas não
estão minimamente regulamentadas, não há um
mínimo de proteção, é bastante comum que
os contratos sejam verbais. Os patrões se comprometem
oralmente a pagar uma certa quantia em dinheiro e ponto final. Em
muitos casos, como entre Bloom e seu assistente, não há
contrato de trabalho, contribuição para a previdência
social, para aposentadoria, seguro desemprego, auxílio doença
ou invalidez, etc. É o mundo do salve-se quem puder, a
distopia do liberalismo em estado puro. No final das contas, a função
do assistente (não por coincidência, um jovem de
descendência árabe) é servir como mais uma
vítima, e portanto matéria prima de mais uma
superprodução sensacionalista.
Ficha
técnica:
Nome
original: Nightcrawler
Produção:
Estados Unidos
Ano: 2014
Idiomas:
inglês
Diretor:
Dan Gilroy
Roteiro:
Dan Gilroy
Elenco:
Jake Gyllenhaal, Rene Russo, Bill Paxton, Riz Ahmed
Daniel M. Delfino
Janeiro 2015
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