Nos dias 14 e 15 de
janeiro deste ano os egípcios foram às urnas num
referendo sobre uma nova Constituição, em que o “sim”
venceu, mas apenas 33% da população do país (85
milhões de pessoas no total) foi às urnas.
A baixa
participação deve-se a um boicote empreendido pelos
opositores do governo interino. Atualmente a presidência é
ocupada pelo chefe da Suprema Corte Constitucional do Egito: Adly
Mansour, que foi nomeado após a deposição de
Mohammed Morsi em Julho de 2013. Porem, o poder, de fato, ainda está
nas mãos dos militares.
O baixo
comparecimento às urnas e o fato da Constituição
ter sido elabora por um comitê de apenas 50 pessoas deixam
dúvidas quanto a legitimidade do pleito. Além disso,
todo o período de campanha foi marcado pela repressão à
campanha do “não”, que foi praticamente impedida pelo
exército. Nos dois dias de votação 9
manifestantes foram mortos pelas forças policiais.
A Irmandade
Mulçumana, grupo religioso que defende o islamismo como base
da prática política e da vida social como um todo,
ainda não se conformou com o golpe que destituiu o seu
representante, Mohammed Morsi, que fora eleito pelo voto popular. A
organização repudia a Constituiçã
aprovada e convoca o povo egípcio para uma nova onda de
protestos. Segundo a Irmandade é necessário ir às
ruas para dar continuidade à “revolução”
iniciada a três anos atrás, quando o ditador Hosni
Mubarak renunciou sob forte pressão popular. Tal revolução
teria sido obstruída pelo golpe que alçou, novamente,
os militares ao poder do Estado.
A Constituição
votada neste mês desagrada a Irmandade basicamente por que os
principais artigos pró-islã propostos pelo governo
Morsi foram retirados. Mas, a carta aprovada por 33% da população
do Egito também desagrada muitos outros setores da sociedade,
por aumentar consideravelmente o poder dos militares, em pontos como:
indicação do ministro da defesa por uma junta militar,
criação de mecanismos que inviabilizam a fiscalização
dos gastos militares e, possibilidade de, em alguns casos, civis
serem julgados em cortes militares. Há outros pontos
antidemocráticos: o presidente indicará 5% dos
ocupantes do poder legislativo, além de uma brecha para que,
“em momentos de crise” seja possível, de forma legal,
dissolver o congresso. Os grupos que apoiam a Constituição
são partidos seculares de viés liberal, parte do
empresariado egípcio e, a imprensa privada.
Neste contexto, a
nova Constituição representou uma tentativa do governo
dos militares de legitimar seu poder, que prosseguirá com a
convocação de eleições gerais, ainda para
o primeiro semestre. O principal candidato que desponta é
justamente Abdul Fatah Al-Sissi, general que comandou o golpe contra
Morsi e a repressão aos opositores, sendo responsável,
em Agosto de 2013, pela morte de mais de 1.000 pessoas em apenas
cinco dias de manifestações! E é justamente este
general que está por trás do governo interino e que já
manifestou sua intenção de se candidatar.
Toda esta
instabilidade política no Egito tem como pano de fundo uma
grave crise econômica. O ponto de partida de todo este processo
foi a queda de Mubarak do poder depois de trinta anos de uma cruel
ditadura. A juventude, trabalhadores, funcionários públicos,
e a população em geral saíram às ruas
exigindo o fim daquele governo. Naquela conjuntura a situação
de miséria, de desemprego e, de fome chegaram a níveis
insustentáveis.
Em Janeiro de 2011,
estando a economia ainda sob os efeitos da crise de 2008, o preço
do trigo dobrou no mercado mundial. A principal alimentação
do povo egípcio, um tipo de pão chamado aïcha, à
base de trigo, se tornou quase inacessível. A ameaça da
fome impulsionou enormes mobilizações contra um governo
autoritário que não estava sensível às
demandas da população. O Egito toma a frente dos
levantes que ficariam conhecidos como “Primavera Árabe”.
Durante os anos em
que Mubarak esteve no poder os militares sempre representaram uma
elite econômica e política. E com a saída do
ditador continuam a ocupar lugar de destaque. Em 2012 organizam uma
eleição em que o candidato da Irmandade Mulçumana,
Mohammed Morsi sai vencedor.
Mas, a situação
econômica do Egito não melhora. Durante o governo Mursi,
ocorre uma acentuada desvalorização da moeda, que tem
como principal consequência a carestia dos produtos básicos
e a diminuição da importação de trigo (o
Egito importa mais de 10 milhões de toneladas de trigo ao
ano). Um problema antigo no país também continuava sem
solução: a escassez crônica de combustíveis.
Os indicadores
sociais revelam um país a beira do caos. Quase metade da
população egípcia vive abaixo ou bem perto da
linha de pobreza (ou seja, com até US$ 2 por dia). Estas
pessoas só conseguem sobreviver por causa dos vários
bilhões em subsídios gastos pelo governo. São
US$ 4 bilhões para os alimentos, especialmente o trigo e US$
14 bilhões por ano em subsídios aos combustíveis.
E mesmo com tudo isso o povo só sobrevive.
A crise mundial de
2008 atingiu praticamente todas as nações do mundo,
inclusive os países centrais do capitalismo. Ao chegar na
periferia do sistema ela tomou proporções dramáticas.
Só recentemente o capital vem apresentando sinais de tímida
melhora. Mas, somente entre os países mais desenvolvidos, os
periféricos não estão encontrando saída
para esta crise iniciada há pelo menos 5 anos! Isto pode ser
uma evidência de que a forma social regida pelo capital está
chegando ao seu limite. O sistema, como um todo, não está
mais conseguindo retomar os níveis de crescimento de anos
atrás. O novo ciclo já se inicia, então, de
forma desigual e bastante volúvel. Hoje mais do que nunca
estamos diante de uma situação em que, segundo Marx, a
burguesia só consegue vencer uma crise cíclica
preparando crises mais extensas e mais destruidoras e, ao mesmo
tempo, diminuindo os meios de evitá-las e vencê-las
quando emergirem.
No caso do Egito, o
governo Morsi tentou amenizar os efeitos da crise se empenhando em
buscar um acordo com o FMI para conseguir um empréstimo que
poderia amenizar temporariamente o sofrimento dos egípcios.
Como de costume, o órgão internacional exigiu que o
presidente adotasse uma política de austeridade intransigente
e eliminasse progressivamente os subsídios aos combustíveis
e alimentos. O que o FMI estava propondo é que o governo
simplesmente eliminasse a possibilidade de sobrevivência de
quase metade da população do Egito! Postura
absolutamente desumana, própria de uma instituição
que serve para proteger os interesses do capital.
Com medo de tomar
medidas extremamente impopulares em um período bem próximo
às eleições parlamentares, Morsi adiou a
implementação da política de austeridade, para
não atrapalhar as candidaturas da Irmandade Mulçumana.
Desagradou o FMI, não recebeu o empréstimo. Desagradou
também a população por falhar em organizar a
economia do país e melhorar a vida das pessoas, que então,
voltam às ruas. O que, por fim, desagradou os militares e as
elites locais. Para descontentamento geral some-se a tudo isso a
patente inabilidade política da Irmandade, que no auge de toda
conturbação ainda impõe uma Constituição
que restringia direitos civis (especialmente das mulheres e dos
sindicatos) e que reforçava o caráter religioso do
Estado.
Mas, há,
ainda, algo fundamental que contribuiu para a deposição
de Morsi e é o alicerce do atual poder dos militares no Egito,
os interesses do capital internacional. O capitalismo tem necessidade
de estabilidade, sobretudo em uma região em que estão
alguns dos maiores produtores de petróleo do mundo. Há
um enorme receio de que o fornecimento de petróleo seja
afetado pelas instabilidades regionais e isso venha colocar em risco
a lenta e sofrível reabilitação da economia
capitalista.
O Egito não
é um grande produtor, mas o temor é que possa ocorrer
uma interrupção do fornecimento de 3 milhões de
barris de petróleo, que passam diariamente pelo oleoduto
Suez-Mediterrâneo e pelo próprio canal de Suez.
Mas, diante de uma
revolta popular, que tudo indica vai continuar, uma vez que não
parece ser mais possível à economia egípcia
superar o momento de crise dentro dos marcos do capital, e em face de
uma violenta oposição por parte da Irmandade Mulçumana,
e, ainda, na falta de um movimento socialista que pudesse dar direção
aos protestos e propor reformas radicais na estrutura socioeconômica,
hoje a única força que parece dar a estabilidade que o
capitalismo precisa para o Egito é a ditadura militar. Assim,
nossa avaliação é que infelizmente o país
está caminhando novamente para uma ditadura militar tão
opressora quanto àquela erigida por Hosni Mubarak nos anos
1980.
Daniel M. Delfino
Fevereiro 2014
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