5.11.15

A nova constituição e as perspectivas para a crise no Egito


Nos dias 14 e 15 de janeiro deste ano os egípcios foram às urnas num referendo sobre uma nova Constituição, em que o “sim” venceu, mas apenas 33% da população do país (85 milhões de pessoas no total) foi às urnas.
A baixa participação deve-se a um boicote empreendido pelos opositores do governo interino. Atualmente a presidência é ocupada pelo chefe da Suprema Corte Constitucional do Egito: Adly Mansour, que foi nomeado após a deposição de Mohammed Morsi em Julho de 2013. Porem, o poder, de fato, ainda está nas mãos dos militares.
O baixo comparecimento às urnas e o fato da Constituição ter sido elabora por um comitê de apenas 50 pessoas deixam dúvidas quanto a legitimidade do pleito. Além disso, todo o período de campanha foi marcado pela repressão à campanha do “não”, que foi praticamente impedida pelo exército. Nos dois dias de votação 9 manifestantes foram mortos pelas forças policiais.
A Irmandade Mulçumana, grupo religioso que defende o islamismo como base da prática política e da vida social como um todo, ainda não se conformou com o golpe que destituiu o seu representante, Mohammed Morsi, que fora eleito pelo voto popular. A organização repudia a Constituiçã aprovada e convoca o povo egípcio para uma nova onda de protestos. Segundo a Irmandade é necessário ir às ruas para dar continuidade à “revolução” iniciada a três anos atrás, quando o ditador Hosni Mubarak renunciou sob forte pressão popular. Tal revolução teria sido obstruída pelo golpe que alçou, novamente, os militares ao poder do Estado.
A Constituição votada neste mês desagrada a Irmandade basicamente por que os principais artigos pró-islã propostos pelo governo Morsi foram retirados. Mas, a carta aprovada por 33% da população do Egito também desagrada muitos outros setores da sociedade, por aumentar consideravelmente o poder dos militares, em pontos como: indicação do ministro da defesa por uma junta militar, criação de mecanismos que inviabilizam a fiscalização dos gastos militares e, possibilidade de, em alguns casos, civis serem julgados em cortes militares. Há outros pontos antidemocráticos: o presidente indicará 5% dos ocupantes do poder legislativo, além de uma brecha para que, “em momentos de crise” seja possível, de forma legal, dissolver o congresso. Os grupos que apoiam a Constituição são partidos seculares de viés liberal, parte do empresariado egípcio e, a imprensa privada.
Neste contexto, a nova Constituição representou uma tentativa do governo dos militares de legitimar seu poder, que prosseguirá com a convocação de eleições gerais, ainda para o primeiro semestre. O principal candidato que desponta é justamente Abdul Fatah Al-Sissi, general que comandou o golpe contra Morsi e a repressão aos opositores, sendo responsável, em Agosto de 2013, pela morte de mais de 1.000 pessoas em apenas cinco dias de manifestações! E é justamente este general que está por trás do governo interino e que já manifestou sua intenção de se candidatar.
Toda esta instabilidade política no Egito tem como pano de fundo uma grave crise econômica. O ponto de partida de todo este processo foi a queda de Mubarak do poder depois de trinta anos de uma cruel ditadura. A juventude, trabalhadores, funcionários públicos, e a população em geral saíram às ruas exigindo o fim daquele governo. Naquela conjuntura a situação de miséria, de desemprego e, de fome chegaram a níveis insustentáveis.
Em Janeiro de 2011, estando a economia ainda sob os efeitos da crise de 2008, o preço do trigo dobrou no mercado mundial. A principal alimentação do povo egípcio, um tipo de pão chamado aïcha, à base de trigo, se tornou quase inacessível. A ameaça da fome impulsionou enormes mobilizações contra um governo autoritário que não estava sensível às demandas da população. O Egito toma a frente dos levantes que ficariam conhecidos como “Primavera Árabe”.
Durante os anos em que Mubarak esteve no poder os militares sempre representaram uma elite econômica e política. E com a saída do ditador continuam a ocupar lugar de destaque. Em 2012 organizam uma eleição em que o candidato da Irmandade Mulçumana, Mohammed Morsi sai vencedor.
Mas, a situação econômica do Egito não melhora. Durante o governo Mursi, ocorre uma acentuada desvalorização da moeda, que tem como principal consequência a carestia dos produtos básicos e a diminuição da importação de trigo (o Egito importa mais de 10 milhões de toneladas de trigo ao ano). Um problema antigo no país também continuava sem solução: a escassez crônica de combustíveis.
Os indicadores sociais revelam um país a beira do caos. Quase metade da população egípcia vive abaixo ou bem perto da linha de pobreza (ou seja, com até US$ 2 por dia). Estas pessoas só conseguem sobreviver por causa dos vários bilhões em subsídios gastos pelo governo. São US$ 4 bilhões para os alimentos, especialmente o trigo e US$ 14 bilhões por ano em subsídios aos combustíveis. E mesmo com tudo isso o povo só sobrevive.
A crise mundial de 2008 atingiu praticamente todas as nações do mundo, inclusive os países centrais do capitalismo. Ao chegar na periferia do sistema ela tomou proporções dramáticas. Só recentemente o capital vem apresentando sinais de tímida melhora. Mas, somente entre os países mais desenvolvidos, os periféricos não estão encontrando saída para esta crise iniciada há pelo menos 5 anos! Isto pode ser uma evidência de que a forma social regida pelo capital está chegando ao seu limite. O sistema, como um todo, não está mais conseguindo retomar os níveis de crescimento de anos atrás. O novo ciclo já se inicia, então, de forma desigual e bastante volúvel. Hoje mais do que nunca estamos diante de uma situação em que, segundo Marx, a burguesia só consegue vencer uma crise cíclica preparando crises mais extensas e mais destruidoras e, ao mesmo tempo, diminuindo os meios de evitá-las e vencê-las quando emergirem.
No caso do Egito, o governo Morsi tentou amenizar os efeitos da crise se empenhando em buscar um acordo com o FMI para conseguir um empréstimo que poderia amenizar temporariamente o sofrimento dos egípcios. Como de costume, o órgão internacional exigiu que o presidente adotasse uma política de austeridade intransigente e eliminasse progressivamente os subsídios aos combustíveis e alimentos. O que o FMI estava propondo é que o governo simplesmente eliminasse a possibilidade de sobrevivência de quase metade da população do Egito! Postura absolutamente desumana, própria de uma instituição que serve para proteger os interesses do capital.
Com medo de tomar medidas extremamente impopulares em um período bem próximo às eleições parlamentares, Morsi adiou a implementação da política de austeridade, para não atrapalhar as candidaturas da Irmandade Mulçumana. Desagradou o FMI, não recebeu o empréstimo. Desagradou também a população por falhar em organizar a economia do país e melhorar a vida das pessoas, que então, voltam às ruas. O que, por fim, desagradou os militares e as elites locais. Para descontentamento geral some-se a tudo isso a patente inabilidade política da Irmandade, que no auge de toda conturbação ainda impõe uma Constituição que restringia direitos civis (especialmente das mulheres e dos sindicatos) e que reforçava o caráter religioso do Estado.
Mas, há, ainda, algo fundamental que contribuiu para a deposição de Morsi e é o alicerce do atual poder dos militares no Egito, os interesses do capital internacional. O capitalismo tem necessidade de estabilidade, sobretudo em uma região em que estão alguns dos maiores produtores de petróleo do mundo. Há um enorme receio de que o fornecimento de petróleo seja afetado pelas instabilidades regionais e isso venha colocar em risco a lenta e sofrível reabilitação da economia capitalista.
O Egito não é um grande produtor, mas o temor é que possa ocorrer uma interrupção do fornecimento de 3 milhões de barris de petróleo, que passam diariamente pelo oleoduto Suez-Mediterrâneo e pelo próprio canal de Suez.
Mas, diante de uma revolta popular, que tudo indica vai continuar, uma vez que não parece ser mais possível à economia egípcia superar o momento de crise dentro dos marcos do capital, e em face de uma violenta oposição por parte da Irmandade Mulçumana, e, ainda, na falta de um movimento socialista que pudesse dar direção aos protestos e propor reformas radicais na estrutura socioeconômica, hoje a única força que parece dar a estabilidade que o capitalismo precisa para o Egito é a ditadura militar. Assim, nossa avaliação é que infelizmente o país está caminhando novamente para uma ditadura militar tão opressora quanto àquela erigida por Hosni Mubarak nos anos 1980.

Daniel M. Delfino
Fevereiro 2014


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