7.11.15

A trajetória do PT, da negação do socialismo ao naufrágio do 5º Congresso



O PT surgiu como uma organização formada por militantes que participavam das greves e lutas do novo movimento sindical da década de 1980, e das lutas de outros movimentos sociais da época, no campo, nos bairros, nas escolas e universidades, etc. Lutas que ajudaram a enterrar a ditadura militar, e que eram travadas por alguns dos participantes como passos de um processo acumulativo que visava derrubar o capitalismo no país, e construir o socialismo (ainda que este nunca tivesse sido muito bem definido). Na disputa entre as tendências no interior do partido, entretanto, acabou prevalecendo a corrente liderada por Lula (chamada de Articulação, nome que tem até hoje nos sindicatos), contra as tendências socialistas. Com isso, passou a haver cada vez menos lutas e cada vez mais o desvio da atividade dos militantes para a ocupação de espaços no Estado, através das eleições.
A partir da queda do Muro de Berlim e da URSS em 1989-91, desencadeou-se uma ofensiva política e ideológica da burguesia, em escala mundial, em torno da ideia de fim do socialismo, do marxismo, da luta de classes, etc. (ainda que a URSS e demais países que lhe seguiam o “modelo” não fossem socialistas), o que foi usado como justificativa para ataques aos trabalhadores, no processo chamado de “globalização” e neoliberalismo. Isso deu também o pretexto para que os dirigentes do PT removessem do discurso do partido qualquer referência ao socialismo, e passassem a defender abertamente a administração do capitalismo, a sua “humanização”, a “justiça social”, etc. Conforme passava à defesa do capitalismo, o PT se habilitava aos poucos para a conquista do governo federal, depois de se firmar entre os principais partidos do país com a ocupação de prefeituras, governos estaduais, bancadas de deputados e senadores.

Aceitação do capitalismo, burocratização e o aparelhamento do Estado
A partir da opção de administrar o capitalismo, o PT se adapta à lógica de uma sociedade baseada na exploração. Apesar do intenso bombardeio ideológico de intelectuais burgueses neoliberais e pós-modernos, o capitalismo continua sendo o que sempre foi, um sistema que sobrevive às custas da extração de trabalho não pago (mais valia) da maioria da população, em benefício de uma minoria de exploradores. O trabalhador é roubado todos os dias, uma vez que o valor que recebe como salário é sempre menor do que o valor que seu trabalho produz para o patrão. Essa desigualdade estrutural na sociedade capitalista é a fonte de todas as demais desigualdades e opressões.
A luta entre a classe dos exploradores, a burguesia, e o proletariado explorado continua sendo o motor da história, pois são as únicas classes que trazem consigo um projeto de sociedade. O projeto do proletariado só pode ser o fim do capitalismo, da exploração, da propriedade privada, do trabalho assalariado, das classes sociais e do Estado, em favor do trabalho livre associado. Qualquer outro projeto significa a continuidade do capitalismo e da exploração. Ao negar o socialismo e assumir a continuidade do capitalismo como seu projeto, o PT gradualmente deixa de ser um partido de trabalhadores e muda o seu caráter de classe, passando a ser um partido burguês composto de burocratas.
Essa mutação se processa também por meio do estabelecimento de uma espécie de “plano de carreira” para os militantes do partido. No nível mais baixo estão os dirigentes de sindicatos (até hoje a maior fonte de quadros para o PT), movimentos sociais, ONGs e acadêmicos. Esses dirigentes já vivem uma vida de privilegiados em relação aos trabalhadores, pois possuem interesses próprios, separados e opostos aos do proletariado. Formam uma camada social que denominamos de burocracia, com um perfil pequeno burguês, comumente chamado de classe média. Os burocratas usam seu prestígio nas bases sociais para subir ao segundo nível, concorrendo a mandatos de vereadores, prefeitos, deputados estaduais. Depois, os mais bem sucedidos passam para os postos de deputados federais, secretários de governo, dirigentes de empresas estatais. E no nível mais alto ficam os senadores, governadores de estados, ministros, de onde saem os candidatos à presidência.
Em todo esse percurso os burocratas devem permanecer leais ao partido, ou seja, usar as estruturas que dirigem, sejam os sindicatos e movimentos sociais, sejam os mandatos em cargos menores, em favor das campanhas eleitorais do partido, conseguindo dinheiro e votos. Essa é a condição para que cada um dos burocratas individualmente possam aspirar a ser eles próprios futuramente promovidos aos cargos mais altos. Foi assim que uma massa de milhares de burocratas petistas, a partir da eleição de Lula em 2002, tomou conta de cargos nos governos federais e estaduais, ministérios, diretorias de estatais, fundos de pensão, etc.

PT é usado pela burguesia e depois destinado à lata de lixo
A condição para que o PT chegasse ao governo foi que administrasse o país em favor do conjunto das frações do capital, garantindo os lucros dos bancos, agronegócio, empreiteiras, montadoras, transnacionais. Além disso, seria preciso usar o controle sobre os sindicatos e demais movimentos sociais para impedir a ocorrência de greves e mobilizações que ameaçassem os lucros da burguesia. Para contrabalançar o arrocho sobre os trabalhadores e as camadas médias, o PT usaria as migalhas dos programas assistenciais destinados aos mais pobres como maquiagem, criando a imagem de um governo “benéfico aos pobres” e assegurando dessa forma uma base eleitoral cativa para se perpetuar no poder.
Isso funcionou por algum tempo, enquanto a economia internacional apresentava condições favoráveis, em especial no último ciclo de crescimento econômico mundial entre 2002 e 2007. A partir do momento em que diminuem os lucros com as exportações de matérias primas, como cereais e minérios, com a crise mundial de 2008, a aposta passa a ser no consumo interno baseado em endividamento. Entretanto, depois de alguns anos, com o endividamento chegando ao limite e o esfriamento do mercado interno, a margem de manobra do governo fica menor. A dificuldade de garantir os lucros e ao mesmo tempo a fachada “social” aumenta. Surge uma divisão no interior da burguesia sobre a continuidade do PT à frente do governo. Um setor da classe dominante começa a considerar que o PT não é mais a melhor opção para gerir o capital no país.
Numa disputa apertada pela reeleição em 2014, Dilma é obrigada a apelar para “os pobres” para conseguir o 2º mandato (o que sempre traz o risco de expor a divisão de classes existente na sociedade), numa espécie de “giro à esquerda” no discurso. Entretanto, assim que Dilma toma posse para o 2º mandato, o giro de volta à direita é tão violento que causa revolta. A composição do novo ministério, que foi literalmente loteada entre as diferentes frações do capital (bancos, agronegócio, etc.), o pacote de maldades com reajuste nos preços da eletricidade e gasolina, as medidas provisórias anunciando cortes no seguro desemprego, PIS e pensões, os cortes de verbas no orçamento, etc., tudo isso gerou uma sensação difusa de estelionato eleitoral. Ao mesmo tempo, surgem as manifestações pedindo o impeachment de Dilma e até a volta da ditadura.

Opção do PT pela administração do capitalismo reforça as ideias de direita
Ao longo da sua transformação em um partido burguês o PT abriu mão da disputa ideológica na sociedade, deixando de defender qualquer tipo de projeto de transformação social. Mesmo que não fosse socialista, era preciso que o partido tivesse algum tipo de projeto, de meta, de horizonte a apresentar. Ao invés disso, o partido confiou na continuidade da “prosperidade” experimentada na era Lula, como se isso fosse suficiente para garantir a sua permanência no poder indefinidamente. Quando as bases materiais dessa prosperidade começam a se dissolver (endividamento do governo, das empresas, dos consumidores, queda nas exportações, queda no consumo interno, desemprego, inflação, etc.), surge uma insatisfação ampla e generalizada, com a qual o PT não tem como lidar.
Setores da classe trabalhadora que tiveram algum acesso ao consumo (via endividamento e não aumento real da renda) se sentem frustrados em suas expectativas de continuidade das melhorias materiais. Setores das camadas médias se sentem lesados com os programas assistenciais, como se eles fossem os culpados pelo arrocho e queda no seu padrão de vida (na verdade, o governo destina mais de 40% do orçamento para pagamento da fraudulenta dívida pública, ou seja, para cevar os banqueiros e especuladores, e menos de 1% para os programas assistenciais). Setores da alta burguesia que não foram diretamente beneficiados pelos governos do PT (afinal, cada burguês do Bradesco, Odebrecht, Friboi, etc., que tem seus acordos com o PT, também tem concorrentes que não se sentem devidamente contemplados) passam a lutar para ter acesso direto às verbas do Estado, sem a necessidade de pagar um “pedágio” à burocracia petista. Em tempos de crise, mostra-se bastante dispendioso manter milhares de burocratas aparelhando o Estado.
O resultado dessa insatisfação é o crescimento das ideias de direita. Depois de uma década de incentivo ao individualismo consumista, os valores coletivos foram solapados, e recrudesce a meritocracia, o racismo, o machismo, a LGBTfobia, o fundamentalismo religioso, etc. Na ausência não só de um projeto socialista, mas na verdade de qualquer projeto ou discurso, por omissão do PT, proliferam os projetos da direita: redução da maioridade penal, estatuto da família, demarcação de terras indígenas e quilombolas nas mãos de um Congresso recheado de latifundiários grileiros, o PL 4330 da terceirização já bem encaminhado, etc. As marchas contra Dilma contam inclusive com um setor minoritário defendendo a volta da ditadura militar.

O 5º Congresso do PT e o naufrágio da esperança
Nesse cenário, desenvolvem-se duas espécies de respostas políticas que precisamos analisar. De um lado, no interior do próprio PT, algumas correntes da “esquerda” petista alimentaram a ilusão de uma possível “correção nos rumos” do governo, de uma volta ao programa clássico do partido (ou seja, ao ilusório programa de uma “gestão benigna” do capitalismo), de abandono das medidas neoliberais mais radicais, etc. Essas esperanças convergiram para o 5º Congresso do PT, nos dias 12 e 13/06, quando aqueles que ainda acreditam no PT tentaram reanimar o partido para lutar contra o que identificam com uma ofensiva da “direita”. Evidentemente, tais esperanças foram todas frustradas. Ao invés do partido centralizar o governo Dilma e impor uma “virada à esquerda”, o que aconteceu foi o contrário, o governo Dilma centralizou o partido. Na terça-feira dia 9/06, Dilma apresentou um pacote de privatizações na área de infra estrutura, totalizando cerca de R$ 198 bilhões. Ou seja, quanto mais a burguesia pressiona, mais o PT cede. E a militância do partido tem que se contentar com isso, e seguir defendendo o governo Dilma.
De outro lado, um setor não organicamente vinculado ao PT, mas que se preocupou com a mesma ameaça da direita, cerrou fileiras em defesa do partido, desde a campanha eleitoral de 2014 até os atos anti Dilma e pró Dilma dos meses de março e abril. Desenvolveu-se uma campanha nas redes sociais, tentando combater as ideias de direita, tentando mostrar que o PSDB é tão ou mais corrupto que o PT, tentando “igualar o jogo” contra o discurso anti petista que se tornou hegemônico na sociedade. Alguns setores dos movimentos sociais organizados, como MST e MTST, se engajaram em marchas “contra a direita, por direitos”, colaborando indiretamente para a defesa do PT, a partir de uma definição ambígua do que é “direita” e “esquerda” que se omite quanto ao que realmente é o PT hoje.
Para enfrentar a ofensiva da direita, precisamos restabelecer o significado das palavras. Direita e esquerda são, respectivamente, os que são a favor da manutenção e da transformação da ordem social. Nesse sentido, a direita inclui tanto o PT quanto o PSDB, pois ambos são partidos burgueses, com um programa de administração do capitalismo, de manutenção da exploração, da propriedade privada, da mais valia, do Estado, etc. Esquerda são somente os que defendem o fim do capitalismo e a ruptura rumo ao socialismo. Portanto, se formos rigorosos com o uso das palavras, de nada adianta defender o PT “contra a direita”, já que o PT é parte dessa mesma direita. Conforme expusemos acima, em termos históricos e ideológicos, a responsabilidade pelo atual avanço das ideias de direita é toda do PT, já que o próprio partido abriu mão da defesa de qualquer projeto alternativo, e se conformou inteiramente à gestão do capitalismo.
O resultado não poderia ser outro além do crescimento do individualismo, do ressentimento dos setores médios contra os mais pobres, etc., sentimentos que estão na base dos projetos da direita. Os três mandatos do PT foram alimentados por uma ilusão de prosperidade material. Quando essa ilusão não se materializa, a frustração é descarregada contra os integrantes do PT, que são definidos como sinônimos de corrupção (como se os demais partidos não fossem), os quais se sustentam no poder à custa de enganar os pobres com bolsas (quando na verdade, o que sustenta o PT são os lucros excepcionais dos banqueiros e outros setores).

Construir na lutas uma alternativa socialista
Ainda assim, existe um setor que, pragmaticamente, reconhece tudo isso, reconhece a responsabilidade do PT na germinação subterrânea e ulterior erupção das ideias de direita, reconhece que o partido tem um programa pró capitalista e uma gestão neoliberal, etc., mas que ainda assim entende que o PT é menos pior do que “a direita”. O problema dessa posição é que, como dissemos, quanto mais se alimenta a ilusão de que o PT pode ser algum tipo de obstáculo contra “a direita”, mais o próprio PT assume o programa típico da direita. O programa que a campanha do PT atribuiu à candidatura de Aécio está sendo praticado por Dilma, porque na verdade o PT é parte da direita, na medida em que defende a continuidade do capitalismo.
Mas então, prosseguem esses setores que defendem o PT, se a esquerda de verdade é só aquela que defende o socialismo, então não existe esquerda. A oposição de esquerda ao PT fracassou. Os grupos que se colocam à esquerda do PT, como PSOL, PSTU, PCB, PCO, e todos os grupos menores que não possuem legenda eleitoral, em conjunto, não foram capazes de construir uma alternativa política e programática crível, contra a hegemonia de ideias conservadoras, pró capitalistas e de direita. A oposição de esquerda ao PT está muito longe de poder disputar o poder na sociedade, contra as diferentes frações da burguesia, a burocracia petista, as igrejas neopentecostais, etc. Em relação a essa disputa, essa “briga de cachorro grande”, a oposição de esquerda, com toda sua fragmentação, debilidades, vícios, etc., está na 2ª divisão. Assumindo esse fracasso da esquerda, esse setor defensor do PT entende que não há outra alternativa além de defender o PT por enquanto, até que supostamente a ameaça da “direita” esteja afastada, e se possa reconstruir um projeto socialista, em algum momento de um futuro indefinido.
À parte o fato de que esse balanço da oposição de esquerda (incapacidade objetiva de se colocar como alternativa na disputa de poder na sociedade) esteja em linhas gerais correto, essa posição pragmática de reconhecer uma correlação de forças desfavorável (e se refugiar na defesa do PT) na prática desarma para as tarefas necessárias para a reconstrução de um projeto de esquerda, ou seja, socialista. Reconhecer a crise terminal do PT, a sua decomposição, o vazio ideológico à esquerda e a ascensão de ideias de direita, não pode nos conduzir a uma rendição prática. Nem muito menos em apostar no próprio PT como tábua de salvação. Se não lutarmos agora por uma alternativa socialista, classista, independente, antigovernista, não teremos futuro.
A decomposição do PT tem uma base material que é o fim do seu projeto de um capitalismo “bom para todos”. Sobre essa base material se desenrola a luta aberta entre os setores da burguesia e das camadas médias pela sua fatia no espólio da decadente “prosperidade” petista. Essa luta se traduz em uma onda de ataques sobre a classe trabalhadora e os setores oprimidos da sociedade. O ataque aos direitos trabalhistas (PL 4330), aos direitos civis (redução da maioridade penal, estatuto da família), etc., precisa ser respondido com luta. Essa luta tem que partir de uma ruptura com qualquer esperança no PT e tudo que seu projeto de administração do capitalismo representam.

Superar na prática a experiência histórica do PT
A única coisa que os militantes preocupados com a “ameaça da direita” (e o PT, ao assumir a administração do capitalismo, é parte da direita, nunca podemos deixar de reafirmar isso) podem fazer é romper com o PT, a CUT e demais entidades aparelhadas pelo partido, e organizar desde a base a luta contra os ataques da burguesia e do governo. O maior crime de Lula e da Articulação não são os bilhões desviados da Petrobrás e outros escândalos, mas destruir a credibilidade da esquerda, dos sindicatos, partidos de trabalhadores, movimentos sociais, pois no imaginário coletivo consolidou-se a imagem de que se trata de trampolins para a promoção de corruptos.
É preciso recomeçar do zero e reconstruir um projeto socialista dos trabalhadores a partir das lutas concretas atualmente em curso. Isso significa superar o projeto de ocupação de lugar no Estado, projeto aplicado pelo PT e que inevitavelmente levou ao seu fracasso (e de cuja sombra a oposição de esquerda ao PT nunca conseguiu sair), para que se possa construir um projeto autenticamente anticapitalista. Superar o projeto do PT não quer dizer apenas fazer críticas ao PT no governo. Se fosse assim, seria muito fácil. O desafio real é construir na prática uma experiência superior ao que foi o PT na sua origem, não ao PT decadente e burocratizado, governando para o capital. O PT a ser superado é aquele PT da época em que era uma organização classista e combativa, que impulsionava as lutas na virada dos anos 1980, como descrevemos no início.
Aquele PT classista e combativo somente veio a naufragar porque não superou uma política eleitoralista, nem uma prática sindical acomodada à estrutura varguista do sindicalismo brasileiro (sindicalismo corporativo, economicista, estatizado, atrelado ao imposto sindical, etc.). As novas lutas em curso tem que superar esses limites. Somente assim podemos construir uma experiência superior à do PT. A base social para esse projeto é a nova vanguarda que nasce nas lutas, desde as jornadas de junho em sua primeira fase, passando pelas greves dos garis e de professores, com seu espírito de combatividade, radicalidade e rejeição de todas as formas burocráticas e carcomidas, que caracterizam desde o PT até a própria esquerda propriamente dita. Sobre a base dessa nova vanguarda, ainda não contaminada com os vícios que comprometem a esquerda (tanto o eleitoralismo como o sindicalismo burocrático), é que se pode construir um projeto capaz de enfrentar a direita em todas as suas faces, do PSDB ao PT.

Daniel M. Delfino
Junho 2015


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