“A
escolha continua sendo entre socialismo e barbárie. Pode-se
não saber mais o que é socialismo, mas para saber o que
é barbárie basta abrir os olhos.”
Luis
Fernando Verissimo – O Globo – 22/09/2014
Ainda
está em aberto o debate sobre os motivos que levaram à
derrota das tentativas de transição ao socialismo no
século XX. O século passado terminou com a proclamação
da vitória do capitalismo, com uma violenta ofensiva
econômica, política e ideológica da burguesia
contra os trabalhadores, sob os slogans de “fim da história”,
“fim do socialismo”, “fim do marxismo”, “fim das
ideologias”, “fim das grandes narrativas”, “fim do sujeito”,
“não há alternativa”, etc. Mas independentemente
dos motivos que impediram o avanço rumo ao socialismo, uma
coisa é certa: o capitalismo, este sim, é um fracasso
retumbante. Vejamos adiante alguns exemplos desse fracasso.
Guerras
O
capitalismo é um sistema baseado na violência, na
apropriação do trabalho não pago, a mais valia,
que é roubada diariamente de todos os trabalhadores. Esse
sistema só conseguiu surgir e se erguer com base em atos de
violência colossais, como a expropriação dos
camponeses na Europa, o genocídio dos povos originários
das Américas, a destruição das sociedades
africanas e a escravização de milhões de negros,
o esfacelamento das antigas sociedades asiáticas, etc. No
século XX, duas guerras mundiais foram provocadas pela disputa
entre as potências imperialistas pela partilha do mundo.
No
século XXI, continuamos sob a ameaça permanente da
guerra em diversos formatos. Temos as guerras entre Estados nacionais
e as “guerras assimétricas” contra forças
dispersas, como a “guerra ao terror” que nunca termina, a “guerra
contra as drogas”, todas elas pretextos para intervenções
militares imperialistas. Temos a guerra civil na Síria, no
Iraque, no Afeganistão (países para onde os Estados
Unidos tiveram que se retirar, mas agora querem voltar), a guerra
civil mais ou menos disfarçada na Ucrania, guerras civis no
Sudão, Mali, República Centro-Africana, etc. As
ideologias do ódio nacionalista, racial, tribal e religioso
movem essas guerras, mas os seus motivos materiais são os
interesses imperialistas em controlar riquezas naturais vitais para
a sobrevivência dos seus negócios.
Além
das guerras declaradas entre Estados, vivemos uma guerra social, uma
onda mundial de militarização, policiamento,
vigilância, autoritarismo nos locais de trabalho, nas famílias,
nas escolas, repressão, judicialização,
criminalização das lutas sociais e da pobreza em geral,
agressões fascistas contra movimentos dos trabalhadores,
imigrantes, LGBTs, violência cotidiana contra a mulher, etc.
Para contornar sua crise estrutural e continuar explorando os
trabalhadores, o capitalismo necessita cada vez mais da violência.
Está
em curso uma verdadeira guerra civil não declarada contra os
pobres e miseráveis nas periferias do mundo inteiro. Os negros
nas favelas do Brasil ou do Haiti, os negros e latinos nas ruas e
presídios dos Estados Unidos, os imigrantes na Europa, os
palestinos em Gaza, são tods vítimas de operações
policiais e militares de extermínio. Aqueles que não
são parte do exército industrial de reserva (porque
nunca serão empregados, nem sequer temporariamente) são
população excedente que o capital busca descartar antes
que engrossem o caldo de possíveis revoltas.
Catástrofes
Além
das perdas de vidas humanas provocadas pela violência em suas
várias formas, temos também as catástrofes
ambientais. Os séculos de intervenção humana
irracional na natureza provocaram diversos desequilíbrios no
ecossistema global. A extração de minérios e
outros recursos, a exaustão das terras férteis pela
agricultura e pecuária intensivas, extinção de
epécies animais e vegetais, o acúmulo de lixo e de
poluição no solo, nas águas e na atmosfera; tudo
isso ao longo de séculos de produção capitalista
provocaram uma mudança climática mundial. Isso se
manifesta em ondas de frio e de calor, secas, inundações,
tempestades, nevascas, derretimento de geleiras e dos pólos,
surtos de vírus e microorganismos letais (vaca louca, gripe do
frango, gripe suína, ebola, etc.), etc. Mesmo algumas das
catástrofes naturais que não podem ser evitadas
(vulcões, terremotos, tsunamis) poderiam ter seus efeitos
destrutivos atenuados pelo uso da ciência, formas de detecção,
sinalização, etc. Há também epidemias e
pandemias que poderiam ser evitadas e controladas, se a ciência
e a tecnologia fossem direcionadas para isso.
A
produção capitalista é uma produção
destrutiva, que não leva em conta as necessidades humanas e
sim o imperativo de produzir mais e mais mercadorias (que não
servem a necessidades reais e sim artificiais), cujo objetivo é
realizar o valor de troca e reproduzir o capital de forma ampliada, e
que depois se acumulam na forma de lixo, poluição, que
também são parte do seu processo de produção.
Esse impulso para o lucro não pode ser controlado por nenhum
tipo de regulamentação ambiental, sanitária, de
saúde pública, etc., por nenhuma instância
nacional, nem muito menos internacional. O Estado é controlado
pelas grandes corporações e obedece os seus interesses,
os agentes encarregados da regulamentação são
corrompidos, as normas são burladas, o judiciário nunca
age em tempo. Se algum governo nacional hipoteticamente quiser
controlar as corporações, estas mudam seus negócios
para outro país. Os negócios tem que continuar, e a
destruição ambiental também. A propriedade
privada dos meios de produção transforma as forças
produtivas e a tecnologia em forças destrutivas que ameaçam
a sobrevivência da humanidade.
Misérias
Aqueles
que não morrem nas guerras e catástrofes provocadas
pelo capitalismo vivem uma vida de miséria. 805 milhões
de pessoas passam fome no mundo em 2014, segundo o órgão
da ONU
(http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2014-09/fao-805-milhoes-de-pessoas-passam-fome-no-mundo).
Em 2012, segundo também a ONU, 863 milhões de pessoas,
ou 33% da população urbana do mundo, viviam em favelas
(wikipedia). Segundo a ONG UAEM, que se dedica a lutar por políticas
de saúde pública que enfrentem o monopólio das
indústrias farmacêuticas, das 50 milhões de
pessoas que morrem anualmente no mundo, 10 milhões morrem de
doenças tratáveis (http://uaem-br.org/brasil/).
Segundo
a ONG OXFAM, as 85 pessoas mais ricas do mundo possuem uma renda
equivalente à das 3,5 bilhões mais pobres
(http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/01/140122_desigualdade_davos_pai).
O 1% mais rico da população mundial fica com 46% da
riqueza, enquanto que os 50% dos seres humanos mais pobres ficam com
apenas 1% da riqueza mundial
(http://www.cartacapital.com.br/sociedade/0-7-da-populacao-possui-41-da-riqueza-mundial-6716.html).
Segundo
as estatísticas (também oficiais da ONU, o que
significa números maquiados pelos governos nacionais), 6% da
população economicamente ativa mundial está
desempregada, o que equivale a 202 milhões de pessoas
(http://www.cartacapital.com.br/economia/desemprego-global-cresce-e-ja-atinge-mais-de-200-milhoes-de-pessoas-9833.html),
dado que evidentemente desconsidera os setores que vivem em situação
de calamidade e deixaram de procurar emprego, vivem de subempregos,
trabalho informal, etc.
Falta de
perspectivas
Esses
fenômenos descritos acima não são acidentes de
percurso, não são falhas temporárias, não
são imperfeições que se possa corrigir com uma
“melhor administração”. São resultados
inevitáveis das tendências intrínsecas do
desenvolvimento capitalista. A humanidade já vive sob este
sistema há séculos e esses problemas não foram
resolvidos, porque na verdade, não podem ser resolvidos dentro
do capitalismo. Como dissemos acima, a lógica da competição
entre as diversas frações do capital torna esse sistema
impossível de ser controlado ou “humanizado”.
Esses
elementos de barbárie tendem a se acumular com o tempo, por
mais que momentaneamente, em determinadas épocas e em
determinados países, eles pareçam não se
manifestar. Cotidianamente, os gestores do sistema capitalista, os
políticos em cada Estado nacional, renovam as promessas de que
a vida vai melhorar, apenas para garantirem a continuidade da
exploração e da opressão, como os candidatos em
campanha no Brasil fazem hoje. Todos fazem promessas vagas de
melhorias, mas nenhum toca nas questões centrais, a lógica
do lucro.
A
continuidade do sistema capitalista significa a continuidade desses
elementos de barbárie. A humanidade pode caminhar lentamente
para a barbárie, sem que necessariamente haja uma grande
explosão destrutiva, uma nova guerra mundial, etc. As
catástrofes e misérias podem se acumular até que
a humanidade esteja reduzida a formas de vida irreconhecíveis.
Com isso queremos dizer que o sistema capitalista, por mais que tenha
a tendência de destruir a humanidade, não destruirá
a si mesmo nem será substituído automaticamente por
alguma outra forma de vida social. Por mais graves que sejam as suas
crises, o capitalismo seguirá de pé enquanto não
for construída outra lógica de reprodução
social. O capitalismo somente será destruído e
substituído por uma ação coletiva, consciente e
organizada, ou seja, uma revolução que tenha o objetivo
explícito e declarado de acabar com o capitalismo e construir
um outro sistema social. O mundo precisa de uma revolução
socialista!
Enquanto
não reconstruirmos uma alternativa socialista, a humanidade
seguirá decaindo em direção à barbárie.
A falta de uma perspectiva de transformação social faz
com que as formas de pensamento também girem em círculos
em torno de falsas alternativas, desde a apologia direta do
capitalismo (o discurso neoliberal), até as formas indiretas e
irracionais de apologia (que negam a possibilidade da revolução
social), tais como o fanatismo religioso, o irracionalismo
filosófico, o cinismo e o pessimismo cultural, etc.
Reconstruir
a alternativa socialista!
Como
dissemos no início, ainda está em aberto o debate sobre
os motivos que levaram à derrota das tentativas de transição
ao socialismo no século XX. Quaisquer que sejam esses motivos,
porém, teremos que encontrar os caminhos para o socialismo no
século XXI. Solucionar esse debate não será uma
questão para acadêmicos, historiadores ou curiosos, mas
uma questão de sobrevivência da humanidade. O máximo
que podemos fazer, no epílogo deste texto, é apresentar
algumas indicações:
- o
socialismo será mundial ou não será! O
socialismo é impossível em um só país.
Ainda que a revolução seja uma tarefa “nacional”,
ou seja, que tem que ser feita em cada país, a transição
rumo ao socialismo deve ser feita em escala mundial;
- isso
porque o socialismo, para ser construído, requer a
socialização da riqueza, e não da miséria,
como aconteceu nas revoluções que acabaram ficando
restritas aos “elos frágeis da cadeia do capital” no
século XX;
- a
socialização da riqueza não é a simples
distribuição dos bens materiais, mas o controle social
das forças produtivas. A ciência e a tecnologia devem
ser postos a funcionar a serviço das necessidades humanas.
Hoje a ciência e a tecnologia enfrentam um obstáculo
mortal ao seu desenvolvimento, a propriedade privada das corporações
e a competição entre os Estados, que faz com que os
pesquisadores trabalhem em isolamento e concorrência uns com os
outros, ao invés da partilha de conhecimentos e da cooperação.
A simples ruptura com a lógica da competição e o
estabelecimento da cooperação levariam a um salto
gigantesco da capacidade produtiva, libertando a humanidade da
escravidão do trabalho necessário e multiplicando as
possibilidades de fruição do tempo livre, de novas
relações, humanas, etc.;
- alguns
setores do movimento socialista falam em “socialismo com
democracia” ou “socialismo com liberdade”, para se diferenciar
das experiências do século XX. Essas expressões,
na verdade, são redundantes. Não existe democracia nem
liberdade a não ser no socialismo. A ruptura da ordem
capitalista tem que ser feita, como dissemos, com base numa ação
coletiva, consciente e organizada. Isso significa que as formas de
decisão devem ser partilhadas por todos, de maneira
responsável, desde cada localidade, cada bairro, cada cidade,
cada região, cada país, por meio de processos coletivos
de decisão, de modo que os indivíduos decidam a todo
momento sobre todas as questões, sobre o que produzir, como
produzir, como gerenciar os recursos coletivos, etc.
- esse
sistema de decisão e administração coletiva de
todas as questões envolve necessariamente a destruição
do Estado tal como o conhecemos e a sua substituição
por mecanismos de decisão baseados nas questões
concretas a serem resolvidas, sem representantes e sem hierarquia,
sem separação entre política e economia;
- a
construção desse sistema será uma obra da classe
trabalhadora, ou seja, dos indivíduos diretamente responsáveis
pelo intercâmbio do homem com a natureza e as atividades que
garantem a sobrevivência da humanidade. Nenhuma outra classe
social poderá cumprir essa tarefa, e as classes que hoje se
beneficiam da exploração capitalista terão que
ser destruídas enquanto classes, ou seja, os indivíduos
que pertenciam as antigas classes dominantes e classes médias
(e também os lúmpens) terão que partilhar os
mesmos direitos e deveres dos demais, do contrário, terão
que ser reprimidos pela força;
- as
duas condições anteriores implicam que o socialismo só
pode ser construído pela via revolucionária, ou seja,
por uma ruptura da ordem existente, sem qualquer tipo de conciliação
com o Estado e suas instituições.
Essas
indicações colocam como tarefas imediatas a construção
de organizações socialistas revolucionárias, que
façam avançar a consciência dos trabalhadores e a
sua organização independente das instituições
e ideologias hoje existentes. A alternativa socialista não é
uma ideia, mas um processo prático de ação e
intervenção na realidade, a partir dos enfrentamentos
concretos da luta de classes em andamento. É tarefa das
organizações revolucionárias intervir nesses
processos para desenvolver a organização dos
trabalhadores, sua capacidade de ação coletiva e
consciente. Ou atualizamos a luta pelo socialismo, ou estaremos
condenados à barbárie!
Daniel M.
Delfino
Outubro
2014
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