O ciclo
das lutas populares
Na
década de 2000 a América Latina protagonizou um forte
ciclo de lutas populares que questionaram a aplicação
das políticas neoliberais pelos governos da burguesia
tradicional e mais escancaradamente pró-imperialista. As
mobilizações foram impulsionadas por vários
setores populares, como camponeses, povos originários*,
moradores dos bairros mais pobres, setores de classe média,
conforme a realidade de cada país, com uma participação
menor do proletariado industrial e do movimento estudantil. O
resultado dessas mobilizações foi a queda de governos
em vários países, como Argentina (panelaço em
2001), Bolívia (guerra da água em 2000, guerra do gás
em 2003 e 2005) e Equador (Parlamento dos Povos em ).
Em
substituição aos governos burgueses tradicionais
erigiram-se governos controlados por setores nacionalistas
burocráticos (Chávez na Venezuela, Morales na Bolívia,
Correa no Equador), que desenvolveram um certo grau de enfrentamento
em relação ao imperialismo e à burguesia devido
à necessidade de simular o atendimento ao menos parcial de
algumas reivindicações das massas mobilizadas. Em
outros países subiram ao poder setores da esquerda reformista,
oportunista e burocrática mais tradicional, que se
apresentaram como suposta ruptura com o neoliberalismo, mas que deram
continuidade à essa mesma política (Lula no Brasil, o
casal Kirchner na Argentina, Bachelet no Chile, Vasquez no Uruguai,
Ortega na Nicarágua, Lugo no Paraguai).
Nesse
primeiro momento, o imperialismo estadunidense foi forçado a
ceder parcialmente o terreno no continente. A prioridade estava no
Oriente Médio, onde as invasões do Afeganistão
(2001) e Iraque (2003) consumiam a máxima atenção
e esforço do governo Bush, com o comprometimento de elevados
contingentes de tropas e pesado impacto no orçamento público.
A resistência afegã e iraquiana, bem como o repúdio
interno e externo às invasões representaram um enorme
desgaste para o governo Bush e criaram dificuldades para a
implantação de suas políticas. A onda de
governos nacionalistas burocráticos e de retórica
anti-neoliberal na América Latina também se tornou em
alguma medida um obstáculo, impedindo por exemplo a
implantação da ALCA da forma como havia sido
originalmente concebida.
Continuidade
da presença imperialista
Isso não
significa que o imperialismo tenha tirado suas garras do nosso
continente. Em 2002 houve o golpe contra Chávez na Venezuela,
revertido por forte mobilização popular. Em 2004, no
Haiti, os Estados Unidos depuseram o governo de Jean Bertrand
Aristide e impuseram ao país um governo fantoche sustentado
por tropas da ONU. Devido à prioridade dada ao Oriente Médio,
o comando dessas tropas foi terceirizado para o Brasil de Lula. Em
2006 no México foi preciso fraudar a eleição
presidencial para impedir que o candidato da esquerda burocrática
derrotasse o representante da burguesia tradicional. Em 2007, antes
da eleição de Lugo, foi assinado um acordo para a
implantação de uma base militar no Paraguai perto da
tríplice fronteira (com Brasil e Argentina), com fácil
acesso à Itaipu e controle sobre o aqüífero
Guarani. Em 2008 houve a tentativa de dividir o Estado boliviano para
deixar a parte mais rica do país sob controle de uma burguesia
fascista, racista e abertamente assessorada pela embaixada
estadunidense.
O papel
do Brasil no Haiti é mais uma prova de que os governos de
discurso anti-neoliberal como os de tipo lulista não vão
mesmo além da pura retórica, pois tanto no plano
interno como na política externa os objetivos do imperialismo
seguem sendo implantados. A ALCA foi substituída pelos TLCs
(Tratados de Livre Comércio) assinados entre os Estados Unidos
e vários países individualmente. A integração
da infra-estrutura sulamericana (com importante participação
de multinacionais brasileiras e financiamento do BNDES) está
sendo tocada de modo a facilitar o escoamento das riquezas naturais,
tendo como conseqüências a intensificação da
depredação ambiental e do extermínio dos povos
originários e suas culturas.
Os
exemplos acima indicam que o imperialismo nunca abandonou
completamente o continente. Mas a prova mais cabal está no
caso colombiano. O governo de Alvaro Uribe desencadeou uma ofensiva
para derrotar as guerrilhas das FARC e ELN, com o apoio explícito
do imperialismo (inclusive provocando um incidente de fronteira que
levou às beiras de uma guerra com o Equador) e a participação
de milícias de extrema-direita (AUC) financiadas pelo
narcotráfico. O resultado “colateral” dessa ofensiva foi o
aumento das mortes de líderes dos povos originários, de
camponeses, de organizações populares e de dirigentes
sindicais.
A
ofensiva de Obama
A
mudança de guarda na Casa Branca, com a saída dos
“neocons” de Bush e a entrada de uma equipe mais eclética
liderada por Obama criou a ilusão de que haveria uma mudança
nas relações do imperialismo com o continente. A
intensa operação de marketing em torno de Obama na
verdade serviu apenas para mascarar um expressivo aumento da presença
e das iniciativas militares estadunidenses. Há uma verdadeira
“invasão branca” em curso, cujos exemplos se multiplicam.
Em
primeiro lugar, os passos dados ainda na era Bush não foram
revertidos. O acordo com o Paraguai para a implantação
da base militar não foi revogado. A IV frota, que havia sido
criada na II Guerra para patrulhar o Atlântico sul, foi
reativada tão logo se anunciou a descoberta de significativas
reservas de petróleo na camada geológica de pré-sal
dentro do limite das águas territoriais brasileiras.
Em
segundo lugar, o imperialismo continua apoiando as forças mais
reacionárias da burguesia em cada país. No México,
sob o pretexto da “guerra às drogas”, os agentes da DEA,
FBI, CIA e outras agências do aparato de segurança e
inteligência estadunidense tem atuado “em parceria” com
órgãos de segurança do Estado mexicano num
grande operativo de militarização da zona fronteiriça
entre os dois países. Isso se combina com a repressão
aos trabalhadores imigrantes mexicanos e de outros países
latino-amercianos no interior dos Estados Unidos. A militarização
da guerra às drogas é na verdade uma operação
de blindagem política do governo de Calderon, concedendo-lhe
preventivamente poderes e instrumentos repressivos para enfrentar a
crescente insatisfação popular com o NAFTA e agora
agravada com a crise econômica. Essa insatisfação
já teve sua expressão mais radical na Comuna de Oaxaca,
em 2007, quando os trabalhadores chegaram a erguer uma experiência
embrionária de duplo poder contra o governador local corrupto
e reacionário.
Em julho
de 2009, diante de uma aproximação do presidente de
Honduras Manuel Zelaya do bloco da ALBA e da Petrocaribe liderado por
Chávez, a direita hondurenha reagiu com um golpe de Estado.
Apesar da “condenação” meramente formal emitida
pela “comunidade internacional”, os golpistas continuam no poder
e os Estados Unidos tem manobrado para que Zelaya aceite uma “saída
negociada” para a disputa. Essa saída na prática
significaria uma renúncia à política de reforma
constitucional que visava garantir o controle do Estado hondurenho
sobre suas reservas petrolíferas. Quem está pagando o
preço é a classe trabalhadora hondurenha, privada dos
direitos democráticos elementares pelos golpistas.
Em
terceiro e último lugar, a saída dos Estados Unidos da
base de Manta no Equador prevista para o final deste ano está
sendo mais do que compensada pela instalação de nada
menos do que 7 novas bases na Colômbia. Isso praticamente
consuma a transformação da Colômbia em um
protetorado militar estadunidense, no mesmo formato do que é a
Arábia Saudita no Oriente Médio. A partir dessas bases,
os Estados Unidos poderão aplastar definitivamente a guerrilha
das FARC, aniquilando também de quebra a resistência
popular colombiana. Poderão também usar o país
como uma cabeça-de-ponte para intervir na América
Central, ou ainda no Peru, onde o movimento dos povos originários
amazônicos começa a dar sinais de vida (ainda que sem a
mesma tradição de luta e com um perfil diferenciado em
relação aos povos andinos). E poderão também
lançar uma guerra aberta contra a Venezuela de Chávez.
A
impotência das burocracias e a autonomia política dos
trabalhadores
Por
enquanto, a reação dos governos latino-americanos,
tanto os da ala chavista tida como “radical” como os da ala
lulista “moderada” (abertamente pró-imperialista), contra
esse aumento da presença militar estadunidense, tem sido muito
tímida. Não vai além de protestos diplomáticos
protocolares e de bravatas anódinas. Nenhum desses governos
tem a disposição para entrar em um enfrentamento de
fato com o imperialismo. Estão todos internamente
comprometidos com setores burgueses cujos negócios dependem de
boas relações com o capital internacional. Em nome
dessas boas relações, é fundamental para tais
governos impedir a resistência autônoma da classe
trabalhadora, especialmente em tempos de crise.
A
burguesia precisa dar continuidade à depredação
do meio ambiente, conforme as exigências das transnacionais dos
ramos de petróleo, minérios, extrativismo, madeireiras,
agronegócios, etc., passando por cima das vidas dos povos
originários, camponeses e trabalhadores sem terra. Em todos
esses aspectos de facilitação da intervenção
e defesa dos interesses imperialistas o Brasil ocupa papel de
liderança.
É
por isso que a defesa da soberania nacional, das riquezas naturais,
do meio ambiente, da sobrevivência dos povos originários,
da cultura e das condições de vida é uma tarefa
que cabe apenas à classe trabalhadora latino-americana. Os
governos nacionalistas burocráticos, ainda que sejam produtos
de lutas populares e para fins de marketing se identifiquem
nominalmente com tais interesses, no momento decisivo capitulam à
burguesia e ao imperialismo, optando por “saídas negociadas”
que inevitavelmente preservam a vigência da ordem capitalista e
a exploração dos trabalhadores. Chávez, que
perdoou os golpistas de 2002, vai ao ponto de perseguir sindicalistas
(que estão sendo mortos impunemente pela burguesia) e Correa
reprime os povos amazônicos que protestam contra a atividade
das mineradoras. Nos momentos de enfrentamento mais agudo, nos quais
é preciso até mesmo defender tais governos contra
golpes burgueses e invasões imperialistas, o proletariado só
pode contar com suas próprias forças.
Por
isso, é fundamental armar política e ideologicamente os
organismos de luta da classe com um programa independente em relação
ao chavismo, ao lulismo e seus derivados, e com uma perspectiva clara
de ruptura da ordem capitalista e construção do
socialismo. Com o aprofundamento da crise em nível mundial e
da necessidade do imperialismo de avançar ainda mais na
depredação do planeta e no ataque às condições
de vida, a nossa própria sobrevivência dependerá
cada vez mais de termos clareza em relação à
necessidade de fortalecer a organização autônoma
da classe e a construção de um projeto socialista. Esse
programa deve começar impulsionando algumas tarefas imediatas:
- Abaixo
o golpe em Honduras!
- Fora
as tropas brasileiras do Haiti!
- Fora
as bases militares na Colômbia!
- Pela
desativação da IV Frota!
- Contra
a instalação da base no Paraguai!
- Fim da
guerra às drogas no México!
- Contra
a militarização dos conflitos sociais!
- Contra
a repressão aos trabalhadores, imigrantes e povos originários!
- Contra
o saque das nossas riquezas e a destruição do meio
ambiente!
- Pela
soberania e autodeterminação dos povos!
- Por
uma Federação Socialista dos Povos da América
Latina!
*Nome dos
povos nativos do continente americano, em substituição
a “índios” ou “indígenas”, nome dado pelo
invasor europeu, que ao “descobrir” o continente supunha haver
chegado nas Índias.
Daniel M.
Delfino
Setembro 2009
Nenhum comentário:
Postar um comentário