O fim do
“socialismo real” e a ofensiva neoliberal
A
América Latina tem experimentado nas últimas décadas
toda uma sucessão de alternativas políticas que não
puderam minorar a miséria de seu povo, diminuir as
desigualdades, a exploração, as opressões ou
sustar a devastação do seu território. Após
o fim das ditaduras militares, marca do período mais duro da
“guerra fria” no continente, ascenderam ao poder correntes e
partidos “democráticos” burgueses que se revezaram nos
governos sem conseguir resolver os graves problemas econômicos
decorrentes da atual etapa histórica de crise estrutural do
capital.
Os
problemas se agravaram a partir da década de 1990, quando a
queda do regime da URSS e dos Estados do leste europeu e a
restauração do capitalismo em todo o território
do chamado “socialismo real” propiciaram à burguesia
mundial a oportunidade de uma ofensiva política e ideológica
contra o socialismo, organizada a partir da idéia de “fim da
História” e de inevitabilidade da “globalização”
capitalista. O continente foi então depredado pelas
privatizações, desnacionalizações,
desindustrialização, explosão da dívida
pública, retirada de direitos trabalhistas, corte de gastos
sociais do Estado, saque aberto de recursos naturais estratégicos,
etc, em nome de um ideal de “eficiência” e
“competitividade” que só fez aumentar a miséria e a
precariedade das condições de vida da população.
A
esquerda organizada não soube reagir a esse projeto, pois
permaneceu (e em boa medida ainda permanece) incapaz de explicar o
fenômeno da queda do “socialismo real” e de oferecer uma
alternativa socialista às massas trabalhadoras diante do
avanço da “globalização” capitalista e suas
políticas neoliberais.
As
massas em luta buscam alternativas
Entretanto,
apesar da esterilidade da esquerda organizada, as massas não
deixaram de lutar contra os ataques da burguesia. Fenômenos
como o “caracazo” em 1989 na Venezuela, e a revolta indígena
zapatista de Chiapas em 1994 no México, foram precursores de
um ascenso das massas do continente. Esse ascenso se tornava mais
poderoso à medida em que avançava a década de
2000, a ponto de derrubar governos na Argentina em 2001, na Bolívia
em 2003 e 2005, e no Equador em 2000 e 2005.
Além
das revoltas de massas, verificou-se também uma guinada
eleitoral no continente, com a eleição de governos
ditos de “esquerda” no Brasil, na própria Argentina, no
Chile, no Uruguai, na Nicarágua e mais recentemente no
Paraguai, sinalizando uma completa rejeição das
políticas neoliberais e um claro desejo de mudança por
parte da população.
Evidentemente,
nenhum desses governos “moderados” rompeu com o imperialismo.
Todos renegaram sua origem e retórica “progressista”
passada e mantiveram o compromisso com as políticas
neoliberais, frustrando as esperanças de mudanças.
Diante da capitulação aberta dessa “esquerda”,
cresceu desproporcionalmente a dimensão dos governos ditos
“radicais” surgidos das lutas mais agudas na Venezuela, na
Bolívia e no Equador. O caso da Venezuela merece atenção
especial, pois o governo de Hugo Chávez, eleito em 1998, tem
se colocado ostensivamente como liderança de todo esse
processo, chegando a falar em “socialismo do século XXI”.
Sua influência e seu modelo são reproduzidos por outras
correntes e governantes, às vezes até passo-a-passo
(reforma constitucional, nacionalizações parciais,
retórica anti-imperialista, assistencialismo, etc.).
Existe,
pois, uma clara distinção entre as duas alas dessa
“esquerda” governante latino-americana – uma mais abertamente
neoliberal e pró-imperialista (cujo melhor exemplo é
Lula), e uma mais aparentemente “radical” (como Chávez).
Em comum, porém, essas duas alas têm como característica
central o fato de não romperem definitivamente com a ordem
capitalista. São expressões distorcidas do ascenso das
lutas no continente e da ausência de uma alternativa socialista
de massas. O “chavismo” é um fenômeno de grande peso
na atualidade, e sua influência precisa ser corretamente
compreendida à luz desse quadro histórico e político
mais amplo. Por um lado, ele expressa o desejo de mudança das
massas e, por outro, a sua confusão ideológica e falta
de clareza quanto à natureza das mudanças necessárias.
A
“revolução bolivariana” de Chávez
Do ponto
de vista marxista, são os processos sociais que explicam a
importância dos indivíduos e não o contrário.
Hugo Chávez é o resultado de uma estrutura mais
“democrática” das Forças Armadas na Venezuela, que
admite o acesso de membros da pequena-burguesia e mesmo da classe
trabalhadora à condição de oficiais. Foi como
oficial das Forças Armadas que Chávez ganhou
notoriedade nacional, liderando uma tentativa de golpe fracassada em
1993, ainda um eco da instabilidade que se seguiu ao caracazo.
Eleito
presidente em 1998, Chávez desenvolveu toda uma mitologia
política, resgatando ícones do passado (o libertador
Bolívar, virtualmente desconhecido no Brasil) e do presente
(Fidel Castro, de quem passou a ser aliado) para lhe dar sustentação
e projetando como horizonte uma “revolução
bolivariana”, que se desdobrou mais recentemente em “socialismo
do século XXI”. A falta de clareza ideológica desse
projeto, ou seja, a tentativa de omitir o caráter de classe
dos interesses que representa, permite a Chávez deslocar-se
com relativa liberdade, com discursos de esquerda e práticas
compatíveis com os interesses burgueses.
Concretamente,
Chávez deslocou a burguesia venezuelana, rentista e
parasitária, do controle da PDVSA, a estatal venezuelana do
petróleo. A Venezuela é uma das maiores produtoras
mundiais de petróleo, fonte de energia e matéria-prima
básica da economia mundial, cujo preço aumentou
gradativamente ao longo da década e vem até hoje
quebrando sucessivos recordes na sua cotação.
A partir
do aumento dos preços do petróleo e do conseqüente
aumento da arrecadação estatal via PDVSA, Chávez
pôde desenvolver uma série de programas sociais, em
especial os que levaram atendimento médico (médicos
cubanos enviados por Fidel em troca de petróleo barato) e
alfabetização para os setores mais pobres da população.
A burguesia venezuelana, privada do controle sobre os recursos cada
vez mais fartos advindos do petróleo, passou a lutar de todas
as formas para derrubar Chávez. A população
pobre, por sua vez, passou a apoiar maciçamente o presidente.
Desde
1998, Chávez e seus partidários venceram sucessivamente
todas as votações que disputaram (isso até o
referendo constitucional de 2007, sobre o qual falaremos adiante),
fossem eleições presidenciais, locais, constitucionais,
plebiscitos, referendos, etc. Em resposta, a burguesia venezuelana e
o imperialismo estadunidense tentaram um golpe de Estado em 2002 e
afastaram Chávez do poder por três dias. A massiva
reação popular (mais de um milhão de pessoas
cercaram o palácio presidencial exigindo seu presidente de
volta) e o controle de Chávez sobre parte do exército
derrotaram o golpe. Logo em seguida, em 2003, houve o “lockout”,
a greve patronal, também derrotada pela mobilização
dos trabalhadores, que então davam apoio irrestrito ao
presidente. Derrotando as tentativas de golpe, boicotes, campanhas da
mídia, etc., e vencendo sucessivas eleições,
Chávez assumiu um controle cada vez maior sobre o Estado
venezuelano.
Os
limites de classe do chavismo
Apesar
de todo o apoio que lhe deram os trabalhadores e os pobres, de toda a
retórica sobre “socialismo do século XXI”, da
postura aparentemente anti-imperialista “para inglês ver”,
etc, Chávez nem sequer iniciou qualquer movimento real em
direção a uma transição socialista de
fato, e isso não está no horizonte do seu projeto: a
Venezuela permanece um país capitalista, onde se mantém
a propriedade privada dos meios de produção, a extração
de mais-valia, a desigualdade social, o aparato repressivo do Estado
burguês, etc. A Venezuela segue vendendo petróleo aos
Estados Unidos e segue pagando a dívida externa. Quando o
golpe de 2002 foi derrotado, Chávez não reprimiu os
golpistas. No lockout de 2003, os trabalhadores assumiram o controle
da produção em vários setores, mas Chávez
fez com que este controle voltasse às mãos da burguesia
e da burocracia da PDVSA. Ao invés da ruptura, o chavismo
tenta a todo custo a conciliação com a burguesia.
Parte da
burguesia venezuelana, percebendo que não poderia vencer
Chávez, juntou-se a ele. Empresários “bolivarianos”
ingressaram no partido chavista e passaram a ocupar cargos públicos.
Redes de negócios corruptos foram formadas entre o Estado e
esses setores burgueses chavistas. A todo momento, Chávez
chama os empresários, inclusive as corporações
estrangeiras, a colaborar com a “revolução”. Cada
vez que o chavismo opta por fazer concessões à
burguesia, enfraquece as perspectivas de um avanço nas
conquistas dos trabalhadores.
A
revolução bolivariana não é classista,
portanto não é socialista. Seu horizonte é o do
velho nacionalismo burguês sul-americano, de figuras como
Vargas, Perón, Cardenas, e outros, reeditado em circunstâncias
históricas muito mais restritivas. Suas medidas não são
nem sequer reformistas, pois limitam-se ao assistencialismo. Num
quadro de controle cada vez maior do capital global sobre as
economias nacionais, medidas como a estatização total
do petróleo são inviáveis, sem que se faça
uma revolução de fato, e não apenas retórica.
Para
fazer essa revolução, Chávez teria que admitir o
controle da classe operária sobre a economia e a política.
Entretanto, seus passos caminham na direção contrária.
O chavismo se caracteriza pela centralização
organizativa e pela hipóstase da liderança personalista
do presidente. Não se admite divergências internas ou
questionamento à liderança. Toda a esquerda foi forçada
a se fundir no Partido Socialista Unificado da Venezuela (PSUV) e os
que se recusaram passaram a ser acusados de colaboradores da
burguesia. O PSUV ocupa a maioria dos cargos nas esferas nacional e
local. Constituíram-se inclusive milícias
paramilitares, sob o pretexto da necessidade de se defender da
burguesia e do imperialismo, mas que na verdade podem ser usadas
contra os próprios trabalhadores. O movimento sindical também
foi forçado a se adequar ao chavismo. As mobilizações
e greves foram reprimidas; dirigentes independentes, como Orlando
Chirino, foram demitidos; e os metalúrgicos da Sidor
precisaram lutar duramente contra a burguesia e a repressão do
governo chavista para obter a nacionalização da
empresa.
O
referendo de 2007
Foi
nesse quadro de crescente centralização do chavismo e
de asfixia das organizações independentes dos
trabalhadores, que se realizou o referendo constitucional de dezembro
de 2007, quando Chávez tentou aumentar ainda mais os poderes
institucionais da presidência, acenando com mais algumas
pequenas concessões para seduzir as massas. Entretanto, a
continuidade do capitalismo, a ausência de mudanças
estruturais, a permanência da miséria e da desigualdade,
o avanço da experiência dos trabalhadores mais
organizados (Chávez governa desde 1998) produziram pela
primeira vez uma ruptura das massas com o chavismo. Setores
importantes da classe trabalhadora se abstiveram na votação
e as propostas de mudança constitucional foram derrotadas.
Muitas
correntes da esquerda, no afã de se posicionar contra Chávez,
acabaram aderindo a mobilizações orquestradas e
financiadas pela burguesia venezuelana e pelo imperialismo, em
especial nos meios estudantis. Em nome da necessidade de se opor ao
chavismo, ultrapassaram a barreira de classe, o que é também
inadmissível. A luta contra o chavismo não pode
significar a defesa das políticas da burguesia.
Em
função dessa tentativa de centralização,
algumas correntes de esquerda caracterizam o chavismo como
totalitário, dando mostras do mais completo ecletismo e
confusão teórica. O totalitarismo é um conceito
do pensamento político burguês, portanto desprovido de
qualquer valor científico. Sua definição mais
acabada está na obra da filósofa liberal Hannah Arendt
(“As origens do totalitarismo”). De acordo com essa vertente do
pensamento burguês, os regimes políticos se classificam
num espectro que vai do mais autoritário (totalitário)
ao mais liberal (democracia burguesa). Ora, na realidade, os regimes
políticos se definem pelo seu conteúdo de classe e não
pelos seus mecanismos de funcionamento. Os regimes de Hitler e de
Stalin eram ambos ditatoriais, mas sua natureza de classe era
completamente diferente. O stalinismo se erigiu sobre a usurpação
do poder operário, portanto o seu autoritarismo era
decorrência de uma degeneração mais fundamental:
a traição de uma revolução. Não
era, portanto, “totalitário”, e sim burocrático. A
democracia burguesa, por sua vez, é uma ditadura de classe
tanto quanto o fascismo, diferindo apenas quanto à forma de
que se utiliza para controlar os trabalhadores.
Chávez
permanece dentro dos limites da democracia burguesa, seu método
consiste em aparelhar e dirigir os trabalhadores organizados e
cooptar as massas com o assistencialismo. Sua intenção
é assumir um controle burocrático cada vez maior sobre
a classe trabalhadora e administrar os conflitos de classe em
benefício da burguesia e da camarilha burocrática dos
seus partidários.
Os
socialistas devem defender a organização independente
da classe trabalhadora, a autonomia de seus organismos de luta e um
programa de reivindicações com medidas socialistas.
Devemos dialogar com os trabalhadores que tem o chavismo como
referência no sentido de mostrar os limites das medidas
chavistas e a necessidade de ultrapassá-las para atingir o
socialismo.
A
América Latina precisa avançar agora para a única
alternativa política que resta, a única que ainda não
foi colocada em prática: o socialismo.
Daniel M. Delfino
Julho 2008
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