3.11.15

A morte de Chávez e a questão do socialismo do século XXI



A morte do presidente venezuelano Hugo Chávez em 5 de março passado, depois de 2 anos de luta contra o câncer, que não o impediu de vencer a 14ª das 15 eleições de que participou, reabriu o debate sobre o significado do projeto chavista, sua “revolução bolivariana” ou “socialismo do século XXI” e as perspectivas para a Venezuela e a América Latina. Num momento inicial, os opositores de Chávez pela direita, o imperialismo e seus aliados latinoamericanos, as elites brancas, racistas e entreguistas que sempre governaram a América Latina de “veias abertas” e “relações carnais” com o imperialismo; os seus representantes na mídia, como revista Veja, Folha e Estado de São Paulo, rede Globo, etc.; todos comemoraram a morte de Chávez e anteviram o fim de seu projeto político. Chegou-se a falar até em instabilidade e perigo de golpe na Venezuela, tamanho é o ódio despertado pelo chavismo e o desejo da direita burguesa de retomar o poder a qualquer custo. Num segundo momento, consolidou-se a situação em que o vice de Chávez, Nicolas Maduro, assumirá o papel de condutor do projeto. Uma vitória eleitoral do chavismo, porém, longe de deixar “tudo resolvido”, nos coloca uma questão muito séria, a de qual deve ser a postura dos que lutam pelo socialismo em relação ao projeto chavista, seu balanço e perspectivas, sobre o que discutiremos a seguir.

Origem de Chávez e sua trajetória na Venezuela
A origem do movimento chavista pode ser buscada no “caracazo” de 1989, um imenso levantamento popular na capital venezuelana, em que os planos de “austeridade” (corte dos gastos sociais) do presidente Carlos Andrés Perez geraram manifestações colossais, saques aos supermercados, confrontos com a polícia, etc. O governo jamais se recuperou e a instabilidade permaneceu no país. Em 1992 um jovem coronel chamado Hugo Chávez liderou uma tentativa de golpe de estado que foi derrotada, que o levou a alguns anos na prisão. Carlos Andrés Perez seria afastado do poder em 1993, quando sofreu um impeachment por corrupção.
Ao contrário do restante da América Latina, não houve golpes militares na Venezuela para reprimir as lutas populares e a “ameaça comunista”, desde a queda do último ditador em 1958. Com isso, houve espaço para que se formasse um setor nacionalista nas forças armadas venezuelanas, de onde Chávez recrutou os integrantes do Movimento Quinta República. Com seu discurso contra a espoliação do país pelos Estados Unidos e o imperialismo, Chávez foi se tornando cada vez mais popular. Em 1998, foi eleito presidente, a primeira de suas várias vitórias eleitorais. Em 1999 alterou a constituição do país, que passou a se chamar República Bolivariana da Venezuela (em referência a Simon Bolivar, um dos líderes da independência dos países latioamericanos do domínio espanhol no século XIX e ídolo de Chávez). Seu projeto político, em termos de discurso, era completar a independência do país, contra os dominadores estrangeiros, desenvolvendo a soberania do Estado venezuelano.

Realizações do chavismo
A principal luta para que o governo de Chávez conseguisse desenvolver suas realizações (redução da pobreza, das desigualdades sociais, do desemprego etc.) foi a retomada do controle da empresa petrolífera estatal, a PDVSA. O petróleo é a principal riqueza do país, respondendo por 95% das exportações e 45% da arrecadação federal (dados do CIA World Factbook, disponíveis em https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/geos/ve.html). De acordo com a mesma fonte, a Venezuela é o 14º maior produtor de petróleo, com 2,45 milhões de barris por dia e o 10º maior exportador, com 1,69 milhões, e possui a 3ª maior reserva comprovada do mundo, com 209,4 bilhões. Antes de Chávez, a PDVSA era controlada por uma camada de gerentes corruptos apelidada de “meritocracia”, que não tinha mérito nenhum, mas a “esperteza” de roubar o dinheiro da estatal para montar negócios particulares. A burguesia venezuelana se sustentava nessa espoliação do dinheiro público, vivendo isolada do povo do próprio país e cultivando o hábito de residir em mansões em Miami.
A partir de Chávez, a maior parte da “meritocracia” foi expulsa ou passou a colaborar com seu governo. Com o aumento do preço do petróleo nos anos 2000 (de US$ 10,41 em 1998 para US$ 107,66 em 2013 e picos de US$ 132,55 em 2008, considerando-se uma média dos preços do barril das veriedades de petróleo tipo Brent, Texas Oeste e Dubai Fateh – dados do Indexmundi http://www.indexmundi.com/pt/pre%E7os-de-mercado/?mercadoria=petr%C3%B3leo-bruto&meses=300), a renda estatal aumentou de maneira explosiva. Com isso, Chávez passou a sustentar programas de bem estar social para a população pobre do país, tais como as chamadas “missões”, em que médicos (a maioria cubanos) e professores passaram a visitar as favelas e periferias, o que nunca havia acontecido; ou ainda como o programa “Gran Missión Vivenda”, programa de moradia similar ao “Minha Casa, Minha Vida” brasileiro, mas que, para o porte da sociedade venezuelana, tem um impacto muito maior (além de garantir que aqueles que ganham até um salário mínimo recebam sua casa totalmente custeada pelo Estado). Apesar dessas importantes mudanças, não houve qualquer alteração substancial no sistema capitalista. A exploração cotidiana dos trabalhadores permanece inalterada e permanecem os problemas sociais típicos do capitalismo: miséria, violência, corrupção... Como todo país capitalista pobre, periférico e explorado, a Venezuela chavista continuou vendendo petróleo aos Estados Unidos e continuou pagando a sua dívida externa.
A opoição de direita
Apesar da continuidade dos elementos fundamentais do capitalismo, a ousadia de Chávez de dividir uma parte da renda do petróleo com os pobres enfureceram a burguesia local e o imperialismo, tendo, pois, respaldo, principalmente, no setor da população de alta renda do país. Em 2002 um golpe de estado liderado pela Fedecamaras, a federação empresarial venezuelana, tirou Chávez do poder por dois dias e foi prontamente reconhecido pelos Estados Unidos. No entanto, um milhão de pessoas provenientes dos bairros periféricos de Caracas cercou o palácio presidencial, exigindo a volta de Chávez, que foi reconduzido ao poder pelo setor leal das forças armadas. Por todo o país, os trabalhadores se preparavam para um confronto armado, mas Chávez optou pela conciliação com os golpistas, que não foram punidos. Em 2003, os mesmos setores empresariais lideraram um “lockout”, uma greve patronal, com o fechamento das empresas, na tentativa de paralisar a economia para derrubar o governo. Os trabalhadores reagiram mais uma vez e chegaram a tomar o controle da produção da PDVSA. No entanto, mais uma vez Chávez chegou a um acordo com a burguesia e paralisou as iniciativas autônomas dos trabalhadores.
Sem conseguir derrubar ou desestabilizar Chávez, a direita (apelidada de “esquálida”) optou por um discurso ideológico raivoso, imputando ao presidente a pecha de ditador, nome pelo qual é tratado na imprensa internacional, a despeito das inúmeras eleições que venceu, de ter submetido seu mandato a referendo, etc. Pelos critérios da democracia burguesa, não há nada de anti democrático no governo chavista (discutiremos logo abaixo os critérios socialistas e de democracia operária). O que não se tolera na verdade é o seu discurso pseudo-socialista, pois a burguesia sabe o perigo que pode estar escondido nessa palavra, que havia sido banida do vocabulário. Nos anos seguintes, a oposição mudou seu discurso para uma variedade menos raivosa e conciliadora, “construtiva”, até porque o chavismo não rompeu em nada com o capitalismo, e muitos burgueses passaram a fazer parte do partido chavista.

O nacionalismo burguês do século XXI
O exemplo de Chávez se irradiou para o restante da América Latina, com importantes diferenças de país para país, mas ainda assim como parte de um processo comum. O continente passou por um importante ciclo de lutas populares na década passada, com grandes mobilizações contra os efeitos mais nefastos do neoliberalismo e da mundialização típicos da década de 1990. São exemplos desse ciclo a “guerra da água” em 2000 e a “guerra do gás” em 2003 na Bolívia, a queda de presidentes em 1997, 2000 e 2005 no Equador, e o mais massivo de todos, o “argentinazo” de 2001. Esses processos de luta representam uma resposta dos trabalhadores do continente aos efeitos da crise anterior do capitalismo, por volta do ano 2000. Entretanto, foram caracterizadas pela ausência de um projeto que questionasse não apenas os efeitos do neoliberalismo, mas o capitalismo como um todo.
Como parte daquilo que chamamos de crise da alternativa socialista, as lutas do início da década passada não tinham como referência um projeto de transformação revolucionária do conjunto da sociedade, mas o simples atendimento de demandas parciais. Não eram baseados numa tentativa organizada de tomar o poder e o controle da produção a partir dos locais de trabalho, mas sim em mobilizações em que os trabalhadores apareciam diluídos como habitantes de determinados bairros ou regiões do país. Com isso, ao invés de avançar para uma ruptura completa com o capitalismo, esses importantes movimentos de luta foram administrados por dentro dos mecanismos da democracia burguesa, ou seja, foram desviados para a ocupação de cargos no Estado. Elegeram-se candidatos que diziam representar a continuidade das lutas, exatamente para paralisá-las. Mantiveram-se as estruturas fundamentais do capitalismo, o Estado, a constituição, a propriedade privada, as forças armadas, etc.
Os dirigentes eleitos para paralisar as mobilizações, como Hugo Chávez na Venezuela, Evo Morales na Bolívia, Rafael Correa no Equador, retomaram um discurso nacionalista, que nem chegou aos pés do nacionalismo do século XX (o qual chegou a expropriar empresas estrangeiras que exploravam petróleo, como fez Cárdenas na década de 1930 no México). Sustentaram-se numa espécie de “nacionalismo de commodities”, baseando-se no aumento conjuntural dos preços dos hidrocarbonetos, minérios, produtos agrícolas, etc., que caracterizou a primeira década do século, para implantar algumas políticas sociais limitadas, das quais as populações latinoamericanas sempre foram cronicamente carentes. De outro lado, como representação de saídas menos “radicais” e a partir de uma negação menos contundente dos efeitos do neoliberalismo em sua roupagem mais “pura”, elegeu-se Lula no Brasil, cuja gestão neoliberal teve um papel decisivo para impedir o avanço das lutas e moderar os programas dos novos presidentes “de esquerda” ou que rompiam com o predomínio dos partidos tradicionais que se elegeriam dali em diante, como os Kirchner na Argentina, Bachelet no Chile, Vasquez no Uruguai, Lugo, no Paraguai, Ortega na Nicarágua, etc. Todos limitaram-se a um certo grau de avanço em políticas sociais, e, em larga medida, numa gestão aceitável para a burguesia.
As fragilidades da alegação de um “Socialismo do Século XXI”
A “revolução bolivariana” na Venezuela foi o protótipo e modelo de todos esses movimentos. Ao dizer que defende um “socialismo” busca confundir e dar um ar de esquerda e anticapitalista ao seu projeto, que todos sabemos não tem nada de socialista. Trata-se de uma confusão proposital, para atrair o apoio de todos os que simpatizam com o socialismo. Essa confusão proposital é um estelionato, uma manobra de usurpação do conceito de socialismo para defender a continuidade do capitalismo. Com isso, a nomenclatura termina por realizar duas confusões: primeiramente, induz à ideia de que no século XX houve socialismo; em segundo lugar, na verdade, escamoteia as reais distinções deste projeto para com a ideia de socialismo.
Em primeiro lugar, o fato de que o método proposto para alcançar o socialismo não é uma ruptura revolucionária, mas a eleição de candidatos que impulsionem um “processo de mudanças”. Ora, já vimos no caso da própria Venezuela como a burguesia reage no caso de uma tentativa de “mudanças”, com o golpe e o lockout, e como Chávez, ao invés de aprofundar as mudanças, optou por conciliar com os golpistas. Ou seja, a intenção de fato nunca foi romper com o capitalismo, mas continuar convivendo com ele. A lição é de que não existe socialismo sem a tomada do poder, a destruição da máquina do Estado (forças armadas, polícia, judiciário, legislativo e executivo), a expropriação dos meios de produção (fábricas, minas, fazendas, bancos, etc) e a sua gestão coletiva.
Em segundo lugar, o fato de que o “socialismo do século XXI” não se baseia na classe trabalhadora, a classe que produz toda a riqueza social. As bases sociais originárias do movimento chavista foram e continuaram a ser as forças armadas, as quais se juntaram, posteriormente, os setores mais poderosos da burocracia venezuelana; ou seja, as bases sociais do chavismo residem no próprio aparato do Estado. Os trabalhadores respaldam o chavismo por causa das pequenas melhorias (ainda que importantes) que obtiveram, mas são essencialmente um objeto passivo, uma massa pronta a atender a seu governo, no “seguidismo” típico do chavismo. Não são os trabalhadores que determinam os rumos do movimento, mas o próprio Chávez e agora seus sucessores é quem decidem tudo. Os trabalhadores não aparecem como sujeito social autônomo, dotado organismos auto determinados e baseados nos locais de trabalho, a partir de onde se possa socializar a produção, mas como moradores dos bairros, cujo papel é eleger candidatos chavistas e pressionar por verbas do Estado. Contra isso afirmamos em alto e bom som: não existe socialismo sem a classe trabalhadora auto determinada!
Em terceiro lugar, o fato de que não há uma verdadeira democracia operária na Venezuela chavista, mas a mesma democracia burguesa de sempre. Chávez não só manteve a estrutura do Estado burguês como a usou para reprimir os trabalhadores em diversas greves e processos de luta, prender dirigentes sindicais, etc. As organizações dos trabalhadores foram forçadas a se dissolver e seus militantes a entrar no partido chavista, o PSUV, acatando o centralismo burocrático, o projeto eleitoral e abstendo-se de apresentar divergências. Aqueles que não aceitassem seriam rotulados de “contra revolucionários” e aliados da direita “esquálida” e do imperialismo.
Em quarto lugar, ainda que o chavismo tivesse avançado para um maior controle estatal, o que nem sequer aconteceu numa escala significativa, o socialismo não é o mesmo que estatização, nem se limita a uma simples divisão da renda através do Estado. O socialismo se define pela existência de organismos auto determinados dos trabalhadores, compostos por representantes eleitos pela base em cada local de trabalho, com mandatos revogáveis a qualquer tempo, responsáveis por gerir coletivamente a produção, decidindo o que produzir, como produzir e em que quantidade, acabando com a separação alienada e hierárquica entre economia e política, entre os que decidem e os que executam, entre os que fazem trabalho braçal e intelectual. Tudo isso está ausente do projeto chavista. Por ter mantido as próprias características de sua origem militar, sua concepção de mundo é hierárquica e burocrática: cabe ao presidente decidir e ao povo obedecer.

Nem pró imperialismo nem pró chavismo: por uma alternativa socialista e operária!
Em função dessas diferenças gritantes entre o chavismo e o socialismo, muitos socialistas passaram a fazer oposição sistemática a Chávez. Nessa oposição, entretanto, várias correntes socialistas foram longe demais, a ponto de ultrapassar a barreira de classe. Passaram a defender bandeiras e palavras de ordem idênticos ao dos opositores burgueses, participando de manifestações lado a lado com os “esquálidos”. O exemplo mais claro desse erro foi o do PSTU no Brasil, que aderiu à campanha do “Não” no referendo constitucional sobre reeleição em 2009, apoiando as manifestações dos estudantes “esquálidos” por democracia.
De outro lado, por conta do cerco global do imperialismo contra o chavismo e seus derivados, muitas correntes socialistas adotaram a postura de apoio (às vezes, crítico) a Chavéz. Com isso, levam em consideração as realizações do chavismo, os programas sociais, etc., e desconhecem seus limites, que descaracterizam qualquer pretensão de socialismo (manutenção do capitalismo, do Estado, da propriedade privada, centralização burocrática, etc.). Ainda assim, essas correntes se colocam como parte do campo chavista, priorizando a defesa da “revolução bolivariana”, em relação ao desenvolvimento de organizações autônomas dos trabalhadores. O exemplo dessa postura no Brasil é o do PCB e correntes próximas.
Essas duas posições cometem o erro de perder a referência de classe. O chavismo não é um movimento de superação radical da miséria da classe trabalhadora e não serve como caminho para o socialismo. Ainda assim, a Venezuela e outros países em que se estabeleceram governos nacionalistas burgueses no século XXI se tornaram alvos preferenciais do imperialismo e devem ser defendidos contra qualquer tentativa de golpe ou de intervenção. Mas os trabalhadores devem se manter independentes desses governos, pois do contrário serão as maiores vítimas quando são derrubados, seja pela via eleitoral ou pela força, como aconteceu com Lugo no Paraguai, que foi derrubado sem esboçar qualquer reação. Esses governos são incapazes de reagir, como foi demonstrado várias vezes na história, e o chavismo o demonstrou mais uma vez, pois seus dirigentes são incapazes de romper com a barreira de classe, com a propriedade privada e o Estado. Essa lição é crucial num momento histórico em que o capitalismo atravessa uma de suas mais violentas crises e a luta de classes tende a ficar mais aguda e transparente. Apesar de nos solidarizar com o sofrimento por que passa o povo venezuelano, somos todos chamados a reafirmar que só a superação do capitalismo pode pôr fim a todas as mazelas que acometem a Venezuela. Esta superação, porém, só pode se dar por uma autêntica revolução socialista, revolução esta para a qual se faz necessário o desenvolvimento de organismos de luta da classe trabalhadora armados com um programa de ruptura com o capitalismo, completamente independentes de correntes pequeno-burguesas, nacionalistas e burocráticas. Nesse sentido, a oposição que fazemos ao chavismo não se estende às lutas do povo venezuelano; pelo contrário, nos colocamos prontamente em solidariedade às suas lutas contra a burguesia e contra os interesses do imperialismo.

Daniel M. Delfino
Abril 2013


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