No
momento em que este texto estava sendo finalizado, os Estados Unidos
estavam ultimando os preparativos para bombardear a Síria,
como punição ao governo de Bashar Al Assad pelo uso de
armas químicas contra a população (um ataque com
gás sarin teria deixado cerca de 1400 mortos num bairro
controlado por rebeldes na própria capital Damasco em 21 de
agosto). A Síria enfrenta uma guerra civil desde o início
de 2011, quando a população seguiu os exemplos de seus
irmãos em outros países da região e saiu às
ruas para pedir a saída da ditadura, iniciada em 1970 por
Hafez Assad, pai do atual ditador. As manifestações na
Síria e a guerra civil que se seguiu a elas são parte
do processo mais geral da Primavera Árabe, e o iminente
bombardeio estadunidense marcam uma importante virada no cenário,
com a tentativa do imperialismo de retomar o controle da situação.
O
contexto da Primavera Árabe
A
Primavera Árabe se iniciou com uma série de rebeliões
populares contra as ditaduras que há várias décadas
oprimiam as populações da região a serviço
do imperialismo. Os governos do Egito, Tunísia e Líbia
foram derrubados (com muitas diferenças, contradições
e retrocessos em cada caso) e vários outros balançaram
em diversos países. Essas rebeliões no norte da África
e Oriente Médio marcaram uma nova situação
mundial, em que a classe trabalhadora começou a se colocar em
luta contra as conseqüências da crise econômica
global iniciada em 2008, como o desemprego (em particular dos
jovens), inflação, etc., parte da crise estrutural do
capitalismo. Manifestações semelhantes, ainda que não
tenham tido a força de derrubar os governos, se espalharam
pelo mundo e permanecem sendo uma das características centrais
dessa nova situação mundial.
Entretanto,
apesar de um sentido geral progressista, essas massivas lutas
populares se ressentem de sérios limites, em especial a
ausência de um projeto político alternativo que ataque
as causas dos problemas, que tenha como proposta superar o próprio
capitalismo, e de organizações de luta baseadas na
classe trabalhadora capazes de liderar o conjunto das populações
para lutar por esse projeto. Os povos em luta ainda identificam os
problemas que os levam às ruas, como desemprego, carestia,
corrupção, etc., com a figura pessoal de um ou outro
governante, e imaginam que a sua remoção resolverá
os problemas, quando na verdade será necessário uma
transformação muito mais profunda, uma verdadeira
revolução, anticapitalista e socialista.
A
contraofensiva do imperialismo
Na
ausência desse projeto, essas gigantescas mobilizações
acabam se encontrando diante de becos sem saída, que resultam
nos dramáticos desenvolvimentos que temos visto nas últimas
semanas. No Egito, o principal país de toda a região, a
insatisfação com o governo da Irmandade Muçulmana,
surgido como alternativa eleitoral à rebelião de 2011,
levou a manifestações ainda maiores do que aquelas que
derrubaram o ditador Mubarak. Entretanto, a falta de organizações
e programas capazes de unificar todas as forças populares deu
a oportunidade para que o exército (que mantém fortes
laços com o imperialismo estadunidense por conta da ajuda
financeira) desse um golpe, que ameaça cancelar todas as
conquistas democráticas havidas desde então. Sinal
disso é a ordem do novo governo militar de retirar da prisão
o ditador Mubarak, evidência inequívoca do retrocesso
que obrigará as massas daquele país a retomarem a luta
para não sucumbir a uma nova ditadura.
Na
Síria, o ditador Assad reagiu às manifestações
chamando a minoria alauita (ramo do islamismo xiita) e cristã
a lutar contra a maioria sunita, que estaria querendo
“exterminá-los”. Na verdade, os alauitas são o
setor que controla o país desde o início da ditadura,
quando ocuparam os principais cargos no governo e nas forças
armadas. Com isso, a ditadura transferiu o problema político e
social da insatisfação com a ditadura, a partir de onde
as divisões de classe poderiam unificar os explorados contra o
governo, para o terreno da rivalidade religosa. Cada seita habita
determinadas regiões e cidades do país, ou mesmo
bairros específicos das maiores cidades e da capital Damasco,
de modo que a divisão entre partidários do governo e
opositores é muito nítida e bem definida.
A partir
desse chamado do ditador para a luta armada, facções
baseadas em cada um dos grupos confessionais em que se divide a
população iniciaram uma sangrenta guerra civil, que já
provocou centenas de milhares de mortes, e um número ainda
maior de feridos, desabrigados e refugiados, obrigados a imigrar para
os países vizinhos em condições tremendamente
precárias para fugir do conflito. A catástrofe
humanitária se espalha pelos vizinhos Turquia e Jordânia.
O
conflito sírio
Os
grupos armados que enfrentam a ditadura de Assad pareciam a princípio
representar os anseios da população que saiu às
ruas em protesto. Entretanto, os conflitos logo degeneraram em
rivalidades sectárias, com os dois lados atacando
indiscriminadamente a população civil, pelo simples
fato de pertencer a outra religião. O exército sírio
lançou mão de bombardeios aéreos, mísseis,
morteiros, os opositores usaram carros bombas, franco atiradores. A
espiral de violência chegou ao ápice com o uso de armas
químicas pelo exército do ditador. Isso permitiu aos
Estados Unidos mobilizar a indignação mundial para
conseguir a aprovação para o ataque (trata-se é
claro de um tremendo cinismo, já que as forças armadas
estadunidenses já perpetraram as maiores atrocidades da
história, como bombardeios nucleares no fim da II Guerra,
napalm na guerra do Vietnã, munição radioativa
na ocupação do Iraque, etc.).
Desde o
início dos conflitos em 2011 os diversos setores em luta
contra a ditadura de Assad nunca conseguiram a unificação,
já que possuem sérias diferenças entre si. O
chamado Exército Livre da Síria é uma colcha de
retalhos, composto por setores burgueses que faziam oposição
a Assad, desertores do governo (portanto cúmplices da ditadura
ao longo de todos esses anos), setores fundamentalistas e até
setores ligados à Al Qaeda. Alguns desses grupos recebiam
armas e munição da Arábia Saudita, testa de
ferro dos Estados Unidos na região. Ao tomar o controle de
determinadas regiões do país, os grupos
fundamentalistas impunham a lei islâmica (a chamada sharia),
submetendo em especial as mulheres a uma opressão ainda mais
brutal, tal como os talibãs no Afeganistão.
Diante
dessa composição e desse comportamento dos opositores
de Assad, não há como chamar a guerra civil síria
de revolução. Não há como apoiar esse
setor no confronto com o ditador. A oposição armada não
representa a continuidade do movimento popular que fazia oposição
à Assad, mas a sua distorção. Não são
a continuação da Primavera Árabe, mas o inverno.
O Exército Livre da Síria não se subordina ao
movimento dos trabalhadores sírios, mas sim ao imperialismo.
Caso cheguem ao poder, esses setores vão dar sequência à
exploração dos trabalhadores, tal como acontece hoje na
ditadura, com o elemento adicional de que estarão cumprindo
ordens dos Estados Unidos.
Os dois
lados em guerra estão contra os trabalhadores
O
governo Sírio, por sua vez, recebia apoio material ou político
do Irã, da Rússia e da China, às vezes de
maneira ostensiva, às vezes mais explícita. Esse apoio
decresceu bastante depois do ataque com armas químicas (o
governo, é claro, culpou os rebeldes pelo ataque, mas ninguém
pareceu lhe dar ouvidos). Assad se encontra isolado e corre o risco
de ter o mesmo destino do ditador líbio Kadafi, executado por
rebeldes ao fim de um conflito também cheio de contradições.
Entretanto,
o fato de que Assad tenha se tornado um alvo do imperialismo não
pode fazer com que, em nome da oposição aos Estados
Unidos, se faça qualquer tipo de unidade com o ditador. A
posição clássica dos socialistas
revolucionários, diante de qualquer conflito armado entre
setores burgueses, deve ser a defesa da independência de classe
dos trabalhadores, a transformação da guerra civil em
uma guerra revolucionária. Nem a ditadura de Assad nem a
oposição apoiada pelo imperialismo representam os
trabalhadores!
Muitas
correntes da própria esquerda declaram apoio seja aos
rebeldes, seja ao ditador, por serem essas as opções
“concretas” que estão opostas em conflito. Em ambos os
casos, essas correntes raciocinam a partir de uma concepção
substituísta, em que as tarefas dos trabalhadores na revolução
podem ser cumpridas por outras forças, que podem ser os
rebeldes de um lado, ou o ditador sírio do outro (a origem da
ditadura síria está no partido “Baath”, uma versão
do nacionalismo árabe, que chegou a ser chamada de
“socialista”). Numa enorme confusão teórica,
imaginam que luta contra o ditador de um lado ou a resistência
ao ataque imperialista do outro possam se transformar automaticamente
em passos na direção da revolução.
Para
transformar esses dois lados em alternativas viáveis, são
obrigados a fazer grotescas operações de “maquiagem”,
ora ignorando os vínculos dos rebeldes com o imperialismo, ora
ignorando décadas de crimes da ditadura. Ao invés
disso, defendemos a independência de classe e a construção
de organismos próprios dos trabalhadores. Não existe
atalho para a revolução que dispense os socialistas de
desenvolver a organização e a consciêcia dos
trabalhadores em direção à ruptura com o
capitalismo, fonte de todas as guerras e misérias.
Contra o
ataque imperialista!
Por mais
desesperador que isso pareça no caso sírio, é
preciso se posicionar contra o bombardeio estadunidense, que é
a principal ameaça no momento. A derrubada do governo sírio
por “rebeldes” patrocinados pelo imperialismo representaria uma
derrota para todos os povos da região. Ao mesmo tempo, é
preciso se manter independente do governo Assad, uma ditadura
assassina que mantinha algumas contradições com os
Estados Unidos e Israel, mas nunca foi favorável aos
trabalhadores, nem muito menos socialista!
Fora o
imperialismo da Síria! Contra os bombardeios!
Fora o
imperialismo do Oriente Médio!
Pela
vitória da Primavera Árabe e pela queda das ditaduras
da região!
Abaixo a
ditadura de Assad!
Contra
as ideologias fundamentalistas! Contra a opressão das
mulheres!
Contra
os métodos terroristas e o massacre da população
civil!
Por uma
alternativa socialista dos trabalhadores!
Daniel M.
Delfino
Outubro
2013
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