A eclosão
dos escândalos de corrupção do governo Lulla deu
à mídia a oportunidade para colocar em cena o script de
que “o Brasil está em crise”. Trata-se de mais uma
rasteira mistificação, típica dos
escrevinhadores de aluguel acostumados a pensar sob o ponto de vista
de nossa rapace burguesia (anti)nacional. O Brasil sempre esteve em
crise, visto que as condições de vida miseráveis
das massas, das periferias das grandes cidades, dos desempregados e
subempregados, dos sem-terra, sem-teto, sem-hospital, sem-escola,
sem-cultura e sem nada, etc.; não podem ser consideradas nada
menos do que críticas. Se não se quer discutir essa
realidade, não se pode falar seriamente em crise.
No
entanto, amiúde, fala-se em crise. A revelação
de que o governo Lulla é corrupto é o componente
principal de mais essa “crise” pré-fabricada. Nesse script
do Brasil “em crise” a própria mídia ocupa o lugar
de protagonista. De escândalo em escândalo, de mensalão
para cuecão, de mala preta para Daslu, da desfaçatez
dos depoimentos para o oportunismo dos comentários, assiste-se
a uma novela escatológica em cadeia nacional na qual se dilui
a política nos esgares da pornochanchada e se decompõe
a ideologia nos números trôpegos do ibope. Aguardem
novas emoções no próximo capítulo.
Para quem
não é afeito ao mise-en-scéne folhetinesco, cabe
perguntar quais são os contornos concretos dessa suposta
“crise” de que tanto se fala. Quando se busca pelos fundamentos
materiais da “crise”, percebe-se que ela é triplamente
falsa. A primeira dimensão da falsidade é dada pelo uso
indevido da palavra “crise”, pois, conforme assinalamos acima, a
grande maioria dos brasileiros já vive em crise. Logo, a crise
não é nenhuma novidade, é uma desagradável
companhia cotidiana permanente para uma esmagadora maioria da
população. No entanto, não é,
evidentemente, no interesse dessa maioria que a mídia fala. O
Brasil só entra em crise, do ponto de vista da mídia,
quando os interesses a que ela serve se vêem minimamente
ameaçados.
É
o caráter dessa suposta ameaça que cumpre verificar. A
segunda dimensão da tripla falsidade diz respeito ao uso
deformado da palavra “crise” para designar as inquietações
do mercado. A mídia, deslumbrada, querendo ser mais realista
que o rei, enxerga uma crise em cada esquina. Fabricar crises é
o “modus operandi” usado para reciclar sua própria
utilidade social caudatária.
Mas por
mais vil e profunda que seja a rendição da nossa mídia
aos grandes poderes, materializada no hábito de raciocinar a
partir de um ponto de vista de interesses de classe muito restritos;
não se trata de uma simples aberração pessoal de
toda uma geração de jornalistas ambiciosos,
oportunistas e narcisistas, mas de determinações
objetivas do processo de ajustamento ideológico do capitalismo
em crise. Trata-se de exigências práticas ditadas pela
necessidade de consolidar um novo e monstruoso consenso manipulado
com vistas a prolongar artificialmente a sobre-vida deletéria
do sistema.
O
sociólogo mineiro Gilberto Felisberto Vasconcelos, um dos mais
importantes e originais pensadores brasileiros em atividade, por meio
de sua pregação mensal na revista “Caros Amigos”,
quase fez deste escriba um seguidor. É de G. F. Vasconcelos a
autoria do conceito de “capitalismo videofinanceiro”, que servirá
de ponto de apoio para a tentativa empreendida neste momento de
aprofundar a compreensão da conjuntura que atravessamos. O
“capitalismo videofinanceiro” é o filho bastardo da
nefasta união entre o capital especulativo e a indústria
global das telecomunicações, os quais por sua vez são
pilares da política neoliberal hegemônica pela qual o
imperialismo tenta impor sua versão bárbara da
“globalização”.
Da década
de 1990 em diante as mídias em geral convergiram para o
formato dos telejornais 24 horas da CNN e dos boletins “on-line”
da internet. Nesse dilúvio fragmentário de
“informações”, não há possibilidade
de articulação, depuração, hierarquização
de conceitos, com vistas à formação efetiva de
conhecimento substantivo. O único eixo interpretativo
universalmente inteligível é justamente o dos índices
econômicos. A cotação do dólar e a
variação da bolsa indicam o quão saudável
está a economia de um país. Se o dólar está
cotado a um preço “razoável” e as bolsas estão
subindo, tudo vai bem. Do contrário, tudo está mal.
No
caricatural maniqueísmo obsessivo do videopôquer
financeiro dilui-se tanto a identidade cultural nacional como a
soberania material do país sobre seus fluxos de riqueza. Mais
do que matar a fome do povo, o que importa é manter os índices
econômicos em níveis “aceitáveis” nas telas
de TV. Nos Trinta Minutos de Amor do Jornal Nacional, 180 milhões
de corações e mentes voltam-se para a teletela a fim de
saber, angustiados, se o deus mercado ainda nos ama. Mas nem mesmo
toda a capacidade teledramatúrgica da Globo, forjada em
décadas de bem-sucedido aprendizado nas lides da alienação
coletiva, pode produzir uma crise quando não há uma.
Para
entender porque não estamos atravessando uma verdadeira crise,
nesse segundo aspecto da tripla falsidade mencionada, convém
recordar um caso histórico. Às vésperas das
eleições de 2002, o Brasil viveu uma grave “crise
econômica”. O dólar subiu às alturas, as bolsas
de valores despencaram, os capitais especulativos debandaram, a
inflação repicou perigosamente, os juros tiveram que
ser elevados, etc. A justificativa para essa “crise” estava no
medo da parte do mercado de que Lulla vencesse as eleições.
Se Lulla vencesse, poderia ocorrer uma mudança na política
econômica de FHC. Se a política econômica fosse
modificada, apenas o mercado seria prejudicado, mas isso foi usado
como argumento para que não se votasse em Lulla. O argumento
então usado rezava que, caso Lulla mudasse a política
econômica, o mercado deixaria de olhar favoravelmente para o
Brasil e o país entraria em “crise”.
Em outras
palavras, “o que é bom para o mercado é bom para o
Brasil”. Ao invés de pensar nos seus próprios
interesses, o eleitor brasileiro deveria pensar primeiro no que o
mercado iria achar do candidato eleito. Ao invés de pensar no
que o candidato estaria propondo para resolver os problemas do país,
o eleitor deveria pensar no quanto a imagem do candidato seria
agradável para o mercado. O que decide as eleições
num país periférico não é o programa do
candidato para o país, mas sua oferta para o mercado. A oferta
de Lulla foi considerada razoável, de modo que o candidato da
“oposição” teve anuência para vencer. Com a
consciência pesada de tantos anos de rapina, o mercado estava
preparado para deglutir o sapo barbudo e tolerar a festa da plebe,
sempre esperançosa.
No
entanto, a oferta do sapo ao mercado mostrou-se mais palatável
do que se esperava. Em poucos meses a “crise” amainou e
ensaiou-se inclusive o “espetáculo do crescimento”. Nem
mesmo FHC foi tão servil ao mercado e ao imperialismo quanto
Lulla. Por um irônico paradoxo, FHC não podia sê-lo
porque em sua época havia o PT na oposição,
dizendo ser “contra tudo isso que está aí”.
Voltemos,
pois, ao momento presente, à “crise” de 2005. Como estão
as cotações do dólar, da bolsa, dos juros, da
inflação? Como vai o pulso do mercado hoje, 08/07/2005,
no momento em que o presente texto é escrito? O que dizem os
noticiários econômicos, vez por outra tão
histéricos? Não é preciso ser especialista em
índices financeiros para perceber que não há
crise nenhuma. O mercado segue navegando de vento em popa no mar de
águas calmas da economia brasileira, firme e imperturbável
em seu curso sanguinário de extorsão do país.
Uma
providencial blindagem de teflon impede que os respingos do mar de
lama grudem nos guarda-livros Palocci e Meirelles. Esses dois
cidadãos “acima de qualquer suspeita” seguram a chave do
cofre, de onde sai o pagamento da dívida externa. Isso é
tudo o que interessa. Que as camarilhas políticas tupiniquins
massacrem umas às outras no deprimente espetáculo
midiático de CPIs e troca de acusações mútuas,
que todas essas acusações sejam ao final verdadeiras,
que o país esteja sendo roubado por seus políticos,
tudo isso é insignificante do ponto de vista do mercado. O
mensalão não é rigorosamente nada comparado ao
“superavitão” com que as virginais vestais da
ekipekonômica cevam o mercado. Se o superavitão continua
sendo religiosamente pago, não há crise. Ponto final.
Onde está
a falha do script da crise? Por que o círculo não se
completa? Porque não existe oposição. Os
partidos em disputa com o PT, como PSDB e PFL, não representam
mudança nenhuma, senão a continuidade da mesma
política. São tão podres quanto o PT, mas isso é
irrelevante para o mercado. Mesmo as CPIs, válvula por onde os
aspectos excrementícios da política burguesa vêm
à tona (diz a sabedoria tradicional sobre as CPIs que se sabe
muito bem como elas começam, mas nunca se sabe como terminam),
não tiram o sono de ninguém. A degenerescência
pode atingir níveis de putrefação insuportáveis,
sem que isso determine uma “crise” sistêmica, pois os
grupos rivais representados pelas siglas PT/PL/PP/PTB/PMDB ou
PSDB/PFL são corretamente vistos como intercambiáveis.
São todos corruptos, mas isso não importa, porque são
todos neoliberais.
A
contradição programática que vitima o PT vitima
também a oposição, no sentido inverso. Se o PT
paga o preço por ser um partido como os outros
(corrupto/neoliberal), assumindo o programa que criticava, a oposição
paga o preço de não ter alternativa a oferecer, pois
seu programa já foi usado e abusado.
Diz-se
acima que a crise é triplamente falsa e expôs-se em
seguida as duas dimensões da falsidade expressas no fato de
que: 1o.) a única crise verdadeiramente relevante no país
é a perpetuação da miséria; 2o.) os
escândalos de corrupção que assolam o governo de
turno não representam uma crise para o mercado, pois não
existe uma oposição disposta a mudar o modelo de
política econômica; agora torna-se necessário
explicitar a terceira dimensão da falsidade da “crise”.
O script
da crise derrapa não só porque o tipo de processo que a
mídia prestativa em seguir o mercado se acostumou a chamar de
“crise” não está em andamento; mas porque esse tipo
de processo não é crise. As “crises” da era FHC não
eram crises. Eram sobressaltos do mercado amplificados pela mídia
subserviente para viabilizar a chantagem política e eleitoral
contra o direito do povo brasileiro de decidir o que fazer com a
riqueza produzida por seu trabalho. No momento, não há
nenhum sobressalto nem é necessária nenhuma chantagem,
pois não se vislumbra ainda no cenário nenhuma ameaça
a essa ordem espúria. Se o modelo estivesse em xeque, veríamos
uma verdadeira (e muito bem-vinda) crise, ao invés da
ópera-bufa em cartaz.
Nossa
mídia gosta de brincar de “crise”, mas tudo não
passa de factóides políticos. A súbita avalanche
de denúncias só se explica pela proximidade promíscua
da mídia com os mesmos elementos a que denuncia. Como disse
Roberto Jefferson no Roda Viva, “qual é a novidade? Até
parece que vocês todos não sabiam disso...” Políticos
e jornalistas usam uns aos outros em busca de fama, dinheiro e poder.
Esse é o jogo. Essa é a crise. Aberto o flanco do
governo, a mídia ataca o PT direto na jugular. A afoiteza e a
agressividade desse ataque revelam, como em um ato falho, quem é
o alvo do ódio dos escrevinhadores.
O mercado
assimilou a vitória do PT, mas não a mídia. Os
escrevinhadores se aproveitam ignominiosamente do naufrágio do
PT para vergastar o projeto que o partido representava, revestindo
seu inconfessável ódio senhorial às classes
subalternas com a respeitável máscara de crítica
à corrupção. Das páginas dos jornalões
e das falas dos comentaristas desprendem-se odores fétidos,
recendendo a um anticomunismo à la TFP. O mercado não
dá um tostão por essa retórica démodé,
pois não precisa dela para assegurar a fidelidade do PT de
Lulla. O mercado não precisa da vigilância da mídia
para ter o PT às suas ordens, porque pagou muito bem pela
obediência do partido. Procure-se a lista dos contribuintes da
campanha do PT (bingos, empreiteiras, bancos) e encontrar-se-ão
os autores do programa de governo posto em prática. Quem paga
o músico escolhe a melodia a ser tocada. Enquanto o PT dançar
conforme a música, não será hostilizado pelo
mercado.
Se o
governo está em crise, trata-se de uma crise de iniciativa
política, uma crise da imagem de Lulla e do projeto eleitoral
do PT. Uma crise no nível da superestrutura, expressando o
confronto entre as facções em disputa pela máquina
do Estado. Já há, tanto no front tucano como no próprio
estado-maior petista, quem aconselhe Lulla a desistir da reeleição
em favor da candidatura salvadora de Palocci, em nome da necessidade
de “manter a estabilidade”. Em outras palavras, tolera-se tudo,
até uma crise política, desde que o modelo de política
econômica não seja questionado. No apagar da luzes do
governo Lulla ainda há holofotes disponíveis para os
mais descabidos disparates. Delfim Neto, co-signatário do
assassino AI 5 da ditadura, reaparece do reino das trevas do economês
para propor nada menos do que o corte das despesas com saúde e
educação para chegar à meta de “déficit
nominal zero” em 2010; nova versão do “esperar o bolo
crescer para depois dividir” de trinta anos atrás.
A crise é
formal, não substancial. Como foi dito, o desafio aberto ao
modelo em vigor ainda não colocou o sistema em xeque. Mas o
tiroteio praticado a esmo pode descambar nessa direção.
A campanha contra Lulla não é racional, nem coerente,
porque é feita de acidentes fortuitos e oportunismo arrivista.
Não foi pensada em função de um projeto, mas em
nome da decomposição da idéia de projeto. Não
é uma campanha unificada, do contrário seria preciso
acreditar em uma conspiração orquestrada pela CIA (o
imperialismo somente descarta seus fantoches quando eles se tornam
inúteis ou embaraçosos). O risco derivado dessa falta
de estratégia é de que sejam evidenciados os nexos
entre ética (corrupta) e programa (neoliberal), de modo que
“os políticos” sejam todos rejeitados em bloco pela
população.
Não
há como separar a identidade ética da identidade
programática. A busca por “segurança” ofusca os
políticos corruptos (FHC, Lulla) em favor dos tecnocratas
robóticos (Palocci, Delfim), o que só contribui para
acelerar a débâcle. Se alguém disser que esse
processo se parece muito com aquele pelo qual o argentino De La Rúa
convocou o odiado Cavallo, candidato do imperialismo derrotado nas
eleições imediatamente anteriores, para ser seu
superministro, com plenos poderes sobre a administração
do país; este escriba lembrará que há não
muito tempo se dizia que “a Argentina é o Brasil amanhã”,
prontificando-se a ficar na primeira fila do panelaço que se
avizinha.
Detalhes
e provas foram levantados em torno do PT de Lulla numa abundância
suficiente para levar ao impeachment qualquer governante. Se
estivéssemos em qualquer outro governo, a palavra de ordem do
“fora Lulla” já estaria nas ruas. Por que não se
cogita fazer o impeachment de Lulla? Por que Lulla é tão
necessário para a estabilidade do sistema? Por que a transição
para o pós-PT parece tão nebulosa, inviável,
arriscada?
Lulla é
o último fiador do capitalismo videofinanceiro tupiniquim.
Fora do lullismo não há salvação, tremem
alhures. Por mais desgastado que esteja o cartaz do Grande Irmão,
o Partido não pode prescindir de sua figura. Lulla ainda é
indispensável na contenção das frustrações
populares. Fazer o impeachment de Lulla exigiria colocar as massas
nas ruas. No entanto, dado o estado de ânimo das massas na
América Latina de hoje, quem se arrisca a brincar de aprendiz
de feiticeiro? Uma vez posta em movimento a indignação
popular represada, com o agravante das sucessivas traições,
quem pode garantir o rumo que tomará o processo? Quem quer
brincar de Argentina, Equador, Bolívia?
Aí
sim está o perigo que secretamente apavora o stablishment: a
sublevação dos proles. Além de Lulla está
o nada, o vazio, o abismo, o impensável: a revolução.
À
revolução!
Daniel M.
Delfino
08/07/2007
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