3.11.15

Crise? Que crise?




A eclosão dos escândalos de corrupção do governo Lulla deu à mídia a oportunidade para colocar em cena o script de que “o Brasil está em crise”. Trata-se de mais uma rasteira mistificação, típica dos escrevinhadores de aluguel acostumados a pensar sob o ponto de vista de nossa rapace burguesia (anti)nacional. O Brasil sempre esteve em crise, visto que as condições de vida miseráveis das massas, das periferias das grandes cidades, dos desempregados e subempregados, dos sem-terra, sem-teto, sem-hospital, sem-escola, sem-cultura e sem nada, etc.; não podem ser consideradas nada menos do que críticas. Se não se quer discutir essa realidade, não se pode falar seriamente em crise.

No entanto, amiúde, fala-se em crise. A revelação de que o governo Lulla é corrupto é o componente principal de mais essa “crise” pré-fabricada. Nesse script do Brasil “em crise” a própria mídia ocupa o lugar de protagonista. De escândalo em escândalo, de mensalão para cuecão, de mala preta para Daslu, da desfaçatez dos depoimentos para o oportunismo dos comentários, assiste-se a uma novela escatológica em cadeia nacional na qual se dilui a política nos esgares da pornochanchada e se decompõe a ideologia nos números trôpegos do ibope. Aguardem novas emoções no próximo capítulo.

Para quem não é afeito ao mise-en-scéne folhetinesco, cabe perguntar quais são os contornos concretos dessa suposta “crise” de que tanto se fala. Quando se busca pelos fundamentos materiais da “crise”, percebe-se que ela é triplamente falsa. A primeira dimensão da falsidade é dada pelo uso indevido da palavra “crise”, pois, conforme assinalamos acima, a grande maioria dos brasileiros já vive em crise. Logo, a crise não é nenhuma novidade, é uma desagradável companhia cotidiana permanente para uma esmagadora maioria da população. No entanto, não é, evidentemente, no interesse dessa maioria que a mídia fala. O Brasil só entra em crise, do ponto de vista da mídia, quando os interesses a que ela serve se vêem minimamente ameaçados.

É o caráter dessa suposta ameaça que cumpre verificar. A segunda dimensão da tripla falsidade diz respeito ao uso deformado da palavra “crise” para designar as inquietações do mercado. A mídia, deslumbrada, querendo ser mais realista que o rei, enxerga uma crise em cada esquina. Fabricar crises é o “modus operandi” usado para reciclar sua própria utilidade social caudatária.

Mas por mais vil e profunda que seja a rendição da nossa mídia aos grandes poderes, materializada no hábito de raciocinar a partir de um ponto de vista de interesses de classe muito restritos; não se trata de uma simples aberração pessoal de toda uma geração de jornalistas ambiciosos, oportunistas e narcisistas, mas de determinações objetivas do processo de ajustamento ideológico do capitalismo em crise. Trata-se de exigências práticas ditadas pela necessidade de consolidar um novo e monstruoso consenso manipulado com vistas a prolongar artificialmente a sobre-vida deletéria do sistema.

O sociólogo mineiro Gilberto Felisberto Vasconcelos, um dos mais importantes e originais pensadores brasileiros em atividade, por meio de sua pregação mensal na revista “Caros Amigos”, quase fez deste escriba um seguidor. É de G. F. Vasconcelos a autoria do conceito de “capitalismo videofinanceiro”, que servirá de ponto de apoio para a tentativa empreendida neste momento de aprofundar a compreensão da conjuntura que atravessamos. O “capitalismo videofinanceiro” é o filho bastardo da nefasta união entre o capital especulativo e a indústria global das telecomunicações, os quais por sua vez são pilares da política neoliberal hegemônica pela qual o imperialismo tenta impor sua versão bárbara da “globalização”.

Da década de 1990 em diante as mídias em geral convergiram para o formato dos telejornais 24 horas da CNN e dos boletins “on-line” da internet. Nesse dilúvio fragmentário de “informações”, não há possibilidade de articulação, depuração, hierarquização de conceitos, com vistas à formação efetiva de conhecimento substantivo. O único eixo interpretativo universalmente inteligível é justamente o dos índices econômicos. A cotação do dólar e a variação da bolsa indicam o quão saudável está a economia de um país. Se o dólar está cotado a um preço “razoável” e as bolsas estão subindo, tudo vai bem. Do contrário, tudo está mal.

No caricatural maniqueísmo obsessivo do videopôquer financeiro dilui-se tanto a identidade cultural nacional como a soberania material do país sobre seus fluxos de riqueza. Mais do que matar a fome do povo, o que importa é manter os índices econômicos em níveis “aceitáveis” nas telas de TV. Nos Trinta Minutos de Amor do Jornal Nacional, 180 milhões de corações e mentes voltam-se para a teletela a fim de saber, angustiados, se o deus mercado ainda nos ama. Mas nem mesmo toda a capacidade teledramatúrgica da Globo, forjada em décadas de bem-sucedido aprendizado nas lides da alienação coletiva, pode produzir uma crise quando não há uma.

Para entender porque não estamos atravessando uma verdadeira crise, nesse segundo aspecto da tripla falsidade mencionada, convém recordar um caso histórico. Às vésperas das eleições de 2002, o Brasil viveu uma grave “crise econômica”. O dólar subiu às alturas, as bolsas de valores despencaram, os capitais especulativos debandaram, a inflação repicou perigosamente, os juros tiveram que ser elevados, etc. A justificativa para essa “crise” estava no medo da parte do mercado de que Lulla vencesse as eleições. Se Lulla vencesse, poderia ocorrer uma mudança na política econômica de FHC. Se a política econômica fosse modificada, apenas o mercado seria prejudicado, mas isso foi usado como argumento para que não se votasse em Lulla. O argumento então usado rezava que, caso Lulla mudasse a política econômica, o mercado deixaria de olhar favoravelmente para o Brasil e o país entraria em “crise”.

Em outras palavras, “o que é bom para o mercado é bom para o Brasil”. Ao invés de pensar nos seus próprios interesses, o eleitor brasileiro deveria pensar primeiro no que o mercado iria achar do candidato eleito. Ao invés de pensar no que o candidato estaria propondo para resolver os problemas do país, o eleitor deveria pensar no quanto a imagem do candidato seria agradável para o mercado. O que decide as eleições num país periférico não é o programa do candidato para o país, mas sua oferta para o mercado. A oferta de Lulla foi considerada razoável, de modo que o candidato da “oposição” teve anuência para vencer. Com a consciência pesada de tantos anos de rapina, o mercado estava preparado para deglutir o sapo barbudo e tolerar a festa da plebe, sempre esperançosa.

No entanto, a oferta do sapo ao mercado mostrou-se mais palatável do que se esperava. Em poucos meses a “crise” amainou e ensaiou-se inclusive o “espetáculo do crescimento”. Nem mesmo FHC foi tão servil ao mercado e ao imperialismo quanto Lulla. Por um irônico paradoxo, FHC não podia sê-lo porque em sua época havia o PT na oposição, dizendo ser “contra tudo isso que está aí”.

Voltemos, pois, ao momento presente, à “crise” de 2005. Como estão as cotações do dólar, da bolsa, dos juros, da inflação? Como vai o pulso do mercado hoje, 08/07/2005, no momento em que o presente texto é escrito? O que dizem os noticiários econômicos, vez por outra tão histéricos? Não é preciso ser especialista em índices financeiros para perceber que não há crise nenhuma. O mercado segue navegando de vento em popa no mar de águas calmas da economia brasileira, firme e imperturbável em seu curso sanguinário de extorsão do país.

Uma providencial blindagem de teflon impede que os respingos do mar de lama grudem nos guarda-livros Palocci e Meirelles. Esses dois cidadãos “acima de qualquer suspeita” seguram a chave do cofre, de onde sai o pagamento da dívida externa. Isso é tudo o que interessa. Que as camarilhas políticas tupiniquins massacrem umas às outras no deprimente espetáculo midiático de CPIs e troca de acusações mútuas, que todas essas acusações sejam ao final verdadeiras, que o país esteja sendo roubado por seus políticos, tudo isso é insignificante do ponto de vista do mercado. O mensalão não é rigorosamente nada comparado ao “superavitão” com que as virginais vestais da ekipekonômica cevam o mercado. Se o superavitão continua sendo religiosamente pago, não há crise. Ponto final.

Onde está a falha do script da crise? Por que o círculo não se completa? Porque não existe oposição. Os partidos em disputa com o PT, como PSDB e PFL, não representam mudança nenhuma, senão a continuidade da mesma política. São tão podres quanto o PT, mas isso é irrelevante para o mercado. Mesmo as CPIs, válvula por onde os aspectos excrementícios da política burguesa vêm à tona (diz a sabedoria tradicional sobre as CPIs que se sabe muito bem como elas começam, mas nunca se sabe como terminam), não tiram o sono de ninguém. A degenerescência pode atingir níveis de putrefação insuportáveis, sem que isso determine uma “crise” sistêmica, pois os grupos rivais representados pelas siglas PT/PL/PP/PTB/PMDB ou PSDB/PFL são corretamente vistos como intercambiáveis. São todos corruptos, mas isso não importa, porque são todos neoliberais.

A contradição programática que vitima o PT vitima também a oposição, no sentido inverso. Se o PT paga o preço por ser um partido como os outros (corrupto/neoliberal), assumindo o programa que criticava, a oposição paga o preço de não ter alternativa a oferecer, pois seu programa já foi usado e abusado.

Diz-se acima que a crise é triplamente falsa e expôs-se em seguida as duas dimensões da falsidade expressas no fato de que: 1o.) a única crise verdadeiramente relevante no país é a perpetuação da miséria; 2o.) os escândalos de corrupção que assolam o governo de turno não representam uma crise para o mercado, pois não existe uma oposição disposta a mudar o modelo de política econômica; agora torna-se necessário explicitar a terceira dimensão da falsidade da “crise”.

O script da crise derrapa não só porque o tipo de processo que a mídia prestativa em seguir o mercado se acostumou a chamar de “crise” não está em andamento; mas porque esse tipo de processo não é crise. As “crises” da era FHC não eram crises. Eram sobressaltos do mercado amplificados pela mídia subserviente para viabilizar a chantagem política e eleitoral contra o direito do povo brasileiro de decidir o que fazer com a riqueza produzida por seu trabalho. No momento, não há nenhum sobressalto nem é necessária nenhuma chantagem, pois não se vislumbra ainda no cenário nenhuma ameaça a essa ordem espúria. Se o modelo estivesse em xeque, veríamos uma verdadeira (e muito bem-vinda) crise, ao invés da ópera-bufa em cartaz.

Nossa mídia gosta de brincar de “crise”, mas tudo não passa de factóides políticos. A súbita avalanche de denúncias só se explica pela proximidade promíscua da mídia com os mesmos elementos a que denuncia. Como disse Roberto Jefferson no Roda Viva, “qual é a novidade? Até parece que vocês todos não sabiam disso...” Políticos e jornalistas usam uns aos outros em busca de fama, dinheiro e poder. Esse é o jogo. Essa é a crise. Aberto o flanco do governo, a mídia ataca o PT direto na jugular. A afoiteza e a agressividade desse ataque revelam, como em um ato falho, quem é o alvo do ódio dos escrevinhadores.

O mercado assimilou a vitória do PT, mas não a mídia. Os escrevinhadores se aproveitam ignominiosamente do naufrágio do PT para vergastar o projeto que o partido representava, revestindo seu inconfessável ódio senhorial às classes subalternas com a respeitável máscara de crítica à corrupção. Das páginas dos jornalões e das falas dos comentaristas desprendem-se odores fétidos, recendendo a um anticomunismo à la TFP. O mercado não dá um tostão por essa retórica démodé, pois não precisa dela para assegurar a fidelidade do PT de Lulla. O mercado não precisa da vigilância da mídia para ter o PT às suas ordens, porque pagou muito bem pela obediência do partido. Procure-se a lista dos contribuintes da campanha do PT (bingos, empreiteiras, bancos) e encontrar-se-ão os autores do programa de governo posto em prática. Quem paga o músico escolhe a melodia a ser tocada. Enquanto o PT dançar conforme a música, não será hostilizado pelo mercado.

Se o governo está em crise, trata-se de uma crise de iniciativa política, uma crise da imagem de Lulla e do projeto eleitoral do PT. Uma crise no nível da superestrutura, expressando o confronto entre as facções em disputa pela máquina do Estado. Já há, tanto no front tucano como no próprio estado-maior petista, quem aconselhe Lulla a desistir da reeleição em favor da candidatura salvadora de Palocci, em nome da necessidade de “manter a estabilidade”. Em outras palavras, tolera-se tudo, até uma crise política, desde que o modelo de política econômica não seja questionado. No apagar da luzes do governo Lulla ainda há holofotes disponíveis para os mais descabidos disparates. Delfim Neto, co-signatário do assassino AI 5 da ditadura, reaparece do reino das trevas do economês para propor nada menos do que o corte das despesas com saúde e educação para chegar à meta de “déficit nominal zero” em 2010; nova versão do “esperar o bolo crescer para depois dividir” de trinta anos atrás.

A crise é formal, não substancial. Como foi dito, o desafio aberto ao modelo em vigor ainda não colocou o sistema em xeque. Mas o tiroteio praticado a esmo pode descambar nessa direção. A campanha contra Lulla não é racional, nem coerente, porque é feita de acidentes fortuitos e oportunismo arrivista. Não foi pensada em função de um projeto, mas em nome da decomposição da idéia de projeto. Não é uma campanha unificada, do contrário seria preciso acreditar em uma conspiração orquestrada pela CIA (o imperialismo somente descarta seus fantoches quando eles se tornam inúteis ou embaraçosos). O risco derivado dessa falta de estratégia é de que sejam evidenciados os nexos entre ética (corrupta) e programa (neoliberal), de modo que “os políticos” sejam todos rejeitados em bloco pela população.

Não há como separar a identidade ética da identidade programática. A busca por “segurança” ofusca os políticos corruptos (FHC, Lulla) em favor dos tecnocratas robóticos (Palocci, Delfim), o que só contribui para acelerar a débâcle. Se alguém disser que esse processo se parece muito com aquele pelo qual o argentino De La Rúa convocou o odiado Cavallo, candidato do imperialismo derrotado nas eleições imediatamente anteriores, para ser seu superministro, com plenos poderes sobre a administração do país; este escriba lembrará que há não muito tempo se dizia que “a Argentina é o Brasil amanhã”, prontificando-se a ficar na primeira fila do panelaço que se avizinha.

Detalhes e provas foram levantados em torno do PT de Lulla numa abundância suficiente para levar ao impeachment qualquer governante. Se estivéssemos em qualquer outro governo, a palavra de ordem do “fora Lulla” já estaria nas ruas. Por que não se cogita fazer o impeachment de Lulla? Por que Lulla é tão necessário para a estabilidade do sistema? Por que a transição para o pós-PT parece tão nebulosa, inviável, arriscada?

Lulla é o último fiador do capitalismo videofinanceiro tupiniquim. Fora do lullismo não há salvação, tremem alhures. Por mais desgastado que esteja o cartaz do Grande Irmão, o Partido não pode prescindir de sua figura. Lulla ainda é indispensável na contenção das frustrações populares. Fazer o impeachment de Lulla exigiria colocar as massas nas ruas. No entanto, dado o estado de ânimo das massas na América Latina de hoje, quem se arrisca a brincar de aprendiz de feiticeiro? Uma vez posta em movimento a indignação popular represada, com o agravante das sucessivas traições, quem pode garantir o rumo que tomará o processo? Quem quer brincar de Argentina, Equador, Bolívia?

Aí sim está o perigo que secretamente apavora o stablishment: a sublevação dos proles. Além de Lulla está o nada, o vazio, o abismo, o impensável: a revolução.

À revolução!

Daniel M. Delfino

08/07/2007



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