A
descriminalização do uso de drogas deveria ser uma das
bandeiras centrais do movimento dos trabalhadores. Sem esse passo,
não será possível organizar a grande massa dos
trabalhadores mais explorados e precarizados que moram nas
periferias. Esse setor, que constitui a grande maioria da classe
trabalhadora, está aprisionado no fogo cruzado de uma guerra
sem fim entre o aparato repressivo do Estado e as organizações
criminosas. Sem o fim dessa guerra, os trabalhadores mais pobres não
conseguirão desenvolver organizações de luta
independentes. Não se pode esperar que desenvolvam tais
organizações por si mesmos, pois para isso teriam
justamente que entrar em confronto direto com a repressão e o
crime, um confronto que no momento não têm condições
sequer de iniciar. E não se pode esperar que uma aristocracia
operária em sua grande maioria acomodada ultrapasse a
burocracia sindical aburguesada que dirige as suas organizações
e faça a revolução, sem a participação
da grande maioria da classe trabalhadora.
O
setor mais ativo e mobilizado da classe, hoje bastante reduzido e
localizado em categorias intermediárias, deveria assumir a
bandeira da descriminalização das drogas como uma
tarefa estratégica, fundamental para abrir caminho para a
possibilidade de organização dos setores mais
precarizados, hoje bloqueado. Assumir essa bandeira exige entrar num
debate pesado contra as forças conservadoras cuja ideologia
prevalece na sociedade e que condenam o consumo de drogas com uma
abordagem moralista. Para enfrentar esse debate é preciso
discutir as questões sociais e humanas profundas envolvidas no
uso das drogas.
Uma
das formas como esse debate tem se manifestado é nas marchas
pela legalização da maconha. A marcha tem o aspecto
positivo de forçar a abertura do debate sobre as drogas. Mas
tem também uma grave limitação, que é o
de se restringir a debater uma única droga, a maconha. Desse
modo, corre-se o risco de que a bandeira da descriminalização
fique restrita a um setor da juventude, justamente alguns setores
médios e elitizados da juventude trabalhadora, e também
da pequeno burguesia, que têm acesso à universidade, à
cultura e a possibilidades (limitadas, mas ainda assim mais amplas
que as da maioria) de autoconhecimento, expressão e prazer.
Esses setores consomem maconha como uma forma mais inofensiva de
transgressão, da mesma forma que praticam o sexo antes do
casamento. Com isso, desfrutam do sabor de desafiar o Estado, a
Igreja e a família, etc., sem correr os riscos envolvidos no
uso de drogas mais pesadas, e ao mesmo tempo associando a esse hábito
uma espécie de “charme” libertário e contestatório.
Ao
se restringir a esse setor social e a esse conteúdo ideológico
de contestação inofensiva e descomprometida, a campanha
pela descriminalização da maconha adquire a aparência
de algo que está sendo advogado em causa própria. Esses
setores querem poder fumar seu “baseado” em paz sem serem
incomodados pela polícia. Se obtiverem esse direito sem uma
luta mais ampla, a guerra entre policiais e traficantes vai continuar
na periferia, como um obstáculo intransponível para a
organização da maioria da classe. O debate da
descriminalização não pode ficar restrito a esse
setor social que reivindica o consumo da maconha e a esse conteúdo
ideológico rebaixado, utilitário, interesseiro,
imediato e reformista. A luta pela descriminalização
deve ser estendida a todas as drogas e abordar o problema em toda a
sua complexidade. O movimento da descriminalização
precisa incorporar os seguintes aspectos:
-
drogas devem ser tratadas como um problema de saúde pública
e não de polícia. A proibição das drogas
não funciona. É impossível proibir que as
pessoas consumam drogas. Independentemente da proibição,
da criminalização, do estigma, da demonização
e dos problemas de saúde que esse hábito acarreta, as
drogas continuarão sendo consumidas. A proibição
é um fracasso mundial do ponto de vista da intenção
de reduzir o consumo. A redução de danos é a
única abordagem sensata para o consumo de drogas.
-
uma vez que as drogas continuarão sendo consumidas de qualquer
forma e a demanda não será extinta, a proibição
faz com que o tráfico seja um negócio arriscado, mas
altamente lucrativo. A alta margem de lucros faz com que valha à
pena para as organizações criminosas enfrentar o
aparato repressivo do Estado para chegar a esse lucro. Mas se vale à
pena para uma organização criminosa, vale para todas. E
todas se armam pesadamente para entrar na disputa por esse mercado. O
poder de fogo das organizações criminosas sobrepuja o
do aparato repressivo estatal. O monopólio da força
pelo Estado é uma ficção nas periferias de todas
as grandes e médias cidades (e não estamos defendendo
que o Estado burguês exerça esse monopólio de
fato, apenas registrando a sua incapacidade para tal). O poder de
fato é exercido pelo crime. As organizações do
tráfico controlam vastas porções do território
e da população do país. Essas organizações
não são um elemento estranho ou anômalo em
relação ao sistema capitalista. São parte
constituinte do sistema, como qualquer empresa, com a mesma ideologia
de competição e lucro a qualquer custo, arregimentando
e brutalizando jovens da periferia com a sedução do
poder e do dinheiro farto do tráfico.
-
o aparato repressivo do Estado está falido. A polícia
não tem uma banda podre, ela é uma instituição
podre. O Estado não tem controle sobre a polícia, que
exerce a força que lhe é concedida em busca de
interesses próprios (e claro, não defendemos que a
polícia seja 100% eficiente a serviço do Estado
burguês, apenas assinalamos que a própria burguesia não
controla a sua polícia). Setores da polícia se associam
ao negócio do tráfico de drogas, armas e outros crimes,
vivendo de extorsões, propinas, “arregos” e outras formas
de taxas cobradas das organizações criminosas. Na outra
ponta do aparato repressivo, o sistema prisional também está
falido, não é capaz de ressocializar ninguém,
está sob controle das mesmas facções criminosas
que mandam na periferia, e torna todos que ingressam no sistema
correcional piores quando saem do que quando entraram, mais
brutalizados e cruéis do que antes.
-
esse aparato repressivo é pateticamente ineficiente na sua
suposta função de combater o crime organizado. Mas a
sua função real é justamente manter a população
das periferias em estado de terror permanente. Sob o pretexto de
combater as drogas, a polícia diariamente mata, tortura,
agride, humilha, intimida milhões de jovens e trabalhadores.
Está em curso um genocídio da juventude negra nas
periferias. O pretexto para esse genocídio é o combate
às drogas. A sua função real é impedir a
organização e a luta dos trabalhadores mais pobres. A
descriminalização das drogas de imediato removeria o
principal pretexto que legitima a continuidade desse genocídio.
-
em escala global, a “guerra às drogas” é um
pretexto para as intervenções do imperialismo, em
especial o estadunidense, contra os países periféricos
do mundo inteiro. Um pretexto tão forjado quanto a “guerra
ao terror”. Essas guerras jamais vão impedir o tráfico
de drogas nem o terrorismo, cujas raízes estão em
problemas sociais causados pelo capitalismo. Mas vai servir ao
objetivo real de manter sob controle populações
periféricas que são as maiores vítimas das
injustiças do capitalismo e impedir que se revoltem.
-
não somente a polícia se corrompe com o tráfico,
mas também juízes, promotores, advogados, fiscais,
auditores, autoridades financeiras, etc., participam do rendoso
negócio do tráfico. As favelas não produzem
drogas nem armas, esses produtos chegam na periferia por meio de uma
ampla rede de contrabando, que corrompe todos os setores do Estado
encarregados da repressão e fiscalização. O
dinheiro das drogas também não fica na favela, ele é
apropriado pelos chefes do tráfico e seus sócios na
polícia e no Estado, que usam esse dinheiro em seus negócios
legais. Essa corrupção é impossível de
ser eliminada, ela é inerente ao sistema capitalista. O
dinheiro que circula no negócio das drogas utiliza os mesmos
canais usados para reciclar o dinheiro ilegal do conjunto da
burguesia. O Estado não pode fechar esses canais, pois isso
impediria que a burguesia, classe a quem serve o Estado, desfrutasse
de suas riquezas. O caso “Swissleaks” revelou mais de 100 mil
contas secretas no HSBC da Suíça, dentre as quais cerca
de 8 mil brasileiros, usadas para esconder dinheiro proveniente da
sonegação fiscal, corrupção e crime
organizado. Grandes empresários, políticos,
celebridades, lavam e escondem seu dinheiro nos mesmos bancos que os
chefes do crime organizado.
-
nem todo usuário de drogas é automaticamente um
dependente, assim como nem toda pessoa que toma sua cerveja com os
amigos depois do trabalho é automaticamente um alcóolatra.
O vício em drogas se sustenta no mesmo mecanismo que produz
viciados em sexo, em jogo, comedores compulsivos, etc. A dependência
química (ou psicológica) é um problema de saúde,
que deve ser tratado como tal. Ao se mudar a abordagem do problema da
dependência do proibicionismo para a redução de
danos, é razoável supor que o número de
dependentes aumentaria. Isso exigiria um aumento drástico no
gasto com o cuidado de dependentes. Defendemos o investimento pesado
em tratamento de dependentes, de maneira humanizada, com um número
suficiente de profissionais, devidamente qualificados e bem pagos.
-
na ponta do lápis, o custo com o tratamento de dependentes,
mesmo que aumente, seria ainda assim muito menor do que o custo do
atual aparato repressivo corrupto e ineficiente. E além do
custo financeiro, o custo humano da proibição das
drogas é muito maior. O número de vidas destruídas
pela “guerra às drogas” é incontável.
Trata-se de uma tragédia real, gigantesca, e que já
está em andamento diariamente, diante dos olhos de todos, e
que só pode ser contida por meio da descriminalização.
O aumento do número de dependentes também produziria
suas tragédias, mas, sem o desperdício com um aparato
repressivo corrupto e ineficiente, haveria recursos para minorar
essas futuras tragédias por meio do tratamento adequado.
-
o uso de substâncias que alteram o estado de consciência
é um hábito humano que vem desde a pré-história.
Drogas já foram usadas em rituais religiosos, pesquisas
médicas, criações artísticas. São
parte dos costumes milenares de muitos povos, sem que isso resulte em
nenhum tipo de “degeneração” ou esteja associado
automaticamente à violência, imoralidade, etc. O
critério que separou algumas drogas como lícitas
(álcool e tabaco) e outras como ilícitas (maconha,
cocaína, ópio) é altamente arbitrário do
ponto de vista da sua periculosidade. O álcool é
responsável pela maior parte dos casos de violência
doméstica e acidentes de trânsito. O cigarro provoca
câncer e outras doenças. Ambas as drogas causam mortes,
sofrimentos e prejuízo, mas mesmo assim são toleradas e
até glamourizadas. As drogas hoje ilícitas, por sua
vez, são tratadas como se o seu consumo fosse em si “imoral”.
As ações cometidas sob o efeito de drogas devem ter o
mesmo julgamento que aquelas cometidas sob efeito de álcool, e
não como se as sensações provocadas pelas drogas
fossem mais “malignas” que a embriaguez. Demonizar as drogas e
seus usuários é uma forma de regular e controlar o
prazer das pessoas, coisa que o Estado não deveria ter o poder
de fazer (com o agravante de que o Estado o faz sob a pressão
de instituições religiosas que subvertem o seu caráter
supostamente laico).
Dito
tudo isso, concluímos reivindicando a descriminalização
da maconha, e também das demais drogas, bem como a
desmilitarização da polícia, a reforma do
sistema prisional, o investimento massivo em saúde e
tratamento de dependentes químicos, o fim dos paraísos
fiscais e a repatriação do dinheiro remetido
ilegalmente para o exterior. Todas essas reivindicações
não perdem de vista a perspectiva de que os problemas sociais
que levam tanto ao consumo de drogas quanto à prática
do crime não podem ser resolvidos sem o fim do capitalismo, e
de que o Estado capitalista e suas instituições,
polícia, judiciário, etc., são irreformáveis
e jamais podem ser favoráveis aos trabalhadores. Todas as
concessões terão que ser obtidas por meio da
mobilização e da luta coletiva, organizada e
independente, numa perspectiva anticapitalista e socialista.
Finalmente,
reafirmamos que o uso de substâncias que alteram o Estado de
consciência, praticado como escolha do indivíduo e sem
causar danos aos demais, deve ser reconhecido como um direito.
Entretanto, afirmamos categoricamente que o motivo que leva milhões
de pessoas ao consumo de drogas e a outros vícios é a
falta de sentido e o vazio existencial do mundo capitalista, que não
tem nada a oferecer a não ser relações alienadas
e fetichizadas, desumanidade e barbárie. As relações
sociais somente darão margem para a realização
dos indivíduos, o desenvolvimento dos seus potenciais, a
liberdade ilimitada e a felicidade, quando estivermos livres do
trabalho como exploração e imposição. Ou
seja, depois de uma fase de transição socialista,
quando chegarmos ao comunismo.
Daniel
M. Delfino
Maio
2015
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