6.11.15

A marcha da maconha e a questão das drogas


A descriminalização do uso de drogas deveria ser uma das bandeiras centrais do movimento dos trabalhadores. Sem esse passo, não será possível organizar a grande massa dos trabalhadores mais explorados e precarizados que moram nas periferias. Esse setor, que constitui a grande maioria da classe trabalhadora, está aprisionado no fogo cruzado de uma guerra sem fim entre o aparato repressivo do Estado e as organizações criminosas. Sem o fim dessa guerra, os trabalhadores mais pobres não conseguirão desenvolver organizações de luta independentes. Não se pode esperar que desenvolvam tais organizações por si mesmos, pois para isso teriam justamente que entrar em confronto direto com a repressão e o crime, um confronto que no momento não têm condições sequer de iniciar. E não se pode esperar que uma aristocracia operária em sua grande maioria acomodada ultrapasse a burocracia sindical aburguesada que dirige as suas organizações e faça a revolução, sem a participação da grande maioria da classe trabalhadora.
O setor mais ativo e mobilizado da classe, hoje bastante reduzido e localizado em categorias intermediárias, deveria assumir a bandeira da descriminalização das drogas como uma tarefa estratégica, fundamental para abrir caminho para a possibilidade de organização dos setores mais precarizados, hoje bloqueado. Assumir essa bandeira exige entrar num debate pesado contra as forças conservadoras cuja ideologia prevalece na sociedade e que condenam o consumo de drogas com uma abordagem moralista. Para enfrentar esse debate é preciso discutir as questões sociais e humanas profundas envolvidas no uso das drogas.
Uma das formas como esse debate tem se manifestado é nas marchas pela legalização da maconha. A marcha tem o aspecto positivo de forçar a abertura do debate sobre as drogas. Mas tem também uma grave limitação, que é o de se restringir a debater uma única droga, a maconha. Desse modo, corre-se o risco de que a bandeira da descriminalização fique restrita a um setor da juventude, justamente alguns setores médios e elitizados da juventude trabalhadora, e também da pequeno burguesia, que têm acesso à universidade, à cultura e a possibilidades (limitadas, mas ainda assim mais amplas que as da maioria) de autoconhecimento, expressão e prazer. Esses setores consomem maconha como uma forma mais inofensiva de transgressão, da mesma forma que praticam o sexo antes do casamento. Com isso, desfrutam do sabor de desafiar o Estado, a Igreja e a família, etc., sem correr os riscos envolvidos no uso de drogas mais pesadas, e ao mesmo tempo associando a esse hábito uma espécie de “charme” libertário e contestatório.
Ao se restringir a esse setor social e a esse conteúdo ideológico de contestação inofensiva e descomprometida, a campanha pela descriminalização da maconha adquire a aparência de algo que está sendo advogado em causa própria. Esses setores querem poder fumar seu “baseado” em paz sem serem incomodados pela polícia. Se obtiverem esse direito sem uma luta mais ampla, a guerra entre policiais e traficantes vai continuar na periferia, como um obstáculo intransponível para a organização da maioria da classe. O debate da descriminalização não pode ficar restrito a esse setor social que reivindica o consumo da maconha e a esse conteúdo ideológico rebaixado, utilitário, interesseiro, imediato e reformista. A luta pela descriminalização deve ser estendida a todas as drogas e abordar o problema em toda a sua complexidade. O movimento da descriminalização precisa incorporar os seguintes aspectos:
- drogas devem ser tratadas como um problema de saúde pública e não de polícia. A proibição das drogas não funciona. É impossível proibir que as pessoas consumam drogas. Independentemente da proibição, da criminalização, do estigma, da demonização e dos problemas de saúde que esse hábito acarreta, as drogas continuarão sendo consumidas. A proibição é um fracasso mundial do ponto de vista da intenção de reduzir o consumo. A redução de danos é a única abordagem sensata para o consumo de drogas.
- uma vez que as drogas continuarão sendo consumidas de qualquer forma e a demanda não será extinta, a proibição faz com que o tráfico seja um negócio arriscado, mas altamente lucrativo. A alta margem de lucros faz com que valha à pena para as organizações criminosas enfrentar o aparato repressivo do Estado para chegar a esse lucro. Mas se vale à pena para uma organização criminosa, vale para todas. E todas se armam pesadamente para entrar na disputa por esse mercado. O poder de fogo das organizações criminosas sobrepuja o do aparato repressivo estatal. O monopólio da força pelo Estado é uma ficção nas periferias de todas as grandes e médias cidades (e não estamos defendendo que o Estado burguês exerça esse monopólio de fato, apenas registrando a sua incapacidade para tal). O poder de fato é exercido pelo crime. As organizações do tráfico controlam vastas porções do território e da população do país. Essas organizações não são um elemento estranho ou anômalo em relação ao sistema capitalista. São parte constituinte do sistema, como qualquer empresa, com a mesma ideologia de competição e lucro a qualquer custo, arregimentando e brutalizando jovens da periferia com a sedução do poder e do dinheiro farto do tráfico.
- o aparato repressivo do Estado está falido. A polícia não tem uma banda podre, ela é uma instituição podre. O Estado não tem controle sobre a polícia, que exerce a força que lhe é concedida em busca de interesses próprios (e claro, não defendemos que a polícia seja 100% eficiente a serviço do Estado burguês, apenas assinalamos que a própria burguesia não controla a sua polícia). Setores da polícia se associam ao negócio do tráfico de drogas, armas e outros crimes, vivendo de extorsões, propinas, “arregos” e outras formas de taxas cobradas das organizações criminosas. Na outra ponta do aparato repressivo, o sistema prisional também está falido, não é capaz de ressocializar ninguém, está sob controle das mesmas facções criminosas que mandam na periferia, e torna todos que ingressam no sistema correcional piores quando saem do que quando entraram, mais brutalizados e cruéis do que antes.
- esse aparato repressivo é pateticamente ineficiente na sua suposta função de combater o crime organizado. Mas a sua função real é justamente manter a população das periferias em estado de terror permanente. Sob o pretexto de combater as drogas, a polícia diariamente mata, tortura, agride, humilha, intimida milhões de jovens e trabalhadores. Está em curso um genocídio da juventude negra nas periferias. O pretexto para esse genocídio é o combate às drogas. A sua função real é impedir a organização e a luta dos trabalhadores mais pobres. A descriminalização das drogas de imediato removeria o principal pretexto que legitima a continuidade desse genocídio.
- em escala global, a “guerra às drogas” é um pretexto para as intervenções do imperialismo, em especial o estadunidense, contra os países periféricos do mundo inteiro. Um pretexto tão forjado quanto a “guerra ao terror”. Essas guerras jamais vão impedir o tráfico de drogas nem o terrorismo, cujas raízes estão em problemas sociais causados pelo capitalismo. Mas vai servir ao objetivo real de manter sob controle populações periféricas que são as maiores vítimas das injustiças do capitalismo e impedir que se revoltem.
- não somente a polícia se corrompe com o tráfico, mas também juízes, promotores, advogados, fiscais, auditores, autoridades financeiras, etc., participam do rendoso negócio do tráfico. As favelas não produzem drogas nem armas, esses produtos chegam na periferia por meio de uma ampla rede de contrabando, que corrompe todos os setores do Estado encarregados da repressão e fiscalização. O dinheiro das drogas também não fica na favela, ele é apropriado pelos chefes do tráfico e seus sócios na polícia e no Estado, que usam esse dinheiro em seus negócios legais. Essa corrupção é impossível de ser eliminada, ela é inerente ao sistema capitalista. O dinheiro que circula no negócio das drogas utiliza os mesmos canais usados para reciclar o dinheiro ilegal do conjunto da burguesia. O Estado não pode fechar esses canais, pois isso impediria que a burguesia, classe a quem serve o Estado, desfrutasse de suas riquezas. O caso “Swissleaks” revelou mais de 100 mil contas secretas no HSBC da Suíça, dentre as quais cerca de 8 mil brasileiros, usadas para esconder dinheiro proveniente da sonegação fiscal, corrupção e crime organizado. Grandes empresários, políticos, celebridades, lavam e escondem seu dinheiro nos mesmos bancos que os chefes do crime organizado.
- nem todo usuário de drogas é automaticamente um dependente, assim como nem toda pessoa que toma sua cerveja com os amigos depois do trabalho é automaticamente um alcóolatra. O vício em drogas se sustenta no mesmo mecanismo que produz viciados em sexo, em jogo, comedores compulsivos, etc. A dependência química (ou psicológica) é um problema de saúde, que deve ser tratado como tal. Ao se mudar a abordagem do problema da dependência do proibicionismo para a redução de danos, é razoável supor que o número de dependentes aumentaria. Isso exigiria um aumento drástico no gasto com o cuidado de dependentes. Defendemos o investimento pesado em tratamento de dependentes, de maneira humanizada, com um número suficiente de profissionais, devidamente qualificados e bem pagos.
- na ponta do lápis, o custo com o tratamento de dependentes, mesmo que aumente, seria ainda assim muito menor do que o custo do atual aparato repressivo corrupto e ineficiente. E além do custo financeiro, o custo humano da proibição das drogas é muito maior. O número de vidas destruídas pela “guerra às drogas” é incontável. Trata-se de uma tragédia real, gigantesca, e que já está em andamento diariamente, diante dos olhos de todos, e que só pode ser contida por meio da descriminalização. O aumento do número de dependentes também produziria suas tragédias, mas, sem o desperdício com um aparato repressivo corrupto e ineficiente, haveria recursos para minorar essas futuras tragédias por meio do tratamento adequado.
- o uso de substâncias que alteram o estado de consciência é um hábito humano que vem desde a pré-história. Drogas já foram usadas em rituais religiosos, pesquisas médicas, criações artísticas. São parte dos costumes milenares de muitos povos, sem que isso resulte em nenhum tipo de “degeneração” ou esteja associado automaticamente à violência, imoralidade, etc. O critério que separou algumas drogas como lícitas (álcool e tabaco) e outras como ilícitas (maconha, cocaína, ópio) é altamente arbitrário do ponto de vista da sua periculosidade. O álcool é responsável pela maior parte dos casos de violência doméstica e acidentes de trânsito. O cigarro provoca câncer e outras doenças. Ambas as drogas causam mortes, sofrimentos e prejuízo, mas mesmo assim são toleradas e até glamourizadas. As drogas hoje ilícitas, por sua vez, são tratadas como se o seu consumo fosse em si “imoral”. As ações cometidas sob o efeito de drogas devem ter o mesmo julgamento que aquelas cometidas sob efeito de álcool, e não como se as sensações provocadas pelas drogas fossem mais “malignas” que a embriaguez. Demonizar as drogas e seus usuários é uma forma de regular e controlar o prazer das pessoas, coisa que o Estado não deveria ter o poder de fazer (com o agravante de que o Estado o faz sob a pressão de instituições religiosas que subvertem o seu caráter supostamente laico).
Dito tudo isso, concluímos reivindicando a descriminalização da maconha, e também das demais drogas, bem como a desmilitarização da polícia, a reforma do sistema prisional, o investimento massivo em saúde e tratamento de dependentes químicos, o fim dos paraísos fiscais e a repatriação do dinheiro remetido ilegalmente para o exterior. Todas essas reivindicações não perdem de vista a perspectiva de que os problemas sociais que levam tanto ao consumo de drogas quanto à prática do crime não podem ser resolvidos sem o fim do capitalismo, e de que o Estado capitalista e suas instituições, polícia, judiciário, etc., são irreformáveis e jamais podem ser favoráveis aos trabalhadores. Todas as concessões terão que ser obtidas por meio da mobilização e da luta coletiva, organizada e independente, numa perspectiva anticapitalista e socialista.
Finalmente, reafirmamos que o uso de substâncias que alteram o Estado de consciência, praticado como escolha do indivíduo e sem causar danos aos demais, deve ser reconhecido como um direito. Entretanto, afirmamos categoricamente que o motivo que leva milhões de pessoas ao consumo de drogas e a outros vícios é a falta de sentido e o vazio existencial do mundo capitalista, que não tem nada a oferecer a não ser relações alienadas e fetichizadas, desumanidade e barbárie. As relações sociais somente darão margem para a realização dos indivíduos, o desenvolvimento dos seus potenciais, a liberdade ilimitada e a felicidade, quando estivermos livres do trabalho como exploração e imposição. Ou seja, depois de uma fase de transição socialista, quando chegarmos ao comunismo.

Daniel M. Delfino
Maio 2015


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