Desde
fins de 2013, um fantasma assombra os shopping centers, o fantasma
dos rolezinhos. Além de mais um episódio de
discriminação contra os negros e pobres, esse fenômeno
expõe várias nuances da estrutura ideológica da
sociedade brasileira.
Negros
e pobres “fora do seu lugar”
A cada
fim de semana, em várias cidades do país (depois da
onda inicial em São Paulo), milhares de jovens moradores da
periferia, na maioria negros, a partir de convocações
publicadas em redes sociais da internet, se reúnem em grande
número para “zoar”, ou seja, brincar, correr, gritar,
namorar, dançar e ouvir funk de ostentação. O
público frequentador “normal” dos shopping centers
protesta indignado contra a “invasão” dos visitantes
“indesejados” e exige providências. A mídia chama os
rolezinhos de “arrastões”, reproduzindo automaticamente o
estereótipo de que todo jovem pobre e negro é
criminoso. O debate se espalha pelas redes sociais entre defensores e
detratores dos rolezinhos.
A
resposta inicial dos shoppings foi a repressão, ou seja,
chamar a polícia para disparar balas de borracha, bombas de
gás, bater e prender os “rolezeiros” pelo crime de... Qual
crime mesmo? Pelo crime de estarem lá, no “lugar errado”,
onde não deveriam estar. Outros shoppings tentaram adotar o
método de triagem do público na entrada, exigindo
documentos. Ou, para evitar confusão, simplesmente fecham as
portas, como o Shopping Rio Design, no bairro do Leblon, reduto da
alta classe média carioca, que não abriu no domingo
19/01. Ou ainda, conseguem liminares na justiça proibindo a
realização dos rolezinhos. E assim por diante.
Essa
primeira onda de rolezinhos e a resposta dos centros comerciais, das
autoridades e da mídia a seu serviço serviu para expor
de maneira escancarada a estrutura segregacionista da sociedade
brasileira. Os jovens negros e pobres foram perseguidos pelo simples
“crime” de estarem “fora do seu lugar”, ou seja, fora da
favela, fora da sua condição de pobres, excluídos
e conformados. Como se atrevem a querer desfrutar do que os “ricos”
desfrutam e se expressar na sua própria linguagem? O shopping
não é o lugar deles, é dos brancos e da classe
média (que não precisam apresentar documentos nem
passar por triagem para entrar). Os jovens brancos podem marcar
encontros dentro e fora dos shoppings, como “raves” e “flash
mobs”, mas quando os jovens negros e pobres o fazem, são
criminosos. Isso confirma mais uma vez o quanto a classe média,
a polícia e a mídia sao racistas e preconceituosos
contra os pobres. O fenômeno expõe o quanto essa
democracia é uma farsa, que não permite que se
ultrapasse até fisicamente o limite que separa exploradores e
explorados. Querer impedir pela força os jovens negros e
pobres de fazer seus rolezinhos é uma violência
inaceitável, esse é o primeiro ponto a ser
estabelecido.
A
promessa de felicidade pelo consumo
Houve
muitas vozes a defender o direito dos shoppings de barrar a entrada
dos rolezeiros, já que os estabelecimentos comerciais são
propriedades privadas. A coisa se complica na hora de estabelecer os
critérios para definir quem vai ser barrado, já que os
shoppings teriam que assumir o racismo contra os negros e o
preconceito contra os pobres. A complicação é
tamanha que o assunto dos rolezinhos foi parar na pauta da presidente
Dilma. O governo do PT, escaldado pelas manifestações
de junho de 2013, quer evitar que uma nova explosão social
exponha a insatisfação com seu governo, em ano de Copa
do Mundo e eleições gerais.
Existe
um setor particularmente insatisfeito com o fenômeno, a assim
chamada “nova classe média” produzida nos mais de 10 anos
de governo do PT, que não aceita os rolezinhos. Não é
apenas a alta burguesia do bairro de Higienópolis (que não
queria uma estação de metrô na região
porque ela traria “gente diferenciada”, ou seja, pobre, para a
vizinhança) que repudia os rolezinhos, é a própria
classe trabalhadora que obteve acesso ao consumo via crédito
fácil e se imagina socialmente superior, que não quer
os pobres no “seu” shopping center.
Essa
classe trabalhadora constitui a chamada “nova classe média”
e não tolera os rolezinhos porque eles desmentem a ilusão
da prosperidade a que ela própria imaginava ter chegado. Essa
“nova classe média” embalada pela ideologia meritocrática
e pela teologia da prosperidade das igrejas neopentecostais acredita
que chegou ao “sucesso” pelos seus próprios esforços,
por isso somente ela tem o “direito legítimo” de desfrutar
dos shopping centers. Por isso, ela não pode aceitar que os
“vagabundos” que não se esforçaram nem trabalharam
duro “estraguem” os seus shoppings.
O mais
grave é que tanto essa classe trabalhadora quanto os jovens
rolezeiros que estão socialmente abaixo dela na hierarquia
capitalista tenham como ideal de vida e de realização a
ida aos shoppings e o consumo de mercadorias. O culto da mercadoria
funciona como sublimação da pulsão sexual,
fornecendo o eixo organizador da vida, mesmo que só pela via
da contemplação dos objetos, sem o ato efetivo da
compra. Trabalhadores pobres e jovens ainda mais pobres disputam
acirradamente pelo miserável prazer de contemplar as
mercadorias nas catedrais do consumo do “próspero” país
de Lula e Dilma.
O
medo de uma nova onda de manifestações
Nesse
sentido, os rolezinhos não são um movimento de
contestação da ordem capitalista, mas trazem no fundo
da sua ideologia de culto do consumo uma reafirmação
dessa mesma sociedade. É por isso que ideólogos mais
refinados da burguesia, como a revista Veja, na sua edição
de 2357, de 22/01 trataram de retificar a abordagem inicial dos
rolezinhos. Veja adotou como prioridade negar que os rolezinhos sejam
um movimento político, tratando-os como uma simples expressão
do desejo dos jovens da periferia de participar da festa do consumo.
Afinal, o que mais alguém pode querer? Existe outro objetivo
possível na vida além de consumir? Quanto mais
consumistas e alienados os jovens da periferia, melhor para a Veja e
a burguesia. Trata-se de uma abordagem preventiva para evitar que os
movimentos sociais se associem aos jovens da periferia e transformem
os rolezinhos numa nova onda de manifestações.
De certa
forma, a revista tem razão, pois como dissemos, os jovens
rolezeiros de fato querem apenas participar da festa do consumo. Não
encaram o seu “movimento” como um gesto político, nem como
continuação das jornadas de junho. Definitivamente, os
rolezeiros não estavam nas manifestações. Mas,
ao mesmo tempo, a Veja não tem razão. Pois se não
fossem as jornadas de junho de 2013, não teríamos
rolezinhos na virada do ano. Os jovens da periferia foram sim
influenciados pelos jovens trabalhadores e de classe média que
foram para as ruas protestar a partir de junho de 2013. As jornadas
de junho foram protagonizadas por jovens que já trabalham e
estudam, uma faixa etária e uma condição social
ligeiramente diferentes dos rolezeiros, ainda que uma boa parte more
nos mesmos bairros. Mas os rolezeiros são os “irmãos
mais novos” dos manifestantes e aprenderam com os exemplos dos mais
velhos. Querem desafiar e desobedecer as proibições.
Ainda
que não tenham consciência disso e que sua intenção
explícita seja festejar o consumo de mercadorias, os
rolezeiros estão sintonizados com os manifestantes, no sentido
de que ambos protestam pelo direito de participar. Numa sociedade
profundamente autoritária e antidemocrática, o direito
de zoar no shopping center se transforma num gesto contestatório.
Os rolezeiros querem consumir, mas a porta do consumo está
fechada para eles. As promessas do capitalismo brasileiro sob gestão
petista não poderão ser cumpridas. Não haverá
lugar para todos na “festa do consumo”. Cedo ou tarde, esses
jovens se darão conta de que, assim como para seus irmãos
mais velhos, tudo o que essa sociedade tem a oferecer são
subempregos, precarizados, mal pagos, faculdades privadas sem
qualidade, endividamento, serviços públicos que não
funcionam, etc.
A
crise de alternativa socialista e as perspectivas para os jovens
O
conteúdo dos rolezinhos (culto das mercadorias) é
reacionário, mas a sua forma (movimento de massa
autoorganizado) é libertária. Está em aberto a
luta para determinar o que prevalece, o conteúdo ou a forma.
Veja e outros veículos da imprensa burguesa já jogaram
as suas cartas, procurando amenizar o tom, assimilar os rolezinhos,
torná-los aceitáveis, fazer de conta que não
houve uma repressão brutal de caráter racista e
preconceituoso, tudo isso para isolar os movimentos sociais
organizados e evitar que estes também abracem os rolezinhos. A
esquerda organizada, por sua vez, foi surpreendida e ultrapassada
pelas jornadas de junho de 2013, e está até hoje
tentando entender e acompanhar a nova disposição de
luta da juventude trabalhadora. Em relação à
juventude do rolezinhos, o abismo que separa os movimentos sociais é
ainda maior. Como as organizações de esquerda nunca
tiveram e ainda não têm nada a dizer a esses jovens,
eles ouvem o que a burguesia tem a dizer: ser rico é bom, e
querem realizar isso. Querem ser ricos ou no mínimo, parecer
ricos.
Os
ídolos dos rolezeiros não são os militantes de
esquerda, são os MCs do funk. A nova onda desse gênero
de música é o chamado “funk de ostentação”,
em que as letras celebram a posse de objetos de luxo, como carros
esportivos, roupas de marca e mulheres (sim, as mulheres são
aqui reduzidas a objetos sexuais). O sexo explícito e a
apologia do crime característicos do estilo funk “proibidão”
ficam em segundo plano, mas ainda estão lá. O funk de
ostentação não está em contradição
com o proibidão, já que para ostentar os objetos de
luxo, o crime também é uma das vias possíveis. O
estilo ostentação é mais uma espécie de
continuação do proibidão, que já foi
celebrado como “funk do bem”, por ser menos explícito na
apologia do crime. A sua estética é copiada do gangsta
rap estadunidense, gênero que explodiu comercialmente na década
de 1990 e sucedeu o hip hop combativo e politizado da década
de 1980. O funk de ostentação brasileiro é uma
espécie de “gangsta pop”.
O
tratamento das mulheres como objetos nas letras do funk não é
uma questão secundária. O machismo e o sexismo das
letras e das danças expressam a barbárie social que
grassa nas periferias. Esse estilo musical surge nos mesmos bairros
em que imperam a violência física e psicológica
contra a mulher, os estupros, os abortos clandestinos com mortes e
graves sequelas, a gravidez das adolescentes, a sexualização
precoce das crianças, etc. Além do culto do consumo, a
ideologia do funk ostentação celebra também a
redução da mulher a objeto de consumo, razão
pela qual é preciso ser muito crítico em relação
a esse fenômeno.
Mas a
crítica não pode ser a mesma dos centros comerciais, da
polícia, judiciário, setores da mídia e da
opinião da própria classe média, que querem
negar aos rolezeiros o direito elementar de ir e vir, em flagrante
contradição com as leis da democracia burguesa. A
crítica deve entender e apontar uma alternativa para o
fenômeno contextualizando-o na totalidade em que está
inserido. Não cabe à esquerda censurar os jovens
rolezeiros por terem criminosos e funkeiros como referência, já
que ela própria não soube se apresentar como
referência. Uma juventude que não teve apoio nenhum do
Estado, não recebeu educação de qualidade, nem
cultura nem lazer, só poderia ter como referência o
funk.
É
a hora de mostrar a esses jovens que existe outra via de realização,
a via da luta. É a hora de construir um amplo movimento de
apoio ao direito democrático de ir e vir e de se manifestar
dos jovens. Esse movimento deve ter como ponto de partida denunciar o
racismo da repressão e da mídia, o caráter
farsesco da democracia burguesa que não é capaz de
conceder o direito de ir e vir, as ilusões da prosperidade
brasileira e porque a festa não será para todos. A
partir desse caminho, é possível abrir um canal de
diálogo com essa juventude, para tentar recuperar algum
terreno numa batalha ideológica que a burguesia está
vencendo por larga margem. Seria utópico hoje dizer aos
rolezeiros que o shopping não tem graça, o legal mesmo
é fazer um rolezinho nas livrarias, nos museus, nos teatros.
Mas é
justamente isso que se diz hoje do socialismo, que é
“utópico”. Quando a juventude perceber que o prazer
intelectual é muito superior ao prazer superficial da
contemplação das mercadorias, a burguesia estará
em apuros e o capitalismo estará com os dias contados.
Daniel M. Delfino
Janeiro
2014
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