7.11.15

Era uma vez o futebol brasileiro - Reflexões sobre o futebol na era da sua mercantilização - parte 2


Há pouco mais de 13 anos, quando o Brasil ganhou a Copa do Mundo de 2002, escrevemos um rápido texto explicando essa vitória, em termos sociais, econômicos e políticos, com o título justamente de “Por que o Brasil ganhou a Copa do Mundo?” (ver http://politicapqp.blogspot.com.br/2007/04/porque-o-brasil-ganhou-copa-copa-de_17.html) Agora, transcorrido 1 ano da derrota histórica da seleção brasileira na Copa de 2014 (e tendo a seleção brasileira já se tornado também adicionalmente “freguesa” do Paraguai, com uma segunda eliminação consecutiva na Copa América perdendo para o selecionado guarani), cabe resgatar aquele texto de anos atrás e partir do que ele expõe, para em seguida explicar porque os motivos que levaram o Brasil a ganhar sua última Copa já não se aplicam mais. O texto de 2002 é muito curto e vale à pena transcrevê-lo na íntegra:
“A copa de 2002 foi um produto típico da globalização. A globalização significou de certo modo uma brasilianização do mundo. Não é apenas o Brasil que se globaliza, mas o mundo que se brasilianiza. Todo processo histórico-social é uma via de mão dupla, ou contradição dialética, como diziam os antigos.
O Brasil é o país da desigualdade, da corrupção e do jeitinho. A desigualdade, a corrupção e a malandragem (ou desfaçatez) se tornaram as marcas do mundo globalizado. O planeta como um todo tornou-se uma versão ampliada do Brasil: ilhas de riqueza cercadas por bolsões de miséria. Os dirigentes e as instituições internacionais agora são vistos como corruptos irrecuperáveis e especuladores insaciáveis, atuando com o beneplácito da mídia global deslumbrada.
Dentre estas instituições, a que mais se brasilianizou foi a FIFA, resultado de uma gestão de 24 anos nas mãos do brasileiro João Havelange. Como qualquer político brasileiro, coronelista e corrupto, Havelange distribuiu benesses e favores aos aliados para ser reeleito continuamente, comprando os votos das federações, prática disseminada alhures...
O resultado disso foi uma Copa do Mundo inflada, com 32 participantes, e dividida em dois países. Uma Copa do Mundo realizada na Ásia inevitavelmente se defrontaria com o problema das monções, a estação das chuvas, que coincide com os meses tradicionalmente reservados para a disputa do Mundial. Como é impossível adiar as monções, a alternativa é mudar a data da Copa. Pois é preciso globalizar o futebol a qualquer custo, levando a disputa para a Ásia e agradando os caciques locais.
A Copa do Mundo foi antecipada em quinze dias. Com isso, ficou muito próxima do fim da temporada européia. O intervalo entre o fim das principais ligas nacionais européias e da Copa dos Campeões e o início da Copa do Mundo ficou muito pequeno, insuficiente para que os jogadores pudessem se recuperar fisicamente do desgaste. Jogadores como Figo e Zidane chegaram à Copa “bichados”. Em cada seleção do Mundial havia pelo menos um jogador “estourado”, que foi para a disputa cercado de dúvidas sobre suas reais condições físicas. Inclusive no Brasil, como era o caso de Ronaldo e Rivaldo.
Nestas condições, entretanto, o Brasil jogou em casa. Nossos jogadores tem o know-how da improvisação, aprendido na pátria-mãe. Aqui os times são montados às pressas, os jogadores se entrosam no decorrer do campeonato, os esquemas são improvisados, a preparação é “meia-boca”, os técnicos são chamados no meio da competição como salvadores da pátria (caso de Felipão na Seleção). O “empurrar com a barriga” faz parte do caráter do povo brasileiro, não só no futebol. É a receita da sobrevivência num país de soluções provisórias e carências perpétuas. Nosso futebol espelha a precariedade de nossa civilização. O que é o drible senão a habilidade de quem muito apanha de escapar da pancada?
Ora, uma Copa tão desorganizada quanto os campeonatos brasileiros (vide o problema da venda de ingressos) só poderia ser ganha pela seleção brasileira. O estilo brasileiro passou a predominar também fora de campo, o que é extremamente negativo. Ao invés de nos melhorarmos, pioramos os outros! Mas como os jogadores e técnicos brasileiros estão acostumados com esse estilo de seus dirigentes, saíram com vantagem na disputa! Times que fizeram tudo certo em sua preparação, como Argentina e França, fracassaram miseravelmente; o Brasil, que fez tudo errado, ganhou!”
Se em 2002 o “know-how da improvisação” e o método de “empurrar com a barriga” foram suficientes para vencer times que “fizeram tudo certo em sua preparação”, em 2014 isso não mais aconteceu. O procedimento de “empurrar com a barriga” e de convocar um “salvador da pátria” de última hora (caracteristicamente, apelou-se para o mesmo Felipão de 2002) resultou em um desastre completo. Uma das hipóteses para esse fracasso poderia ser uma mudança nas determinações sociais, econômicas e políticas mencionadas no texto de 2002. Façamos então uma rápida passagem pelo que aconteceu no cenário da dita “globalização” desde aquele momento.
No ano daquela Copa, o mundo acabava de começar a sair da crise econômica que teve como estopim a queda das ações das empresas de tecnologia da NASDAQ, as famosas empresas “ponto com”, sintoma de uma crise estrutural mais profunda do capitalismo, que momentaneamente se contornava mais uma vez. Estava começando um novo ciclo de crescimento alavancado por um conjunto de países do segundo escalão da divisão mundial do trabalho, como Brasil, Rússia, Índia e especialmente China, que está lutando para passar ao primeiro escalão. Esse ciclo foi impulsionado pela intensificação do comércio internacional, com América Latina, Oriente Médio (e Rússia) fornecendo matérias primas, minérios, grãos e petróleo, a China fazendo a montagem e exportando mercadorias, e Estados Unidos, Europa e Japão consumindo tais mercadorias e exportando capital e tecnologia de volta para a China.
No auge desse ciclo, o Brasil viveu a ilusão de prosperidade da era Lula, quando milhões de pessoas aparentemente saíram da miséria através de bolsas e outros milhões adquiriram a “cidadania do crédito”, o consumo através de endividamento, sem aumento real da renda. Esse ciclo de crescimento, no entanto, se esgotou na crise mundial de 2008. Num primeiro momento, aquela nova crise pareceu atingir apenas os países centrais e deixar quase ilesos os gigantes periféricos. Entretanto, nos anos seguintes os países centrais viveram uma quase recuperação, e no momento atual, em 2015, os gigantes periféricos é que ameaçam precipitar o próximo episódio cíclico da crise. A queda das ações na China pode ser um primeiro sintoma disso.
Voltando aos países centrais, a pseudo recuperação aconteceu em especial nos Estados Unidos, às custas da destruição das condições de vida da sua classe trabalhadora (os recentes casos de violência policial contra os negros, o setor mais pobre da classe, são um exemplo extremo desse processo) e na Alemanha, às custas do arrocho sobre a periferia europeia, como estamos presenciando na Grécia. Conforme a crise estrutural se aprofunda e as crises cíclicas se repetem, vai se produzindo um realinhamento das relações entre os países, com o reforço do poder dos países mais fortes e um enfraquecimento ainda maior dos mais fracos. Para contornar suas crises, o sistema capitalista privilegia a sobrevivência dos setores mais poderosos e concentrados do capital, e sacrifica os mais fracos. Estados Unidos e Alemanha estão no bloco dos mais fortes. O Brasil, no dos mais fracos.

Voltemos então ao campo do futebol para identificar como esta esfera foi afetada pelos fenômenos acima. De acordo com o que analisamos mais detidamente na parte 1 dessas reflexões, na comparação com o cenário do futebol de 2002, prossegue o mesmo fenômeno de agigantamento das competições de clubes europeus em detrimento das seleções nacionais, que só fez se aprofundar. Também apontamos a ocorrência de um desenraizamento do futebol, a perda de sua relação direta com a classe operária, a elitização do público dos estádios, o êxodo dos melhores jogadores, a colonização dos torcedores por clubes europeus, etc. Todas essas tendências já tinham sido embrionariamente detectadas em 2002, mas só pudemos tratar delas agora, na parte 1 destas reflexões, de forma mais desdobrada.
Essas tendências de transformação no futebol afetam de maneira diferenciada os vários países, de acordo com a sua posição relativa na divisão internacional do trabalho capitalista. Os Estados Unidos não são uma potência no futebol. A Alemanha é. A Alemanha foi também o país vencido pelo Brasil na final da Copa de 2002. Os alemães tiraram lições daquela derrota e buscaram agir a respeito. Desde a derrota para o Brasil (uma derrota perfeitamente normal, diga-se de passagem, sem nenhum grau de humilhação e tragédia), houve um esforço para repensar o futebol alemão. Com a tradicional eficiência germânica, a federação alemã lançou um programa de multiplicação de escolinhas de futebol, com uma nova orientação em relação ao modo de jogar. O resultado foi colhido agora, com uma geração de jovens jogadores talentosos, como Mario Götze, Marco Reus, Thomas Muller, e outros. Todos jogadores com talento, habilidade, capacidade de driblar e improvisar, jogo de cintura. Características novas e diferentes do antigo estilo alemão, baseado na força física e disciplina tática, de estilo mecânico, burocrático, “quadrado”.
Enquanto isso, no Brasil, o que aconteceu com o futebol local? Praticamente nada de novo em relação à organização. A fórmula de disputa do campeonato brasileiro mudou em 2003 para o modelo de pontos corridos, mas o calendário permaneceu desconectado do calendário europeu, os campeonatos estaduais continuaram inflados e deficitários, etc. Enquanto outras federações davam atenção à renovação do seu futebol, a CBF permaneceu “deitada eternamente em berço esplêndido”, fazendo comércio com os jogos da seleção, enquanto o futebol nacional seguiu definhando nas mãos de emissoras de TV, de dirigentes medíocres e sem visão nos clubes, e de empresários de jogadores. Algumas vitórias da seleção em Copa América e Copa das Confederações maquiavam o desempenho medíocre nas Copas do Mundo de 2006 e 2010. A ilusão de prosperidade dos governos do PT permitiu inclusive que alguns clubes brasileiros tivessem acesso ao mercado secundário de contratações, concorrendo com clubes e ligas europeias de 2º escalão e repatriando jogadores, como fez o Corinthians com Ronaldo em fins de 2008.
Mas o essencial da discussão é que o “modelo” histórico do futebol brasileiro, em que o talento e o “know how” da improvisação buscavam compensar as falhas de organização, estava ficando defasado em relação ao futebol altamente organizado e profissionalizado da Europa. A Copa de 2002 foi uma espécie de canto do cisne, o último alento desse “modelo” de futebol que vai aos trancos e barrancos, no improviso, empurrando com a barriga. Seria necessário uma revolução no futebol brasileiro para que tivesse condições de se manter competitivo internacionalmente. Essa revolução não ocorreu nos anos que se seguiram à vitória de 2002. Como era de se esperar, aquela vitória reforçou ainda mais a negligência em relação às tarefas necessárias para uma reorganização de grande porte e a complacência com os defeitos, tornando praticamente impossível a reformulação necessária.
Nem mesmo o vexame da Copa de 2014 provocou ainda uma tal revolução. Depois de 2014, seguimos com o mesmo modelo de gestão, que é o do amadorismo, do improviso, das mudanças que não mudam nada, que resultaram na campanha medíocre na Copa América de 2015. Prova de que os problemas vão muito além do fato de Felipão estar ultrapassado e Neymar não ter jogado contra a Alemanha na tarde trágica do Mineirão. Os problemas são mais profundos e requerem uma análise social.
Antes de empreender essa análise, cabe mencionar o único fato positivo em relação à Copa de 2014, que é o de ter acontecido num momento de politização e questionamento na sociedade brasileira, como em décadas não se via. As jornadas de junho de 2013 (pano de fundo da Copa das Confederações) trouxeram à tona um amplo descontentamento, em praticamente todas as classes sociais, com a falsa prosperidade da era do PT (e evidentemente, nos interessa organizar o descontentamento da classe trabalhadora). No antigo país do futebol, houve protestos contra a Copa do Mundo, abafados por meio de pesada repressão policial e de uma grosseira armação judicial e midiática para por a culpa da morte de um cinegrafista nos manifestantes.
Mesmo que os protestos não tenham sido suficientes para impedir a Copa, e mesmo que no período da Copa tenha havido um interesse razoável pelos jogos, uma parcela imensa da população simplesmente não estava preocupada com o futebol, nem com a seleção. O desinteresse pelo futebol (e até mesmo a hostilidade e ele) alcançou proporções inéditas no país pentacampeão do mundo. Tanto assim que o impacto da monumental derrota futebolística (a maior derrota da história da seleção, maior derrota da história de uma seleção campeã do mundo numa Copa*, maior goleada em uma semifinal de Copa**, maior derrota de um país anfitrião, etc.) não teve nem de longe o impacto que tiveram as derrotas de 1950, nem mesmo a de 1982, por exemplo.

Mencionamos a Copa de 1982 porque se trata de uma referência inescapável ao se falar de uma derrota futebolística muito sentida. A seleção brasileira de 1982 derrotada pela Itália é uma das melhores seleções da história que não ganharam a Copa, juntamente com a Hungria de 1954 e a Holanda de 1974 (ambas vencidas na final pela Alemanha). Tratava-se de uma das maiores gerações da história do futebol brasileiro, com jogadores que eram ídolos nos seus clubes (Zico, Leandro e Júnior do Flamengo, Sócrates do Corinthians, Falcão do Internacional, Cerezo e Eder do Atlético) e com um técnico que era um dos últimos defensores do bom futebol, o excepcional Telê Santana.
A derrota daquela seleção foi muito mais sofrida pelo torcedor brasileiro (e naquela época, quando se viviam os anos finais da ditadura e de renovação das esperanças no futuro do país, isso incluía praticamente todo o povo brasileiro) do que a tragédia do Mineirão em 2014. Essa afirmação está sendo sustentada por uma testemunha ocular dos fatos, em que pese ser um autor que tinha 6 anos de idade na época daquela Copa, a primeira que pôde acompanhar pela TV e em condições de entender o que estava acontecendo, e de se encantar com o futebol “de outra galáxia” (na definição de Enzo Bearzot, técnico da Itália campeã) daquela seleção. Deve se dar o devido desconto por se tratar de alguém para quem as lembranças daquela Copa estão indissociavelmente ligadas às lembranças das primeiras férias escolares, da vizinhança pela primeira vez pintada inteira de verde e amarelo, da primeira vez em que se ouvia um colossal foguetório a cada gol do Brasil, da primeira festa junina na cidade grande, quando ainda se fazia a festa na rua de casa e se soltavam balões em abundância (terríveis, mas naquele contexto sublimes aos olhos de uma criança).
Mesmo com esse desconto devido à memória afetiva do autor, mantemos a afirmação, mas a qualificamos. A derrota de 1982 foi mais sentida que a de 2014 não só porque a seleção de 1982 era muito melhor, mas porque em 1982 o futebol importava muito mais. Era muito mais presente e significativo na vida das pessoas, muito mais uma expressão do estado de espírito coletivo, das esperanças e sonhos daquela dada época. E o que precisamos explicar aqui é porque o futebol brasileiro, antes tão belo e vitorioso, se tornou medíocre. Pois o que levou o futebol a perder a importância que tinha antes foi justamente o fato de ter perdido a qualidade mágica de antes e ter se tornado medíocre.
A mudança fundamental por trás de todos esses processos é a que aconteceu no modo de vida das crianças e adolescentes no Brasil nas últimas três décadas. Em 1982 as crianças (em maior número os meninos) não faziam outra coisa além de “jogar bola”, no intervalo das aulas, no pátio da escola, no corredor da escola, na sala de aula, entre as cadeiras, chutando e driblando com qualquer coisa que aparecesse pela frente, desde tampinha de garrafa e bolinha de papel até bolas de verdade, e depois na rua, na calçada, no quintal das casas, nos terrenos baldios, nas praças, nas quadras, campinhos de várzea, etc., jogando um contra um, ou em duplas, em trios, em qualquer formação imaginável, uma partida após a outra, um time depois do outro, em jogos intermináveis, até 3 gols, até 10, etc. (e aqui não se trata de mais uma memória afetiva de um inveterado craque das peladas infantis, mas de alguém que não jogava bola, porque era gordo e vivia enfurnado nos livros).
Em 2015 as crianças e adolescentes estão trancados nas suas casas e apartamentos, não saem na rua, não socializam, não criam relações, não brincam nem brigam, apenas jogam videogame, navegam no “facebook”, conversam no “whatsapp”. Não há mais terrenos baldios, não há mais campinhos de várzea, não há mais a interminável “febre de bola”, as intermináveis peladas de rua (assim como não há mais carrinhos de rolimã, bolinhas de gude, esconde-esconde, etc.). Os jogadores de futebol de hoje são formados em escolinhas, onde aprendem tudo, esquema tático, posicionamento, etc., menos “jogar bola” de verdade, como sempre foi o estilo brasileiro.
Sempre tratamos a formação de jogadores de futebol como algo aleatório, como se fosse um fenômeno da natureza. O surgimento de novos craques, novos Rivaldos, Romários, fenômenos, gaúchos e Neymares era tratado como algo que iria acontecer naturalmente. “O Brasil sempre revela novos jogadores”. A falsa imagem que se tinha é do mesmo tipo da que se tem da Amazônia, uma imensidão sem fim de florestas e rios, que não vai acabar jamais, por mais que se derrubem as árvores. Da mesma forma, sempre se imaginou que iriam continuar surgindo gerações e gerações de novos jogadores, como no passado tivemos a geração de 1958, depois a de 1970, depois a de 1982. E com elas o Brasil sempre poderia continuar formando novas seleções, que estariam recheadas de novos craques, que manteriam o país como mais vitorioso.
Mas assim como a Amazônia, o fenômeno do surgimento de novos grandes jogadores está acabando. Não são recursos infinitos, indefinidamente renováveis. 2014 é a prova de que o futebol brasileiro perdeu essa capacidade inesgotável de formar jogadores em condições de competir com os melhores do mundo. Se até 2002 ainda era possível contar com o improviso e mesmo assim vencer, agora já não mais. Agora seria preciso um trabalho organizado, sistemático, planejado, científico, para aproveitar os talentos que ainda surgem. Não houve e não há tal trabalho, nem da parte dos clubes, nem da parte da CBF. O Brasil se rebaixou ao mesmo nível de qualquer outro país em que se gosta de futebol, com o agravante da desorganização, corrupção, autoritarismo e incompetência dos dirigentes brasileiros, que são características da burguesia brasileira em geral. Isso explica os 7 x 1.

A derrota de 2014 não será apagada facilmente e o prestígio construído em mais de um século pelo talento de muitas gerações de craques não será reconquistado com bravatas de Galvão Bueno. Diante da mudança no modo de vida da infância e da adolescência, o número de jovens que jogam futebol diminuiu enormemente. Aquela “febre de bola” da qual quem cresceu nos anos 1980 ainda se lembra tão vivamente arrefeceu. Não é que o número de crianças e adolescentes jogando bola baixou a zero, mas baixou brutalmente. Da quantidade nasce a qualidade, nos ensina a dialética. Sem a mesma abundância de crianças e adolescentes jogando bola, não surge mais a antiga abundância de craques.
A atitude necessária diante desse fenômeno, repetimos, deveria ser um trabalho organizado para aproveitar os bons jogadores que ainda surgem. Em havendo esse trabalho, o Brasil conseguiria ainda se manter no mesmo nível das demais potências, Alemanha, Argentina, Itália, etc., mas já sem o mesmo brilhantismo e a superioridade de antigamente. Mesmo assim, não daria vexame. Agora, estamos condenados a um rebaixamento, uma queda que não se sabe até onde pode ir. Enquanto uma atividade econômica, os dirigentes do futebol brasileiro finalmente conseguiram matar a galinha dos ovos de ouro. Aquilo que ninguém imaginava possível, transformar aquele manancial inesgotável de grandes jogadores em uma terra devastada, foi conseguido pelos nossos presidentes de clubes e da CBF. É uma proeza histórica.
Tudo começa nos clubes. Os grandes clubes brasileiros se tornaram reféns dos esquemas de empresários de jogadores. São os empresários que conseguem vagas para que os jovens, ainda adolescentes, entrem nas categorias de base, desde que os pais paguem as taxas e firmem contratos garantindo comissões a esses empresários quando da venda do jogador para o exterior. Os clubes não têm mais autonomia nas suas categorias de base para formar seus jogadores. Cada clube deveria instalar dezenas de escolinhas nas periferias, com o caráter de projeto social, vinculado à frequência escolar, etc., para garimpar novos talentos. O investimento num projeto como esse seria facilmente coberto com a venda dos novos Neymares que surgissem. Os jogadores teriam vínculo com o clube e não com empresários que intermedeiam e viciam as relações.
Mas mesmo os grandes clubes no Brasil são mal administrados, aprisionados em dívidas, incapazes de um planejamento estratégico, submetidos ao monopólio de uma grande emissora de TV que define os calendários e horários de jogos. Não têm a capacidade de desenvolver projetos como esses. Os clubes pequenos e de cidades menores estão definhando com um calendário em que os estaduais duram apenas 3 meses no início do ano, e as divisões nacionais inferiores são deficitárias. Para reverter esse cenário seria preciso uma reforma geral na estrutura e calendário do futebol brasileiro, que exigiria:
- adequação do campeonato brasileiro ao calendário europeu, com um turno de setembro a dezembro e outro de janeiro a maio. A vantagem dessa adequação é que os grandes clubes poderiam planejar a sua temporada, sabendo com qual elenco de jogadores podem contar, formando times de verdade, no sentido coletivo, entrosando jogadores (hoje temos amontoados de jogadores que se desfazem e refazem ao longo da temporada). Hoje os clubes começam o ano com um elenco, que se desfaz na metade do campeonato brasileiro devido à janela de transferências da intertemporada europeia, e terminam o ano com outro elenco. Quem é bem sucedido no início do ano, nos estaduais e na Libertadores, acaba sendo “punido” com o desmanche do time e a venda dos melhores jogadores para a Europa. Com a adequação do calendário, repetimos, teríamos times mais estáveis ao longo da temporada, melhorando a qualidade dos jogos.
- com o campeonato brasileiro sendo disputado entre setembro e maio, os jogos poderiam ser de domingo a domingo. E com isso, no meio de semana seriam jogadas outras competições, como os estaduais, Libertadores, Copa do Brasil. Como acontece também na Europa, em que as copas nacionais e europeias são jogadas em meio de semana. A vantagem desse formato é que os estaduais poderiam ser jogados ao longo do ano inteiro, mantendo em atividade os clubes pequenos ao longo de toda a temporada. Hoje os clubes pequenos nos estados menores deixam seus jogadores desempregados por seis meses, já que não há competições quando acabam os estaduais.
- os estaduais seriam classificatórios para a Copa do Brasil da temporada seguinte. Com os clubes grandes priorizando o campeonato brasileiro, a Libertadores ou a própria Copa do Brasil, eles acabariam jogando os estaduais com times mistos, aumentando as chances dos clubes pequenos vencerem os grandes (como acontece nas copas nacionais na Europa), aumentando o interesse e rentabilidade dos estaduais, mantendo a viabilidade financeira dos clubes pequenos.
- num país com a dimensão continental do Brasil, não é viável para os clubes pequenos jogar uma 3ª ou 4ª divisão nacional com viagens do Rio Grande do Sul ao Amapá ou da Paraíba ao Acre, por exemplo. Por isso, para os clubes que não estão na 1ª ou 2ª divisão do campeonato brasileiro, os estaduais e as primeiras rodadas da Copa do Brasil serviriam também como uma espécie de seletiva ou repescagem para a 2ª divisão, como uma forma suplementar de aumentar o interesse dos estaduais. E aumentaria a competitividade da 2ª divisão, já que o risco seria de rebaixamento para a repescagem/estaduais.
- a repartição das cotas de transmissão do campeonato brasileiro deveria ser mais igualitária, com um valor fixo para todos os clubes participantes da 1ª divisão e um porcentual variável a ser distribuído conforme a classificação final na tabela (e o mesmo critério para a 2ª divisão, a repescagem intermediária, Copa do Brasil, estaduais, etc.).
- para participar das competições nacionais os clubes deveriam ser obrigados a cumprir critérios de transparência financeira e gestão, com limites para endividamento (sob pena de rebaixamento) e outros, inclusive, por exemplo, a obrigatoriedade de investimento em categorias de base, etc.
- também deveria ser critério para participação nas competições nacionais mudanças estatutárias nos clubes que abrissem para os sócios torcedores (com critérios de adimplência) o direito de voto nas instâncias administrativas dos clubes, podendo escolher uma parte dos representantes que elegem o presidente, formar o conselho fiscal, etc.
Mudanças como essas dependeriam de uma intensa mobilização dos setores críticos da imprensa esportiva, das associações de torcedores, do Bom Senso FC. Somos céticos em relação à capacidade das torcidas organizadas servirem como agentes progressivos nesse processo necessário de reorganização. Afinal, a maior delas estabelece relações promíscuas com dirigentes, servindo como massa de manobra nas disputas políticas internas, favorecendo ora um dirigente ora outro, em troca de vantagens na compra de ingressos, etc. Por isso apostamos numa pressão consciente de torcedores “desorganizados”.
Essa “revolução” de base nos clubes e competições nacionais é uma pré-condição para que se possa reformular também a própria CBF e a seleção brasileira. Para acabar com os vexames e retomar a tradição daquele futebol, que como disse o grande Hobsbawm, não poderia ser comparado a nada menos que uma forma de arte.

*A mesma Alemanha já foi goleada pela Inglaterra por 12 x 0, mas num amistoso em 19XX, portanto ainda muito antes da era das Copas do Mundo. Em 1954, essa mesma Alemanha foi goleada por 8 x 3 pela Hungria, mas no momento desse jogo ainda não era uma seleção campeã, o que só conseguiria nessa mesma Copa, ao jogar de novo com a mesma Hungria na final, e vencer por 3 x 2.

**Em 1950, a Copa do Mundo disputada no Brasil teve um formato único, que não se repetiu em nenhuma outra Copa, sem semifinal nem final. Houve um quadrangular final, com as 4 seleções finalistas jogando todas entre si para definir o campeão. Nesse quadrangular, o Brasil venceu a Suécia por 7 a 1 e a Espanha 6 x 1, mas perdeu para o Uruguai por 2 x 1 no último jogo, que não era exatamente a final da Copa. Os 7 x 1 da Alemanha são portanto a maior goleada numa semifinal desde que a competição tem o atual formato.

Daniel M. Delfino
Junho 2015


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