Há
pouco mais de 13 anos, quando o Brasil ganhou a Copa do Mundo de
2002, escrevemos um rápido texto explicando essa vitória,
em termos sociais, econômicos e políticos, com o título
justamente de “Por que o Brasil ganhou a Copa do Mundo?” (ver
http://politicapqp.blogspot.com.br/2007/04/porque-o-brasil-ganhou-copa-copa-de_17.html)
Agora, transcorrido 1 ano da derrota histórica da seleção
brasileira na Copa de 2014 (e tendo a seleção
brasileira já se tornado também adicionalmente
“freguesa” do Paraguai, com uma segunda eliminação
consecutiva na Copa América perdendo para o selecionado
guarani), cabe resgatar aquele texto de anos atrás e partir do
que ele expõe, para em seguida explicar porque os motivos que
levaram o Brasil a ganhar sua última Copa já não
se aplicam mais. O texto de 2002 é muito curto e vale à
pena transcrevê-lo na íntegra:
“A
copa de 2002 foi um produto típico da globalização.
A globalização significou de certo modo uma
brasilianização do mundo. Não é apenas o
Brasil que se globaliza, mas o mundo que se brasilianiza. Todo
processo histórico-social é uma via de mão
dupla, ou contradição dialética, como diziam os
antigos.
O Brasil
é o país da desigualdade, da corrupção e
do jeitinho. A desigualdade, a corrupção e a
malandragem (ou desfaçatez) se tornaram as marcas do mundo
globalizado. O planeta como um todo tornou-se uma versão
ampliada do Brasil: ilhas de riqueza cercadas por bolsões de
miséria. Os dirigentes e as instituições
internacionais agora são vistos como corruptos irrecuperáveis
e especuladores insaciáveis, atuando com o beneplácito
da mídia global deslumbrada.
Dentre
estas instituições, a que mais se brasilianizou foi a
FIFA, resultado de uma gestão de 24 anos nas mãos do
brasileiro João Havelange. Como qualquer político
brasileiro, coronelista e corrupto, Havelange distribuiu benesses e
favores aos aliados para ser reeleito continuamente, comprando os
votos das federações, prática disseminada
alhures...
O
resultado disso foi uma Copa do Mundo inflada, com 32 participantes,
e dividida em dois países. Uma Copa do Mundo realizada na Ásia
inevitavelmente se defrontaria com o problema das monções,
a estação das chuvas, que coincide com os meses
tradicionalmente reservados para a disputa do Mundial. Como é
impossível adiar as monções, a alternativa é
mudar a data da Copa. Pois é preciso globalizar o futebol a
qualquer custo, levando a disputa para a Ásia e agradando os
caciques locais.
A Copa
do Mundo foi antecipada em quinze dias. Com isso, ficou muito próxima
do fim da temporada européia. O intervalo entre o fim das
principais ligas nacionais européias e da Copa dos Campeões
e o início da Copa do Mundo ficou muito pequeno, insuficiente
para que os jogadores pudessem se recuperar fisicamente do desgaste.
Jogadores como Figo e Zidane chegaram à Copa “bichados”.
Em cada seleção do Mundial havia pelo menos um jogador
“estourado”, que foi para a disputa cercado de dúvidas
sobre suas reais condições físicas. Inclusive no
Brasil, como era o caso de Ronaldo e Rivaldo.
Nestas
condições, entretanto, o Brasil jogou em casa. Nossos
jogadores tem o know-how da improvisação, aprendido na
pátria-mãe. Aqui os times são montados às
pressas, os jogadores se entrosam no decorrer do campeonato, os
esquemas são improvisados, a preparação é
“meia-boca”, os técnicos são chamados no meio da
competição como salvadores da pátria (caso de
Felipão na Seleção). O “empurrar com a
barriga” faz parte do caráter do povo brasileiro, não
só no futebol. É a receita da sobrevivência num
país de soluções provisórias e carências
perpétuas. Nosso futebol espelha a precariedade de nossa
civilização. O que é o drible senão a
habilidade de quem muito apanha de escapar da pancada?
Ora, uma
Copa tão desorganizada quanto os campeonatos brasileiros (vide
o problema da venda de ingressos) só poderia ser ganha pela
seleção brasileira. O estilo brasileiro passou a
predominar também fora de campo, o que é extremamente
negativo. Ao invés de nos melhorarmos, pioramos os outros! Mas
como os jogadores e técnicos brasileiros estão
acostumados com esse estilo de seus dirigentes, saíram com
vantagem na disputa! Times que fizeram tudo certo em sua preparação,
como Argentina e França, fracassaram miseravelmente; o Brasil,
que fez tudo errado, ganhou!”
Se em
2002 o “know-how da improvisação” e o método
de “empurrar com a barriga” foram suficientes para vencer times
que “fizeram tudo certo em sua preparação”, em 2014
isso não mais aconteceu. O procedimento de “empurrar com a
barriga” e de convocar um “salvador da pátria” de última
hora (caracteristicamente, apelou-se para o mesmo Felipão de
2002) resultou em um desastre completo. Uma das hipóteses para
esse fracasso poderia ser uma mudança nas determinações
sociais, econômicas e políticas mencionadas no texto de
2002. Façamos então uma rápida passagem pelo que
aconteceu no cenário da dita “globalização”
desde aquele momento.
No ano
daquela Copa, o mundo acabava de começar a sair da crise
econômica que teve como estopim a queda das ações
das empresas de tecnologia da NASDAQ, as famosas empresas “ponto
com”, sintoma de uma crise estrutural mais profunda do capitalismo,
que momentaneamente se contornava mais uma vez. Estava começando
um novo ciclo de crescimento alavancado por um conjunto de países
do segundo escalão da divisão mundial do trabalho, como
Brasil, Rússia, Índia e especialmente China, que está
lutando para passar ao primeiro escalão. Esse ciclo foi
impulsionado pela intensificação do comércio
internacional, com América Latina, Oriente Médio (e
Rússia) fornecendo matérias primas, minérios,
grãos e petróleo, a China fazendo a montagem e
exportando mercadorias, e Estados Unidos, Europa e Japão
consumindo tais mercadorias e exportando capital e tecnologia de
volta para a China.
No auge
desse ciclo, o Brasil viveu a ilusão de prosperidade da era
Lula, quando milhões de pessoas aparentemente saíram da
miséria através de bolsas e outros milhões
adquiriram a “cidadania do crédito”, o consumo através
de endividamento, sem aumento real da renda. Esse ciclo de
crescimento, no entanto, se esgotou na crise mundial de 2008. Num
primeiro momento, aquela nova crise pareceu atingir apenas os países
centrais e deixar quase ilesos os gigantes periféricos.
Entretanto, nos anos seguintes os países centrais viveram uma
quase recuperação, e no momento atual, em 2015, os
gigantes periféricos é que ameaçam precipitar o
próximo episódio cíclico da crise. A queda das
ações na China pode ser um primeiro sintoma disso.
Voltando
aos países centrais, a pseudo recuperação
aconteceu em especial nos Estados Unidos, às custas da
destruição das condições de vida da sua
classe trabalhadora (os recentes casos de violência policial
contra os negros, o setor mais pobre da classe, são um exemplo
extremo desse processo) e na Alemanha, às custas do arrocho
sobre a periferia europeia, como estamos presenciando na Grécia.
Conforme a crise estrutural se aprofunda e as crises cíclicas
se repetem, vai se produzindo um realinhamento das relações
entre os países, com o reforço do poder dos países
mais fortes e um enfraquecimento ainda maior dos mais fracos. Para
contornar suas crises, o sistema capitalista privilegia a
sobrevivência dos setores mais poderosos e concentrados do
capital, e sacrifica os mais fracos. Estados Unidos e Alemanha estão
no bloco dos mais fortes. O Brasil, no dos mais fracos.
Voltemos
então ao campo do futebol para identificar como esta esfera
foi afetada pelos fenômenos acima. De acordo com o que
analisamos mais detidamente na parte 1 dessas reflexões, na
comparação com o cenário do futebol de 2002,
prossegue o mesmo fenômeno de agigantamento das competições
de clubes europeus em detrimento das seleções
nacionais, que só fez se aprofundar. Também apontamos
a ocorrência de um desenraizamento do futebol, a perda de sua
relação direta com a classe operária, a
elitização do público dos estádios, o
êxodo dos melhores jogadores, a colonização dos
torcedores por clubes europeus, etc. Todas essas tendências já
tinham sido embrionariamente detectadas em 2002, mas só
pudemos tratar delas agora, na parte 1 destas reflexões, de
forma mais desdobrada.
Essas
tendências de transformação no futebol afetam de
maneira diferenciada os vários países, de acordo com a
sua posição relativa na divisão internacional do
trabalho capitalista. Os Estados Unidos não são uma
potência no futebol. A Alemanha é. A Alemanha foi também
o país vencido pelo Brasil na final da Copa de 2002. Os
alemães tiraram lições daquela derrota e
buscaram agir a respeito. Desde a derrota para o Brasil (uma derrota
perfeitamente normal, diga-se de passagem, sem nenhum grau de
humilhação e tragédia), houve um esforço
para repensar o futebol alemão. Com a tradicional eficiência
germânica, a federação alemã lançou
um programa de multiplicação de escolinhas de futebol,
com uma nova orientação em relação ao
modo de jogar. O resultado foi colhido agora, com uma geração
de jovens jogadores talentosos, como Mario Götze, Marco Reus,
Thomas Muller, e outros. Todos jogadores com talento, habilidade,
capacidade de driblar e improvisar, jogo de cintura. Características
novas e diferentes do antigo estilo alemão, baseado na força
física e disciplina tática, de estilo mecânico,
burocrático, “quadrado”.
Enquanto
isso, no Brasil, o que aconteceu com o futebol local? Praticamente
nada de novo em relação à organização.
A fórmula de disputa do campeonato brasileiro mudou em 2003
para o modelo de pontos corridos, mas o calendário permaneceu
desconectado do calendário europeu, os campeonatos estaduais
continuaram inflados e deficitários, etc. Enquanto outras
federações davam atenção à
renovação do seu futebol, a CBF permaneceu “deitada
eternamente em berço esplêndido”, fazendo comércio
com os jogos da seleção, enquanto o futebol nacional
seguiu definhando nas mãos de emissoras de TV, de dirigentes
medíocres e sem visão nos clubes, e de empresários
de jogadores. Algumas vitórias da seleção em
Copa América e Copa das Confederações maquiavam
o desempenho medíocre nas Copas do Mundo de 2006 e 2010. A
ilusão de prosperidade dos governos do PT permitiu inclusive
que alguns clubes brasileiros tivessem acesso ao mercado secundário
de contratações, concorrendo com clubes e ligas
europeias de 2º escalão e repatriando jogadores, como fez
o Corinthians com Ronaldo em fins de 2008.
Mas o
essencial da discussão é que o “modelo” histórico
do futebol brasileiro, em que o talento e o “know how” da
improvisação buscavam compensar as falhas de
organização, estava ficando defasado em relação
ao futebol altamente organizado e profissionalizado da Europa. A Copa
de 2002 foi uma espécie de canto do cisne, o último
alento desse “modelo” de futebol que vai aos trancos e barrancos,
no improviso, empurrando com a barriga. Seria necessário uma
revolução no futebol brasileiro para que tivesse
condições de se manter competitivo internacionalmente.
Essa revolução não ocorreu nos anos que se
seguiram à vitória de 2002. Como era de se esperar,
aquela vitória reforçou ainda mais a negligência
em relação às tarefas necessárias para
uma reorganização de grande porte e a complacência
com os defeitos, tornando praticamente impossível a
reformulação necessária.
Nem
mesmo o vexame da Copa de 2014 provocou ainda uma tal revolução.
Depois de 2014, seguimos com o mesmo modelo de gestão, que é
o do amadorismo, do improviso, das mudanças que não
mudam nada, que resultaram na campanha medíocre na Copa
América de 2015. Prova de que os problemas vão muito
além do fato de Felipão estar ultrapassado e Neymar não
ter jogado contra a Alemanha na tarde trágica do Mineirão.
Os problemas são mais profundos e requerem uma análise
social.
Antes de
empreender essa análise, cabe mencionar o único fato
positivo em relação à Copa de 2014, que é
o de ter acontecido num momento de politização e
questionamento na sociedade brasileira, como em décadas não
se via. As jornadas de junho de 2013 (pano de fundo da Copa das
Confederações) trouxeram à tona um amplo
descontentamento, em praticamente todas as classes sociais, com a
falsa prosperidade da era do PT (e evidentemente, nos interessa
organizar o descontentamento da classe trabalhadora). No antigo país
do futebol, houve protestos contra a Copa do Mundo, abafados por meio
de pesada repressão policial e de uma grosseira armação
judicial e midiática para por a culpa da morte de um
cinegrafista nos manifestantes.
Mesmo
que os protestos não tenham sido suficientes para impedir a
Copa, e mesmo que no período da Copa tenha havido um interesse
razoável pelos jogos, uma parcela imensa da população
simplesmente não estava preocupada com o futebol, nem com a
seleção. O desinteresse pelo futebol (e até
mesmo a hostilidade e ele) alcançou proporções
inéditas no país pentacampeão do mundo. Tanto
assim que o impacto da monumental derrota futebolística (a
maior derrota da história da seleção, maior
derrota da história de uma seleção campeã
do mundo numa Copa*, maior goleada em uma semifinal de Copa**, maior
derrota de um país anfitrião, etc.) não teve nem
de longe o impacto que tiveram as derrotas de 1950, nem mesmo a de
1982, por exemplo.
Mencionamos
a Copa de 1982 porque se trata de uma referência inescapável
ao se falar de uma derrota futebolística muito sentida. A
seleção brasileira de 1982 derrotada pela Itália
é uma das melhores seleções da história
que não ganharam a Copa, juntamente com a Hungria de 1954 e a
Holanda de 1974 (ambas vencidas na final pela Alemanha). Tratava-se
de uma das maiores gerações da história do
futebol brasileiro, com jogadores que eram ídolos nos seus
clubes (Zico, Leandro e Júnior do Flamengo, Sócrates do
Corinthians, Falcão do Internacional, Cerezo e Eder do
Atlético) e com um técnico que era um dos últimos
defensores do bom futebol, o excepcional Telê Santana.
A derrota
daquela seleção foi muito mais sofrida pelo torcedor
brasileiro (e naquela época, quando se viviam os anos finais
da ditadura e de renovação das esperanças no
futuro do país, isso incluía praticamente todo o povo
brasileiro) do que a tragédia do Mineirão em 2014. Essa
afirmação está sendo sustentada por uma
testemunha ocular dos fatos, em que pese ser um autor que tinha 6
anos de idade na época daquela Copa, a primeira que pôde
acompanhar pela TV e em condições de entender o que
estava acontecendo, e de se encantar com o futebol “de outra
galáxia” (na definição de Enzo Bearzot,
técnico da Itália campeã) daquela seleção.
Deve se dar o devido desconto por se tratar de alguém para
quem as lembranças daquela Copa estão
indissociavelmente ligadas às lembranças das primeiras
férias escolares, da vizinhança pela primeira vez
pintada inteira de verde e amarelo, da primeira vez em que se ouvia
um colossal foguetório a cada gol do Brasil, da primeira festa
junina na cidade grande, quando ainda se fazia a festa na rua de casa
e se soltavam balões em abundância (terríveis,
mas naquele contexto sublimes aos olhos de uma criança).
Mesmo com
esse desconto devido à memória afetiva do autor,
mantemos a afirmação, mas a qualificamos. A derrota de
1982 foi mais sentida que a de 2014 não só porque a
seleção de 1982 era muito melhor, mas porque em 1982 o
futebol importava muito mais. Era muito mais presente e significativo
na vida das pessoas, muito mais uma expressão do estado de
espírito coletivo, das esperanças e sonhos daquela dada
época. E o que precisamos explicar aqui é porque o
futebol brasileiro, antes tão belo e vitorioso, se tornou
medíocre. Pois o que levou o futebol a perder a importância
que tinha antes foi justamente o fato de ter perdido a qualidade
mágica de antes e ter se tornado medíocre.
A mudança
fundamental por trás de todos esses processos é a que
aconteceu no modo de vida das crianças e adolescentes no
Brasil nas últimas três décadas. Em 1982 as
crianças (em maior número os meninos) não faziam
outra coisa além de “jogar bola”, no intervalo das aulas,
no pátio da escola, no corredor da escola, na sala de aula,
entre as cadeiras, chutando e driblando com qualquer coisa que
aparecesse pela frente, desde tampinha de garrafa e bolinha de papel
até bolas de verdade, e depois na rua, na calçada, no
quintal das casas, nos terrenos baldios, nas praças, nas
quadras, campinhos de várzea, etc., jogando um contra um, ou
em duplas, em trios, em qualquer formação imaginável,
uma partida após a outra, um time depois do outro, em jogos
intermináveis, até 3 gols, até 10, etc. (e aqui
não se trata de mais uma memória afetiva de um
inveterado craque das peladas infantis, mas de alguém que não
jogava bola, porque era gordo e vivia enfurnado nos livros).
Em 2015 as
crianças e adolescentes estão trancados nas suas casas
e apartamentos, não saem na rua, não socializam, não
criam relações, não brincam nem brigam, apenas
jogam videogame, navegam no “facebook”, conversam no “whatsapp”.
Não há mais terrenos baldios, não há mais
campinhos de várzea, não há mais a interminável
“febre de bola”, as intermináveis peladas de rua (assim
como não há mais carrinhos de rolimã, bolinhas
de gude, esconde-esconde, etc.). Os jogadores de futebol de hoje são
formados em escolinhas, onde aprendem tudo, esquema tático,
posicionamento, etc., menos “jogar bola” de verdade, como sempre
foi o estilo brasileiro.
Sempre
tratamos a formação de jogadores de futebol como algo
aleatório, como se fosse um fenômeno da natureza. O
surgimento de novos craques, novos Rivaldos, Romários,
fenômenos, gaúchos e Neymares era tratado como algo que
iria acontecer naturalmente. “O Brasil sempre revela novos
jogadores”. A falsa imagem que se tinha é do mesmo tipo da
que se tem da Amazônia, uma imensidão sem fim de
florestas e rios, que não vai acabar jamais, por mais que se
derrubem as árvores. Da mesma forma, sempre se imaginou que
iriam continuar surgindo gerações e gerações
de novos jogadores, como no passado tivemos a geração
de 1958, depois a de 1970, depois a de 1982. E com elas o Brasil
sempre poderia continuar formando novas seleções, que
estariam recheadas de novos craques, que manteriam o país como
mais vitorioso.
Mas assim
como a Amazônia, o fenômeno do surgimento de novos
grandes jogadores está acabando. Não são
recursos infinitos, indefinidamente renováveis. 2014 é
a prova de que o futebol brasileiro perdeu essa capacidade
inesgotável de formar jogadores em condições de
competir com os melhores do mundo. Se até 2002 ainda era
possível contar com o improviso e mesmo assim vencer, agora já
não mais. Agora seria preciso um trabalho organizado,
sistemático, planejado, científico, para aproveitar os
talentos que ainda surgem. Não houve e não há
tal trabalho, nem da parte dos clubes, nem da parte da CBF. O Brasil
se rebaixou ao mesmo nível de qualquer outro país em
que se gosta de futebol, com o agravante da desorganização,
corrupção, autoritarismo e incompetência dos
dirigentes brasileiros, que são características da
burguesia brasileira em geral. Isso explica os 7 x 1.
A derrota
de 2014 não será apagada facilmente e o prestígio
construído em mais de um século pelo talento de muitas
gerações de craques não será
reconquistado com bravatas de Galvão Bueno. Diante da mudança
no modo de vida da infância e da adolescência, o número
de jovens que jogam futebol diminuiu enormemente. Aquela “febre de
bola” da qual quem cresceu nos anos 1980 ainda se lembra tão
vivamente arrefeceu. Não é que o número de
crianças e adolescentes jogando bola baixou a zero, mas baixou
brutalmente. Da quantidade nasce a qualidade, nos ensina a dialética.
Sem a mesma abundância de crianças e adolescentes
jogando bola, não surge mais a antiga abundância de
craques.
A atitude
necessária diante desse fenômeno, repetimos, deveria ser
um trabalho organizado para aproveitar os bons jogadores que ainda
surgem. Em havendo esse trabalho, o Brasil conseguiria ainda se
manter no mesmo nível das demais potências, Alemanha,
Argentina, Itália, etc., mas já sem o mesmo
brilhantismo e a superioridade de antigamente. Mesmo assim, não
daria vexame. Agora, estamos condenados a um rebaixamento, uma queda
que não se sabe até onde pode ir. Enquanto uma
atividade econômica, os dirigentes do futebol brasileiro
finalmente conseguiram matar a galinha dos ovos de ouro. Aquilo que
ninguém imaginava possível, transformar aquele
manancial inesgotável de grandes jogadores em uma terra
devastada, foi conseguido pelos nossos presidentes de clubes e da
CBF. É uma proeza histórica.
Tudo
começa nos clubes. Os grandes clubes brasileiros se tornaram
reféns dos esquemas de empresários de jogadores. São
os empresários que conseguem vagas para que os jovens, ainda
adolescentes, entrem nas categorias de base, desde que os pais paguem
as taxas e firmem contratos garantindo comissões a esses
empresários quando da venda do jogador para o exterior. Os
clubes não têm mais autonomia nas suas categorias de
base para formar seus jogadores. Cada clube deveria instalar dezenas
de escolinhas nas periferias, com o caráter de projeto social,
vinculado à frequência escolar, etc., para garimpar
novos talentos. O investimento num projeto como esse seria facilmente
coberto com a venda dos novos Neymares que surgissem. Os jogadores
teriam vínculo com o clube e não com empresários
que intermedeiam e viciam as relações.
Mas mesmo
os grandes clubes no Brasil são mal administrados,
aprisionados em dívidas, incapazes de um planejamento
estratégico, submetidos ao monopólio de uma grande
emissora de TV que define os calendários e horários de
jogos. Não têm a capacidade de desenvolver projetos como
esses. Os clubes pequenos e de cidades menores estão
definhando com um calendário em que os estaduais duram apenas
3 meses no início do ano, e as divisões nacionais
inferiores são deficitárias. Para reverter esse cenário
seria preciso uma reforma geral na estrutura e calendário do
futebol brasileiro, que exigiria:
-
adequação do campeonato brasileiro ao calendário
europeu, com um turno de setembro a dezembro e outro de janeiro a
maio. A vantagem dessa adequação é que os
grandes clubes poderiam planejar a sua temporada, sabendo com qual
elenco de jogadores podem contar, formando times de verdade, no
sentido coletivo, entrosando jogadores (hoje temos amontoados de
jogadores que se desfazem e refazem ao longo da temporada). Hoje os
clubes começam o ano com um elenco, que se desfaz na metade do
campeonato brasileiro devido à janela de transferências
da intertemporada europeia, e terminam o ano com outro elenco. Quem é
bem sucedido no início do ano, nos estaduais e na
Libertadores, acaba sendo “punido” com o desmanche do time e a
venda dos melhores jogadores para a Europa. Com a adequação
do calendário, repetimos, teríamos times mais estáveis
ao longo da temporada, melhorando a qualidade dos jogos.
- com o
campeonato brasileiro sendo disputado entre setembro e maio, os jogos
poderiam ser de domingo a domingo. E com isso, no meio de semana
seriam jogadas outras competições, como os estaduais,
Libertadores, Copa do Brasil. Como acontece também na Europa,
em que as copas nacionais e europeias são jogadas em meio de
semana. A vantagem desse formato é que os estaduais poderiam
ser jogados ao longo do ano inteiro, mantendo em atividade os clubes
pequenos ao longo de toda a temporada. Hoje os clubes pequenos nos
estados menores deixam seus jogadores desempregados por seis meses,
já que não há competições quando
acabam os estaduais.
- os
estaduais seriam classificatórios para a Copa do Brasil da
temporada seguinte. Com os clubes grandes priorizando o campeonato
brasileiro, a Libertadores ou a própria Copa do Brasil, eles
acabariam jogando os estaduais com times mistos, aumentando as
chances dos clubes pequenos vencerem os grandes (como acontece nas
copas nacionais na Europa), aumentando o interesse e rentabilidade
dos estaduais, mantendo a viabilidade financeira dos clubes pequenos.
- num país
com a dimensão continental do Brasil, não é
viável para os clubes pequenos jogar uma 3ª ou 4ª
divisão nacional com viagens do Rio Grande do Sul ao Amapá
ou da Paraíba ao Acre, por exemplo. Por isso, para os clubes
que não estão na 1ª ou 2ª divisão do
campeonato brasileiro, os estaduais e as primeiras rodadas da Copa do
Brasil serviriam também como uma espécie de seletiva ou
repescagem para a 2ª divisão, como uma forma suplementar
de aumentar o interesse dos estaduais. E aumentaria a competitividade
da 2ª divisão, já que o risco seria de
rebaixamento para a repescagem/estaduais.
- a
repartição das cotas de transmissão do
campeonato brasileiro deveria ser mais igualitária, com um
valor fixo para todos os clubes participantes da 1ª divisão
e um porcentual variável a ser distribuído conforme a
classificação final na tabela (e o mesmo critério
para a 2ª divisão, a repescagem intermediária,
Copa do Brasil, estaduais, etc.).
- para
participar das competições nacionais os clubes deveriam
ser obrigados a cumprir critérios de transparência
financeira e gestão, com limites para endividamento (sob pena
de rebaixamento) e outros, inclusive, por exemplo, a obrigatoriedade
de investimento em categorias de base, etc.
- também
deveria ser critério para participação nas
competições nacionais mudanças estatutárias
nos clubes que abrissem para os sócios torcedores (com
critérios de adimplência) o direito de voto nas
instâncias administrativas dos clubes, podendo escolher uma
parte dos representantes que elegem o presidente, formar o conselho
fiscal, etc.
Mudanças
como essas dependeriam de uma intensa mobilização dos
setores críticos da imprensa esportiva, das associações
de torcedores, do Bom Senso FC. Somos céticos em relação
à capacidade das torcidas organizadas servirem como agentes
progressivos nesse processo necessário de reorganização.
Afinal, a maior delas estabelece relações promíscuas
com dirigentes, servindo como massa de manobra nas disputas políticas
internas, favorecendo ora um dirigente ora outro, em troca de
vantagens na compra de ingressos, etc. Por isso apostamos numa
pressão consciente de torcedores “desorganizados”.
Essa
“revolução” de base nos clubes e competições
nacionais é uma pré-condição para que se
possa reformular também a própria CBF e a seleção
brasileira. Para acabar com os vexames e retomar a tradição
daquele futebol, que como disse o grande Hobsbawm, não poderia
ser comparado a nada menos que uma forma de arte.
*A mesma
Alemanha já foi goleada pela Inglaterra por 12 x 0, mas num
amistoso em 19XX, portanto ainda muito antes da era das Copas do
Mundo. Em 1954, essa mesma Alemanha foi goleada por 8 x 3 pela
Hungria, mas no momento desse jogo ainda não era uma seleção
campeã, o que só conseguiria nessa mesma Copa, ao jogar
de novo com a mesma Hungria na final, e vencer por 3 x 2.
**Em 1950,
a Copa do Mundo disputada no Brasil teve um formato único, que
não se repetiu em nenhuma outra Copa, sem semifinal nem final.
Houve um quadrangular final, com as 4 seleções
finalistas jogando todas entre si para definir o campeão.
Nesse quadrangular, o Brasil venceu a Suécia por 7 a 1 e a
Espanha 6 x 1, mas perdeu para o Uruguai por 2 x 1 no último
jogo, que não era exatamente a final da Copa. Os 7 x 1 da
Alemanha são portanto a maior goleada numa semifinal desde que
a competição tem o atual formato.
Daniel M.
Delfino
Junho 2015
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