3.12.09

Ser militante hoje

O gênero e a espécie

Digito a palavra “militante” na ferramenta de buscas “GOOGLE” e me aparecem 351.000 resultados. Entre os 20 primeiros resultados, que correspondem aos registros mais visitados, encontro 9 links* que correspondem a uma acepção bastante peculiar da palavra militante.

Trata-se de manchetes de jornal que dizem respeito à luta armada contra as invasões dos Estados Unidos ao Iraque, Afeganistão e Paquistão ou contra a invasão da Palestina por Israel. Nessas manchetes se diz que “militantes” da Al Qaeda, do Talibã, do Hamas ou do Hizbollah enfrentaram as tropas invasoras ou praticaram atentados contra a presença imperialista naqueles países.

O que há de extraordinário nessas notícias?

Ora, até bem pouco tempo atrás, os grupos que praticavam a luta armada contra o imperialismo eram chamados de “terroristas”. Agora, são chamados de “militantes”. Essa mudança configura uma importante manobra ideológica que se realiza através de uma inversão semântica do gênero pela espécie.

O indivíduo que pratica a luta armada, seja sob a forma de guerrilha ou de terrorismo, é certamente uma espécie de militante. Pode-se discordar politicamente do terrorismo como tática adequada a determinado momento histórico ou determinada situação da luta (a esmagadora maioria dos marxistas revolucionários, este autor incluído, discorda), mas é preciso conceder que se trata de um tipo de militância. Mas se todo terrorista é de certa forma um militante, nem todo militante é obrigatoriamente um terrorista. Aí está o “X” questão. É essa distinção que está sendo apagada pela operação semântica em andamento na mídia burguesa, com um objetivo ideológico bastante preciso.

O terrorismo é quase universalmente repudiado como tática de luta política, não apenas pela hoje restrita confraria dos marxistas revolucionários, mas por todas as frações da classe trabalhadora. Infelizmente, os trabalhadores em geral não repudiam o terrorismo por ter o mesmo entendimento que os marxistas revolucionários a respeito do que ele significa, ou seja, por ser uma tática contraproducente na luta contra o capital. O proletariado repudia o terrorismo porque a sua consciência, em quase todas as questões, da moral e da estética até a política, segue a ideologia burguesa. Entre as outras classes sociais, a burguesia evidentemente condena publicamente o terrorismo contra o capital, mas se omite quanto ao terrorismo de Estado praticado sistematicamente para reprimir as lutas contra a sua dominação. O terrorismo de Estado é chamado de “defesa da segurança nacional”, enquanto que o terrorismo contra o capital recebe todo o repúdio possível e imaginável.

É justamente esse repúdio que a mídia burguesa quer capitalizar. Assim, quando se chamam os combatentes terroristas de “militantes”, o objetivo é chamar os “militantes” de terroristas. E com isso, jogar o repúdio moral que acompanha a forma particular de ação que é o terrorismo sobre os militantes em geral, qualquer que seja a sua prática. A mídia burguesa quer associar a palavra “militante” à imagem do terrorista. O militante será visto pelo trabalhador com desconfiança, por causa dessa associação subliminar com o terrorismo. Quando um trabalhador ouvir a palavra “militante”, ele não vai pensar na figura do militante em geral, mas na figura particular do terrorista. E qualquer que seja a ação militante de que esteja se falando, a carga de repúdio que acompanha a figura do terrorista estará inconscientemente associada a essa ação.

A crítica das armas

Essa manobra ideológica recente da mídia burguesa é apenas mais um dos golpes na imagem já bastante desgastada dos militantes. A figura do militante tem estado com o prestígio bastante em baixa nos últimos tempos, por causa do descrédito em que caiu a luta contra o capital. Mas para esse descrédito contribuiu também uma série de práticas das próprias organizações políticas militantes que só tem contribuído para afastar os trabalhadores da luta contra o capital. Isso exige uma profunda revisão metodológica, teórica, moral, comportamental, discursiva e operacional por parte da esquerda para que o marxismo revolucionário volte a ser ouvido pelos trabalhadores e possa passar da “arma da crítica” à “crítica das armas”.

A respeito dessa revisão falaremos logo adiante. O que importa desenvolver aqui é a questão da crítica das armas. Há também uma distinção importante entre terrorismo e guerrilha ou insurreição, pois há tipos de luta armada que não necessariamente envolvem o terrorismo (e não necessariamente são condenados pelos marxistas revolucionários, este autor inclusive). Mas esta segunda distinção também é sistematicamente apagada pelo amálgama semântico característico da ação ideológica da mídia burguesa.

A luta contra o capital não dispensa o momento do enfrentamento físico contra o capital e o Estado burguês, ou seja, a crítica a ser exercida por meio das armas de que fala a célebre frase de Marx parafraseada acima. Isso está longe de significar que ser militante seja o mesmo que ser terrorista. A “crítica das armas” não é a ação isolada de indivíduos que matam indiscriminadamente e permitem com isso que a burguesia obtenha a legitimidade ideológica para as formas mais espúrias de repressão, como acabamos de presenciar por ocasião da resposta de Bush ao 11 de setembro. A “crítica das armas” é a ação política coletiva consciente e organizada do conjunto da classe trabalhadora contra o capital, que precisará envolver algum tipo de luta armada, mesmo porque a burguesia jamais vai abrir mão dos seus privilégios pacificamente, sem luta, e seu instrumento, o Estado burguês e seu aparato repressivo (forças armadas, polícia, órgãos de espionagem, etc.), não se dissolve sozinho.

Para chegar até essa verdadeira “crítica das armas”, até esse tipo de ação coletiva consciente e organizada da classe, a arma da crítica precisa ser radical, ou seja, “tomar as coisas pela raiz, e a raiz do homem é o próprio homem”, prossegue Marx. A esquerda marxista revolucionária não tem sido capaz de chegar a essa raiz do homem, ao entendimento do que é a condição do homem hoje.

Queimando o filme

Os militantes de esquerda vivem hoje numa condição social apartada da classe que dizem representar e que pretendem liderar. Vivem instalados em cargos no aparato do Estado, dos sindicatos, das universidades, das ONGs e dos partidos. E não são apenas as correntes reformistas (que negam a necessidade da revolução para abolir o capital), mas também os revolucionários, que adotam essa prática de afastar os seus melhores quadros e empregá-los vitaliciamente em atividades superestruturais. Quando não acontece a capitulação aberta, como no caso dos reformistas, que se transformam em co-gestores do capital ao lado da burguesia, há um processo objetivo de burocratização que desvincula esses militantes da realidade da classe.

No caso das correntes revolucionárias, onde não acontece a burocratização, vigora um sectarismo feroz, uma disputa autofágica e suicida pelo controle dos aparatos do movimento (sindicatos e demais entidades), que apenas resulta em asfixia do próprio movimento. Tendo como foco a disputa pelos aparatos, as organizações de esquerda adotam um discurso que fala apenas a quem já é militante, cada uma tentando parecer mais revolucionária que a outra. Esse discurso não diz nada aos trabalhadores de carne e osso, e as práticas de disputa não contribuem para trazê-los para a luta.

De um lado, a burguesia constrói um cenário ideológico em que o militante se torna sinônimo de terrorista, ou de criminoso, baderneiro, cão raivoso, lunático, etc. De outro lado, as práticas correntes na própria esquerda impõem aos militantes a desgastante tarefa de conviver com organizações que concebem a militância como disputa, uma disputa em que vale tudo, todos os tipos de golpes e manobras para desacreditar as organizações “rivais” perante o público. O público, que é o restante da classe trabalhadora nesse caso, está completamente alheio a esse patético e mesquinho espetáculo, que parece não lhe dizer respeito.

Além das dificuldades de se enfrentar a burguesia e todo seu gigantesco aparato de repressão e controle ideológico, composto pelo Estado, a mída, as igrejas, os burocratas, etc., os militantes ainda precisam enfrentar o obstáculo que é a postura das próprias organizações de esquerda. É um desafio imenso fazer parte de uma organização militante e participar da luta de classes sem se deixar absorver pela disputa de tipo fratricida em que estão mergulhadas as demais organizações.

Outro obstáculo consiste em vencer a desconfiança dos trabalhadores em relação às organizações de esquerda, cujos vícios sectários, rivalidades “futebolísticas”, apego aos cargos e aparatos e discursos “alienígenas” transparecem de maneira cristalina para qualquer trabalhador.

Colaborando para alimentar essa desconfiança, de resto bastante justificada, existe ainda o discurso de um setor dito “independente” que se recusa a participar das organizações políticas militantes porque não são democráticas, cerceiam a criatividade, reprimem a liberdade do indivíduo, etc. Esse discurso contém uma parcela de verdade, uma vez que a maior parte das organizações de esquerda são de fato autoritárias, têm um funcionamento interno burocrático, lideranças vitalícias, separação entre dirigentes que fazem o trabalho intelectual e deixam o trabalho braçal para os militantes, etc. Entretanto, a resposta contra isso, ao invés da postura independente, que leva à dispersão e ao imobilismo, deveria ser a busca por novas formas de organização, por novas experiências coletivas, novos métodos de ação, nos quais se pudesse empregar toda a criatividade, desejo de liberdade e vontade de se manifestar. Isso contribuiria enormemente para oxigenar e revitalizar a luta contra o capital.

Além disso, não há nada mais anti-democrático, autoritário, repressivo, tedioso, odioso, anti-humano, do que a própria sociedade burguesa. Deixar de lutar contra essa sociedade porque a esquerda atual é tosca, mambembe e anti-democrática é uma contradição. Para revolucionar a sociedade, é preciso revolucionar a própria esquerda. O contrário disso seria aceitar a alienação e a desumanização que a ordem do capital impõe.

Nadando contra a corrente

O militante é a pessoa que não aceita a alienação, apesar das dificuldades hoje envolvidas nas várias dimensões da luta contra o capital. Confrontado com essas dificuldades, o militante não tem outra alternativa a não ser militar. A recusa da ordem estabelecida não é um ato individual, nem tampouco uma simples opinião intelectual. Ser militante é tomar parte ativa e prática na luta coletiva, organizada e consciente contra o capital. É negar todos os tipos de exploração, opressão, repressão, dominação, manipulação, hierarquização, falsificação e mentira que caracterizam a sociedade burguesa. É questionar, recusar, discutir, pensar, criticar, propor, elaborar, inventar, participar, arregaçar as mangas, construir e se auto-construir. É tentar construir hoje o homem de amanhã: um indivíduo ativo, criativo, crítico, consciente, que estuda, debate, se expressa, não se cala, grita, chora e ri ao lado de seus irmãos de luta e de classe. É construir uma outra forma de vínculo humano, em que não há interesse material ou mercantil, um vínculo em que o indivíduo se realiza por meio do coletivo e vice-versa, uma relação de companheirismo, camaradagem, confiança, honestidade, verdade.

Ser militante é lutar contra a exploração econômica, o trabalho assalariado, a propriedade privada, o poder político, as instituições do Estado, as mentiras das igrejas, as armadilhas da ideologia dominante, os preconceitos, o racismo, o machismo, o patriarcado, o moralismo, a hipocrisia, a moda, os comportamentos fabricados, o tédio, a cultura enlatada, o estranhamento que impede os seres humanos de se olharem nos olhos uns dos outros e se verem no espelho. São milênos de alienação a serem combatidos, com a crítica da armas e as armas da crítica.

Daniel M Delfino, militante do Espaço Socialista (http://www.espacosocialista.org/)
15/11/2009

*Resultados da pesquisa no GOOGLE:

Folha Online - BBC Brasil - Militante promete se entregar e se ...
28 Ago 2009 ... O homem-bomba era um militante procurado pela polícia que tinha dito que queria se entregar pessoalmente ao príncipe, que é responsável pela ...
http://www1.folha.uol.com.br/folha/bbc/ult272u616089.shtml

Indonésia confirma que militante mais procurado do país continua ...
12 Ago 2009 ... Testes de DNA revelaram que homem morto no sábado não era Noordin Mohammed Top.
www.estadao.com.br/.../internacional,indonesia-confirma-que-militante-mais-procurado-do-pais-continua-vivo,417296,0.htm

Detido militante do Fatah al-Islam que fugiu ontem de prisão ...
O Exército libanês deteve hoje o militante do grupo islamita Fatah al-Islam, identificado como Taha Al-Hajj Suleiman, que fugiu ontem da maior prisão do ...
br.noticias.yahoo.com/.../politica-detido-militante-fatah-al-islam.html - Em cache - Similares
http://br.noticias.yahoo.com/s/19082009/40/politica-detido-militante-fatah-al-islam.html

CONTROVÉRSIA (Blog) » Paquistão se aproxima de acordo com ...
6 Ago 2008 ... Um acordo provisório de 15 pontos, que foi mostrado ao “The New York Times”, requer o fim da atividade militante e a libertação de ...
http://blog.controversia.com.br/2008/08/06/paquistao-se-aproxima-de-acordo-com-principal-militante-radical/

Although US ally Pakistan is battling militants in its northwest it officially objects to the US strikes by pilotless aircraft, saying they are a violation ...Reuters - artigos relacionados 582 »
http://www.reuters.com/article/latestCrisis/idUSISL484580

Kashmir Militant Extremists - Council on Foreign Relations - [ Traduzir esta página ]
A profile of militant extremist groups in the disputed Himalayan region of Kashmir.
http://www.cfr.org/publication/9135/

Indonesia believes top militant dead, thwarts attack Reuters - [ Traduzir esta página ]
8 Aug 2009 ... KEDU, Indonesia (Reuters) - Indonesian police shot dead a man suspected to be leading Islamic militant Noordin Mohammad Top after an 18-hour ...
http://www.reuters.com/article/topNews/idUSTRE57631P20090808

Al Qaeda's second-in-command called on Pakistanis to back Islamic militants in the country's tribal areas against what he called an ongoing assault by ...
http://www.cnn.com/2009/WORLD/asiapcf/08/28/pakistan.al.qaeda.video/index.html

Prince on call with militant during attack - Mideast/N. Africa ... - [ Traduzir esta página ]
1 Sep 2009 ... The Saudi militant who attacked the kingdom's anti-terror chief after pretending he wanted to surrender blew himself up while the official ...
http://www.msnbc.msn.com/id/32649250/ns/world_news-mideastn_africa/

OBS: pesquisa realizada em setembro de 2009.

25.11.09

O culto ao nazismo nas bancas de jornal



Uma rápida olhada nas bancas de jornal no mês de julho de 2009 revelou a ocorrência de um fenômeno editorial bastante significativo. Há um “boom” de publicações voltadas para a II Guerra Mundial, para o nazismo em especial, e para a figura de Hitler em particular.

Vejam-se os seguintes títulos:

- II Guerra Mundial – Edição Ilustrada – Campos de Concentração – A estratégia de extermínio de Hitler – Holocausto – Organização do Partido – Campos de concentração – Ed. Escala.

- Especial 70 anos da II Guerra – Grandes guerras – Tudo de novo no front – Dia D minuto a minuto – Ed. Abril.

- Coleção Battlefield – Aventuras na história – DVD – As maiores batalhas da II Guerra numa só coleção – A batalha da Grã-Bretanha - Ed. Abril.

- Stalingrado, um duelo mortal entre Hitler e Stalin – Aventuras na história – DVD – A batalha mais dramática da II Guerra Mundial – Ed. Abril.

- Hitler, simbologia e ocultismo – A história secreta do ditador – Anticristo, Lança de Longinus, Suástica, Nazismo, Forças Ocultas – Ed. Escala.

- Segunda Guerra – A história oficial e seus heróis anônimos – Ed. Universo dos livros.

- História revelada – A lança sagrada de Hitler – Os segredos do nazismo – Origem, filosofia, história, influência, simbologia – Ed. Universo dos livros.

- História ilustrada do nazismo – O poder e as conseqüências – 1933 – 45 – Vol. 2 – Ed. Larousse.

- Atlas II Guerra Mundial – Alemanha vs. Inglaterra – Livros Escala.

- História viva – 70 anos da Guerra Civil Espanhola – Ed. Duetto.

- Edição totalmente ilustrada – HOLOCAUSTO - A estratégia de purificação racial de Hitler – Ed. Escala.

- Hitler e os segredos do nazismo – Vol. 1 – Ed. Universo dos livros.

Aparentemente, isso pode significar uma simples curiosidade “inocente”, um interesse neutro pelo conhecimento histórico. Pode haver uma flutuação cíclica do interesse do público leitor, que vai de temas como o nazismo a outros fenômenos históricos, como as cruzadas ou o império romano. Entretanto, a continuidade dessa observação nos meses seguintes demonstrou a consistência do fenômeno. As publicações sobre o nazismo e Hitler continuaram “em cartaz”, e novas publicações apareceram.

Além disso, um exame mais cuidadoso dos títulos revela também que não se trata de simples curiosidade histórica ou interesse neutro. Títulos como “os segredos do nazismo”, “a mitologia”, “a simbologia”, “a filosofia”, “as sociedades secretas e o nazismo”; não têm nada de inocente ou neutro. São títulos pensados para tornar o objeto mais atraente. Disfarçadamente, o sensacionalismo esconde uma apologia do objeto, ajudando a alimentar o fascínio e o mistério.

Para completar, deparamo-nos com a quase total ausência de um contraponto ideológico a essa avalanche de lançamentos sobre o nazismo. Há um ou outro lançamento sobre Ernesto Che Guevara (ver por exemplo: Superinteressante – Aventuras na história – 50 anos da Revolução comunista – Cuba e Che – revista e DVD – Ed. Abril), e se bem que o Che sempre tenha sido um “fenômeno de vendas”, fato cujo significado ideológico também merece uma boa discussão, há uma esmagadora prevalência da direita sobre a esquerda nas bancas de jornal.

Estamos diante de um verdadeiro culto ao nazismo. É certo que não se pode julgar o livro pela capa. Seria preciso fazer o exame detalhado de cada uma dessas publicações para verificar a linha política que defendem. Certamente, nenhum autor ou editora cometerá a sandice de fazer uma apologia aberta do nazismo. Entretanto, independentemente do conteúdo, a simples aparição desse fenômeno editorial é ideologicamente significativo. As publicações podem até mesmo ser academicamente corretas ao mostrar as atrocidades que o nazismo cometeu, os campos de concentração, etc., mas isso funciona apenas como cobertura para uma apologia indireta do fenômeno. Há um gosto sádico no inconsciente coletivo sendo alimentado por esse tipo de mercadoria “inocente” irresponsavelmente cultivado pela indústria editorial. Para bom entendedor, meia palavra basta. É preciso saber tirar as conclusões políticas desse sinistro fenômeno ideológico em processamento nas profundezas da consciência social.

O aparecimento desse “boom” editorial, se não configura uma apologia explícita do nazismo, pode bem significar uma espécie de culto disfarçado. Se não há uma crítica e uma denúncia do nazismo, uma explicação do seu papel histórico de alternativa extrema da burguesia alemã em face da Grande Depressão, etc., a compreensão fica prejudicada. O leitor desavisado pode ser seduzido pelo apelo do visual, da simbologia, da sofisticada hierarquia do partido nazista, da disciplina, da ordem, da determinação “heróica”, do romantismo, etc.

Não basta a denúncia de que o nazismo exterminou milhões de judeus. É preciso explicar porque a burguesia alemã precisou do nazismo. Na década de 1930, o capitalismo desmoronava a olhos vistos e o desemprego atingia milhões de pessoas em todos os países ligados ao mercado mundial, desde os grandes impérios até as semi-colônias. Do outro lado havia o exemplo da União Soviética (mesmo sob o terror stalinista), com pleno emprego, industrialização e melhoria nas condições de vida. O movimento comunista internacional era uma ameaça concreta para a burguesia, pois mostrava uma alternativa palpável ao capitalismo em plena crise.

O nazismo cresceu explorando exatamente a divisão entre o stalinismo e a social-democracia. As duas principais forças da esquerda não se unificaram para combater a ascensão do nazismo e foram derrotadas nas disputas de rua no início da década de 1930. Hitler construiu um exército com bandos de lúmpens para espancar militantes de esquerda e aplastar sindicatos. Com isso o nazismo tornou-se alternativa para a burguesia alemã. A burguesia francesa e inglesa considerava a revolução socialista uma ameaça maior do que o próprio nazismo. Isso permitiu o rearmamento do imperialismo alemão, que precipitou a guerra.

O nazismo matou milhões de judeus, mas não apenas isso. A II Guerra provocou a morte de dezenas de milhões de trabalhadores de várias nacionalidades, além de outros tantos milhões de feridos e desabrigados, da destruição de recursos e forças produtivas, fábricas, infra-estrutura e cidades inteiras. Foi somente sobre a base dessa destruição que o capitalismo pôde se reerguer da crise mundial iniciada em 1929.

Resgatar essa história (há muitos outros detalhes a serem esclarecidos) é importante no cenário marcado por uma crise econômica que é a mais séria desde a Grande Depressão. Se a Depressão provocou uma destruição do tamanho daquela da II Guerra, algo semelhante pode estar se preparando no nosso presente. Por mais que os ideólogos do sistema digam que a atual crise “está superada”, nenhum dos problemas estruturais do capitalismo foram resolvidos (e nem podem sê-lo dentro dos marcos desse modo de produção). O capital fictício transbordando no mercado financeiro, o endividamento dos Estados, a emissão descontrolada de moeda, o desemprego, etc., são legados dessa crise que continuarão durante vários anos. A burguesia pode responder à insatisfação social por meio da guerra. Basta escolher o adversário: o Irã, a Coréia do Norte, a Venezuela, etc., ou ainda o terrorismo, as drogas, a violência, o crime, etc.

Por isso, não é coincidência o reaparecimento de golpes de Estado, como em Honduras. Assim como não é coincidência o fenômeno editorial do culto ao nazismo. Diante do recrudescimento das ações da direita, nenhuma concessão pode ser feita, sob qualquer forma em que apareça, mesmo as mais aparentemente “inocentes” como publicações sobre o nazismo, ou as ameaças contra uma estudante na Uniban. A disputa ideológica contra a decadência capitalista e suas doentias manifestações proto-fascistas precisa ser feita em todas as dimensões, apontando as alternativas contra as crises, as guerras, a miséria e a barbárie em todas as suas formas, uma alternativa que só pode ser o socialismo.

Daniel M. Delfino
15/11/2009

6.11.09

Guerra é Paz, 2 + 2 = 5 e Lula é medalha de ouro



Guerra é Paz

No livro “1984”, obra máxima da ficção científica e clássico da literatura do século XX, George Orwell descreve uma distopia (utopia ao contrário), uma realidade de pesadelo em que uma ditadura brutal controla a vida da sociedade por meio de instituições cujos nomes estão invertidos em relação às suas verdadeiras funções. O órgão encarregado de fazer a guerra era chamado de Ministério da Paz, o da repressão policial de Ministério do Amor, o de falsificar a realidade, Ministério da Verdade, o do racionamento, Ministério da Fartura, e assim por diante. A prova de que vivemos hoje em pleno mundo orwelliano foi escancarada no mês passado.

Em meados de outubro de 2009 o presidente dos Estados Unidos, Barack Hussein Obama, foi agraciado pela academia sueca com o Prêmio Nobel da Paz de 2009. Por esses mesmos dias, o total de soldados estadunidenses mobilizados no Afeganistão chegou a 65 mil, somando-se aos 124 mil postados no Iraque para completar o total de 189 mil combatentes. Esse número ultrapassa os 186 mil mobilizados por Bush, o que faz do oblíquo Obama um presidente ainda mais beligerante do que o seu mundialmente odiado predecessor (isso sem falar na escalada de violência no Paquistão, na reativação da IV Frota no Atlântico, na expansão das bases militares na Colômbia, etc.). Um mundo em que um presidente abertamente beligerante é premiado com o Nobel da Paz é um mundo em que tudo está de cabeça para baixo.

Essa inversão orwelliana da realidade é uma demonstração das sutilezas ideológicas de que a burguesia é capaz para perpetuar sua dominação. A própria eleição de Obama em 2008 foi uma manobra para reciclar a confiança da população estadunidense e mundial na viabilidade do capitalismo, no momento mesmo em que o sistema vivenciava a eclosão da crise econômica mais séria em 70 anos. O discurso de mudança serviu exatamente para encobrir a continuidade do programa político dos setores sociais que controlam o país, a burguesia financeira, o complexo industrial-militar e a indústria do petróleo. A imagem do negro, uma minoria oprimida e superexplorada, serviu para difundir a ilusão de que as vítimas do sistema seriam contempladas na nova administração, quando na realidade se tratava também do oposto, o aumento da exploração sobre os trabalhadores. Quando precisou endurecer o ataque contra a classe trabalhadora estadunidense, a burguesia daquele país engendrou justamente um presidente no qual amplos setores do proletariado nutriam grandes esperanças, em especial os setores mais pobres e explorados, como os negros, latinos, imigrantes, mulheres e jovens.

Os números da economia e a ideologia burguesa: 2 + 2 = 5

Essa necessidade de atacar a classe trabalhadora não era apenas da burguesia estadunidense, mas do conjunto dos países imperialistas colocados no epicentro da crise econômica. A tendência histórica de queda da taxa de lucro inerente ao capitalismo precisa ser enfrentada por meio do aumento da exploração do trabalho, que no atual momento é feito nas condições de um mercado mundializado que permite aos capitalistas comprar a força de trabalho onde essa mercadoria se apresentar mais barata. Como reflexo disso, os trabalhadores enfrentam em nível mundial uma queda nos seus salários e uma deterioração nas suas condições de vida. Um relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) mostrou que “o aumento dos salários médios no mundo caiu, passando de 4,3% em 2007 para 1,4% em 2008. Os dados indicam que mais de 25% dos 53 países analisados registraram queda ou estagnação salarial” (BBC Brasil, 03/11/2009). Dados como os índices de desemprego nos Estados Unidos, que chegaram a 9,8% em outubro (17% considerando os trabalhadores subempregados ou que deixaram de procurar emprego), também são bastante eloqüentes no que se refere a mensurar os efeitos da crise econômica sobre os trabalhadores.

Números como esses, pouco divulgados na imprensa burguesa, contrastam com os números bombasticamente anunciados por toda parte para alardear uma suposta recuperação da economia estadunidense e mundial, um ano depois da eclosão da crise econômica. O crescimento de 3,5% do PIB estadunidense no 3º trimestre de 2009, interrompendo um ano de queda, deveu-se ao impacto de gastos governamentais para estimular as empresas e o consumo, como o programa “cash for clunkers” - literalmente dinheiro por sucata - uma linha de crédito oferecida pelo governo para quem trocasse carros usados por novos. A injeção de dinheiro do Estado nas empresas explica a subida do índice S&P 500, que mede a valorização das 500 maiores empresas com ações listadas na bolsa, e elevou-se em 60% desde março. Outro índice importante, o Dow Jones, subiu 50% desde sua maior baixa no auge da crise.

Gastos do governo estadunidense em isenções fiscais, programas de estímulo, empréstimos, estatizações, emissão de títulos, etc., num total que alcança US$ 23 trilhões desde o início da crise, são os responsáveis pelos “green shots”, como são chamados os supostos sinais de que a economia estaria a caminho da recuperação. Quanto mais incapaz de compreender o funcionamento das crises econômicas capitalistas, mais a ideologia burguesa se vê forçada a negar a realidade da crise e se refugiar em dados fragmentados e de curtíssimo prazo para se auto-tranqüilizar. Dentro da lógica burguesa, se as grandes empresas estão tendo lucro e as ações estão em alta, não há crise. A vida concreta das pessoas, dos trabalhadores em especial, não existe, não merece consideração.

Mas há dados que até mesmo os ideólogos burgueses mais empedernidos serão forçados a encarar. A emissão massiva de dinheiro pelo governo estadunidense para reativar a economia trouxe um alívio temporário nos últimos meses, mas provocará um sério problema a médio prazo, na medida em que o enorme endividamento ameaça corroer o próprio valor da moeda. O dólar se desvalorizou em 47% em relação ao ouro no período de novembro de 2008 a novembro de 2009. A possibilidade de colapso do dólar como moeda de reserva mundial é apenas mais uma das conseqüências da atual crise, que portanto está longe de ser resolvida, por mais que a matemática burguesa queira nos fazer crer que tudo vai bem.

Medalha de ouro em traição de classe

A batalha ideológica em torno dos números da economia é parte do operativo ideológico geral por meio do qual a burguesia cotidianamente reforça a crença na inevitabilidade do capitalismo e na inexistência de alternativas a esse sistema. Além da figura-chave de Obama, um dos pilares desse operativo ideológico global de defesa do capitalismo está em nosso próprio país: o presidente Lula, que sobressai depois da crise com elevadíssimos índices de popularidade. O governo Lula executa uma partilha da riqueza social entre a burocracia estatal e os grandes grupos econômicos burgueses nacionais e estrangeiros, de um modo que sobram migalhas para os programas de bolsa-esmola que mantém cativa sua base eleitoral entre os trabalhadores mais pobres.

O governo Lula não pratica um privatismo escancarado, que provocaria resistência popular, mas ao mesmo tempo não deixa de entregar as riquezas nacionais à burguesia. Abre-se o controle de empresas como o Banco do Brasil e a Petrobrás ao capital privado (inclusive estrangeiro), mas mantém-se um razoável nível de controle pela burocracia estatal. O caso do pré-sal é exemplar, pois um acordo em que a exploração do petróleo será feita por empresas privadas, inclusive estrangeiras, foi apresentado mentirosamente como tendo um caráter estatista e garantidor da soberania nacional. Para tornar palatável essa mentira, a Petrobrás terá um orçamento de R$ 250 milhões para publicidade em 2010 (Redação Terra, 31/10/2009).

A propaganda é a alma do negócio. A escolha do Rio de Janeiro para sede das Olimpíadas de 2016 sinaliza o reconhecimento da burguesia internacional ao papel do governo Lula como exemplo mundial de governo capaz de controlar os conflitos sociais e impedir o desenvolvimento de lutas dos trabalhadores, um exemplo a ser exportado para os demais países periféricos. O candidato à presidência do Uruguai pela Frente Ampla, José “Pepe” Mujica assim explica a importância do supremo mandatário brasileiro no cenário internacional: “Lula é um senhor presidente, com um grande número do parlamento que vota contra, e mesmo assim logra manejar um país com as dimensões do Brasil, com os problemas que tem. E por que ele consegue isso? Porque negocia, negocia e negocia, tem a paciência de um velho dirigente sindical. E esse é o espírito que devemos ter nesse tema. Aliás, aqui entre nós, deveríamos clonar o Lula pela América Latina” (entrevista para a revista Teoria e Debate – 21/10/2009).

Do Haiti a Honduras, o governo Lula exporta “know-how” em mistificação ideológica, com um discurso que aparenta ser de esquerda e práticas consistentemente de direita, sobretudo no que se refere a impedir o desenvolvimento de uma perspectiva política autônoma dos trabalhadores e na duríssima repressão sobre os setores em luta (operativo policial de guerra nas favelas, morte aos sem-terra no campo, endurecimento contra as greves, etc.).

A situação da classe trabalhadora

Também no Brasil o Estado foi usado para salvar o capital em crise e a conta está sendo passada para os trabalhadores. As políticas de ajuda do governo às grandes empresas, que totalizaram mais de R$ 480 bilhões, permitiram um aquecimento artificial do consumo (automóveis, eletrodomésticos da linha branca, materiais de construção): “Pesquisa do Instituto Datafolha divulgada na edição da Folha de S. Paulo neste domingo mostra que (...) o percentual dos entrevistados que possuem carro passou de 34% para 36%, assim como o percentual de donos de máquina de lavar subiu de 59% para 65%. (...) A classe que mais cresceu foi a B (média-alta), de 23% para 26%”(Redação Terra 01/11/2009).

Também no Brasil a ajuda às grandes empresas provocou aumento do endividamento público: “O setor público consolidado brasileiro registrou déficit primário de R$ 5,763 bilhões em setembro, pior resultado para o mês da série histórica iniciada em 2001. Em setembro de 2008, o resultado primário havia sido superavitário em R$ 6,618 bilhões. (...) A relação dívida/Produto Interno Bruto (PIB), como conseqüência, teve alta expressiva no mês e alcançou 44,9% do Produto Interno Bruto (PIB), frente a 44% do PIB em agosto, mostraram os dados divulgados pelo Banco Central ”(Reuters News 30/10/2009).

A economia pode crescer, as empresas podem lucrar e as bolsas de valores podem ter alta, sem que haja diminuição do desemprego e melhoria dos salários. Além de contar com apoio estatal, a burguesia brasileira também realizou ajustes estruturais nas empresas sob seu controle, impondo o aumento da exploração através da intensificação do trabalho.

Entretanto, o proletariado brasileiro não foi um coadjuvante passivo na encenação dessa pseudo-recuperação econômica. Houve lutas importantes em 2009, como a greve geral da USP e as campanhas salariais dos correios, metalúrgicos e bancários no 2º semestre, que lutaram contra esse aumento da exploração. Essas lutas de resistência não foram porém suficientes para romper o controle da situação política pela burguesia e pelo governo Lula.

Um componente essencial do método lulista de governar está no controle férreo dos principais organismos de luta dos trabalhadores (CUT, MST, UNE, etc.) pela Articulação/PT e seus satélites, que tem sido essencial para impedir que as greves como as que irromperam em 2009 desenvolvessem todo seu potencial de enfrentamento, permanecendo isoladas umas das outras e sem poder de atração sobre o restante da classe. O controle burocrático da Articulação e a maquinaria ideológica do governo Lula são alguns dos obstáculos a serem superados no atual processo de Reorganização da classe, processo que tem tido seu eixo nos debates em torno da fusão entre Conlutas (central em que o PSTU detém a maioria) e Intersindical (controlada por setores do PSOL), agrupando também outras correntes, e que avançou no Seminário Nacional realizado em 1 e 2 de novembro em São Paulo. Mais do que nunca se faz urgente a construção de uma alternativa organizativa com um perfil ideológico classista, socialista e capaz de romper com os vícios e métodos de funcionamento que têm entravado as lutas da classe no último período, e que a própria esquerda têm reproduzido.

Daniel M. Delfino
Novembro 2009


28.9.09

"O seqüestro do metrô" e o sumiço da crise



“O seqüestro do metrô 123” é mais um típico filme de ação enlatado do cinema estadunidense. A sua peculiaridade está na alegoria que se pode fazer entre a sua narrativa e o discurso ideológico por meio do qual os políticos, economistas, jornalistas e outros gestores do sistema querem nos fazer crer que a crise econômica já foi superada.

O protagonista do filme é um executivo da companhia do metrô de Nova York (interpretado por Denzel Washington) que está sob investigação por suspeita de aceitar suborno em uma licitação. Por conta disso ele foi rebaixado para a função de controlador de tráfego, encarregado de monitorar o fluxo dos trens nas linhas e se comunicar com os maquinistas. É nessa função que ele entra em contato com seu antagonista, um ex-presidiário (interpretado por John Travolta) que seqüestra um trem e exige um resgate milionário da prefeitura. Mas não se trata de um ex-presidiário qualquer: o seqüestrador havia sido preso por aplicar um golpe em Wall Street.

Seguem-se então as piruetas tradicionais dos filmes de ação, o clássico duelo do mocinho e do bandido, a ideologia tradicional do heroísmo hollywoodiano, etc. Nessa linha, trata-se de uma produção competente, realizada por profissionais de bom nível. O diretor é Tony Scott, o irmão sem talento de um dos grandes artistas em atividade no cinema (Ridley Scott, responsável por clássicos como “Alien, o 8º passageiro” e “Blade Runner”, além de uma longa coleção de obras acima da média, como “Os duelistas”, “Chuva Negra”, “1492”, “Telma e Louisie”, “Gladiador”, entre outros). Mesmo sem o talento do irmão, Tony Scott já emplacou um mega-sucesso de bilheteria, o icônico “Top Gun”, filme paradigmático da década de 1980 e seu “revival” da Guerra Fria, com a apologia explícita do aparato militar estadunidense, embalada no clichê do herói rebelde romântico.

Em “seqüestro do metrô 123” temos outro tipo de discurso ideológico, adequado a uma época de crise econômica.

O herói é um funcionário público civil, apesar de também pegar em armas no final. Isso representa uma defesa do papel do Estado ao supostamente tirar a economia estadunidense da crise (sem no entanto abrir mão das guerras no Oriente Médio).

O vilão da história é um especulador do mercado financeiro. Ou seja, a causa da crise são as “maçãs podres” de Wall Street, os banqueiros inescrupulosos que transformaram a economia num cassino. A mensagem é que, expurgando-se essas maçãs podres, o sistema vai voltar a funcionar normalmente. Não há nada de errado com o capitalismo, apenas com alguns indivíduos problemáticos.

O herói da história é um negro, assim como o atual presidente estadunidense é negro. O herói cometeu um erro no passado, assim como o governo estadunidense (que praticou torturas, prisões ilegais, morte de civis inocentes, entre outros crimes de guerra.) cometeu. O combate ao vilão redime o herói de seus crimes, assim como Obama acoberta os crimes dos seus antecessores. O prefeito é um político tradicional, demagogo, mulherengo, etc., que não está concorrendo à reeleição, assim como os republicanos conservadores cederam o bastão a Obama e se retiraram para os bastidores, para voltar quando o serviço sujo de administrar a crise tiver sido feito. Um encobre os crimes do outro, uma mão lava a outra, e estamos conversados. O mocinho do filme pode voltar para casa feliz, como se nada tivesse acontecido.

O resumo da ópera é que o Estado salvou o capitalismo. Um conto de fadas para quem acredita num mundo de mocinhos e bandidos “made in Hollywood”. No mundo real, é preciso mais do que marketing e demagogia estatista. A crise continua, o capital fictício foi estocado nos cofres públicos, o Estado socializou os prejuízos das falcatruas privadas, trabalhadores perderam seus empregos, suas casas, seus salários e seus direitos, as guerras continuam no Oriente Médio, golpes de Estado na América Central, bases militares na Colômbia e a IV Frota estadunidense de olho no nosso pré-sal, e Lula, em conluio com Sarney e outros caciques, está loteando o pré-sal para as transnacionais, garantindo uma fatia para que a burocracia petista possa continuar anestesiando as massas com bolsa-esmola, e assim eleger Dilma.

O show vai continuar, enquanto não dermos fim ao seqüestro das consciências.

Daniel M. Delfino
Setembro 2009


A crise continua, e a luta também!



As fases da crise

Conforme temos afirmado nos últimos meses, a crise mundial, que caracterizamos como uma verdadeira crise societal global por conta das suas múltiplas dimensões, segue se desenvolvendo. Ao contrário de haver se resolvido, como diz unanimemente a imprensa burguesa e a propaganda estatal, ela apenas mudou de fase. Compreender exatamente o que está se passando na economia mundial e nacional, em que momento estamos do processo da crise, é fundamental para entendermos o tipo de desafios que estão colocados para a classe trabalhadora.

No atual momento histórico de crise estrutural (iniciada na década de 1970), a contradição fundamental do capitalismo, a superprodução de mercadorias, não pode se desdobrar na forma de uma crise aberta como a de 1929, que precipitou o mundo na Grande Depressão e na II Guerra Mundial. A destruição de capital ao estilo clássico não é mais aceitável. Assim, a crise estrutural se manifesta de outras formas, como a financeirização, o endividamento, a mundialização, a formação de um mercado mundial de força de trabalho e de um exército industrial de reserva em escala mundial. Esses expedientes de que o capital se utilizou para administrar sua crise estrutural exigiram medidas políticas (neoliberalismo) e ideológicas (“fim da história”, “morte do socialismo”, pós-modernismo, etc.) capazes de redefinir o papel de cada economia nacional e impedir a resistência da classe trabalhadora.

Esses processos diluem o impacto das crises cíclicas, ao mesmo tempo em que precipitam uma crise cada vez mais séria para o futuro. A financeirização chegou a um ponto em que os títulos negociados nos mercados financeiros alcançam um valor total mais de dez vezes maior que o do PIB mundial, que é de cerca de US$ 50 trilhões. O grau de artificialidade e irracionalidade desse mecanismo ultrapassou o limite e a aberração começou a vir a tona na atual crise. A crise financeira iniciada com a inadimplência das hipotecas estadunidenses em 2007 e tornada global no final de 2008 é apenas a ponta de um iceberg. A paralisação do mercado financeiro provocou uma paralisação do crédito, que provocou uma reação em cadeia na economia, resultando em diminuição do consumo, do comércio, da produção, e aumento explosivo do desemprego.

O papel do Estado e das economias periféricas

A coincidência da eclosão da crise econômica com a irrupção de uma série de problemas mais ou menos crônicos nas esferas energética, ambiental, alimentar, política, militar, cultural, etc., explicitando a crise societal global, acendeu o sinal de alerta dos gestores do sistema, pois permitiu que se vislumbrasse de um relance toda a irracionalidade do capitalismo e a necessidade da superação desse sistema. Antes que isso se tornasse claro na consciência dos trabalhadores, a burguesia reagiu e usou o Estado, comitê gestor dos seus negócios, para apagar o incêndio. Governos do mundo inteiro, a começar por Obama (um providencial messias sob encomenda da burguesia), lançaram pacotes de ajuda de trilhões de dólares de ajuda ao mercado financeiro e ao grande capital para que a economia pudesse continuar respirando.

Esses pacotes representam apenas uma fração ínfima da montanha de US$ 500 trilhões em capital fictício ainda em circulação (ou seja, estão longe de poder resolver um problema na verdade insolúvel), mas já representam um custo insustentável para o orçamento público de qualquer país, mesmo os Estados Unidos. O déficit público estadunidense em 2009 está estimado em US$ 1,8 trilhão, o que equivale a 13% do PIB. Essa porcentagem é duas vezes maior que o déficit recorde anterior em tempos de paz (números do Boletim Crítica Semanal, agosto de 2009). Para cobrir esse déficit, o governo estadunidense precisa absorver dinheiro do mundo inteiro, o que faz emitindo títulos de dívida pública, que são comprados principalmente pelos países que exportam para os Estados Unidos (China, Japão, tigres asiáticos, Brasil, etc.).

Entretanto, para continuar comprando esses títulos, esses países precisam continuar acumulando reservas, que se formam com o saldo das exportações que fazem para os próprios Estados Unidos. Ou seja, precisam que os consumidores estadunidenses continuem importando. Os pacotes de ajuda do governo podem reaquecer o crédito e o consumo na principal economia do planeta, mas isso não se dará de forma imediata. O governo estadunidense precisará continuar se endividando para estimular o consumo, alimentando um círculo vicioso. Há estimativas de que esse endividamento venha a dobrar nos próximos 10 anos. Esse processo pode levar a que os compradores dos títulos do governo estadunidense deixem de acreditar no valor desses ativos, o que significaria o fim do dólar como reserva de valor. Sinais desse processo já se manifestam na desvalorização do dólar em face das outras moedas (como o euro e o próprio real) e especialmente em relação ao ouro.

Para além das dificuldades estruturais descritas acima, que impedem uma retomada sustentada do consumo e da produção, a possibilidade de colapso do dólar é a verdadeira ameaça que paira sobre a economia capitalista, por trás da aparente estabilização verificada nos últimos meses. Se a curto prazo é improvável uma descambada para a depressão global, também é improvável uma retomada imediata do crescimento, por mais que as bolsas de valores e mercados financeiros em geral, narcotizados pelo “dinheiro fácil” do Estado, estejam em alta nos últimos meses, sonhando com a volta de um ciclo especulativo aos moldes do que se encerrou com a atual crise. A atual fase de incerteza deve se prolongar pelos próximos anos, com picos alternados de aceleração e desaceleração, conforme as tendências estruturais da crise se expressem politicamente na luta de classes, que afinal de contas determina quem suporta o impacto da crise e quem dirige a sua superação.

As conseqüências para os trabalhadores

A retomada do crescimento da economia capitalista depende de que os Estados Unidos continuem consumindo manufaturas do mundo inteiro. Mas há uma classe social que não vai poder ajudar na retomada do consumo nos Estados Unidos (e na Europa e Japão), que é exatamente o proletariado. No processo da crise, as empresas realizaram demissões em massa, a tal ponto que a taxa de desemprego chegou a níveis próximos de 10 % nas maiores economias do mundo (Estados Unidos, Europa e Japão). Por conta dos cortes de salários e de direitos, os trabalhadores que permanecerem empregados também terão que reduzir seu consumo. Além disso, terão que trabalhar mais, pois a burguesia se aproveita dos momentos de crise para realizar ajustes estruturais, impondo um ritmo de trabalho mais acelerado. A intensificação do trabalho (mais-valia absoluta) e o aumento da produtividade (mais-valia relativa), por meio da inovação tecnológica, são duas das formas clássicas de superação das crises periódicas do capitalismo.

De fato, o sistema pode continuar funcionando sem que os trabalhadores aumentem o seu consumo (ou mesmo que dimunuam), pois existem outras formas improdutivas de absorver a superprodução crescente de mercadorias, tais como o consumo de luxo da burguesia e o consumo de armas pelo Estado em suas guerras. O problema dessas duas soluções é que elas aprofundam os contrastes sociais, tornando mais nítida a divisão de classe. Na realidade, o capital precisa nivelar por baixo as condições de vida do proletariado mundial, impondo aos trabalhadores dos países desenvolvidos o mesmo padrão de superexploração hoje já vigente na China e sudeste asiático. O aumento do desemprego e a queda generalizada nas condições de vida da classe trabalhadora, ou seja, o aumento da miséria, levará aos países imperialistas problemas típicos dos países periféricos. A crise das hipotecas já provocou o aparecimento de milhões de sem-teto nos Estados Unidos. Resta saber o quanto os trabalhadores estadunidenses, europeus e japoneses suportarão de retrocesso sem lutar. Já aconteceram lutas importantes este ano, em especial na Europa, demonstrando que não será tão fácil impor esse nivelamento.

Os países periféricos e o Brasil

Quanto aos países periféricos, o Estado precisou compensar a queda das exportações, em particular daquelas destinadas aos Estados Unidos, por meio de medidas de incentivo ao mercado interno. Países como o Brasil não tiveram que arcar com o custo dos pacotes de ajuda para resgatar o capital fictício, pois seus sistemas financeiros subdesenvolvidos estavam menos comprometidos com a especulação desenfreada. Assim, o Estado pôde investir diretamente na reativação da economia. O Estado brasileiro cumpriu o seu papel de muleta do capital, entregando muito dinheiro aos bancos e grandes empresas, por meio de medidas de facilitação do crédito:

“Um ano depois do agravamento da crise financeira internacional, as medidas anticíclicas adotadas pelo governo brasileiro somam R$ 483 bilhões, o que, na visão de economistas, mostrou-se 'suficiente' para blindar a economia nacional de um impacto maior. Desse total, R$ 15 bilhões sairão diretamente do caixa do governo, por meio da redução de impostos. Outros R$ 6 bilhões de gastos para construção de casas também estão previstos no orçamento deste ano. A maior parte das medidas, no entanto, não teve impacto fiscal. Cerca de R$ 289 bilhões foram colocados à disposição do mercado pelo Banco Central (BC), principalmente pela redução do compulsório bancário - dinheiro que pertence às instituições financeiras que fica retido pelo BC.”(BBC Brasil, 15 de setembro de 2009).

Apesar do foco dos gastos ter sido diferente, os resultados no nível de endividamento do Estado foram semelhantes aos dos países centrais: “O déficit nominal do setor público consolidado mais do que dobrou para 3,3% do Produto Interno Bruto (PIB) em 12 meses até julho, ante 1,3% em setembro do ano passado. Em parte pelas medidas agressivas de gastos e corte de impostos, a dívida líquida do setor público subiu para 44,2% do PIB em agosto, frente a 36% no final do ano passado.”(Agência Brasil, 15 de setembro de 2009).

A estratégia do governo Lula

A burguesia brasileira reagiu de modo exagerado logo no início da crise, na virada de 2008 para 2009, quando houve cerca de 1,5 milhão de demissões. Além disso, aproveitando-se do pânico gerado pela gravidade da crise, a burguesia praticamente encostou o governo contra a parede, exigindo a liberação de crédito mais fácil e incentivos fiscais para tocar seus negócios e manter a taxa de lucro. Assim como nos países imperialistas, a intervenção do Estado brasileiro produziu resultados, pois houve um aumento expressivo das vendas de automóveis, eletrodomésticos e materiais de construção ao longo do 2º e 3º trimestres do ano. Isso se refletiu nas estatísticas, com o recuo dos índices de desemprego e um aumento do nível de atividade (produção e comércio), freando a queda do PIB. Entretanto, tomando-se os índices de 2008 como base para comparação, a suposta recuperação em curso ainda não colocou a economia de volta ao mesmo patamar anterior ao da crise. Mesmo assim, esses resultados parciais são aproveitados pela propaganda governista para alimentar o discurso ufanista de que “o Brasil venceu a crise”.

As notícias sobre essa recuperação fictícia nos últimos meses dividiram espaço com a chamada crise política no Senado. Foram revelados atos de corrupção praticados pelo presidente da casa e ex-presidente da República José Sarney, um dos principais caciques do PMDB, partido da base de apoio do governo Lula. Isso deu munição para a oposição de direita do PSDB e do DEM atacar o governo Lula, tentando desgastar sua popularidade. Para não perder o apoio do PMDB, crucial para as eleições de 2010, Lula interveio e abafou as investigações sobre a corrupção no Senado. Isso serviu para evidenciar a profundidade do acordo entre Lula e o PMDB, que representa parte dos setores mais reacionários da burguesia brasileira, como as oligarquias do Norte e Nordeste.

Para não ficar na defensiva, o governo Lula anunciou o projeto de exploração das reservas de petróleo do pré-sal, vendido para a opinião pública como uma vitória do modelo estatal e da soberania nacional. Na verdade, trata-se de uma forma de continuar entregando o petróleo ao capital internacional (acionistas privados, inclusive alguns estrangeiros, são maioria na própria Petrobrás), mas de modo que a burocracia do Estado consiga reservar sua parte. Essa fatia sob controle do Estado será fundamental para o financiamento dos programas assistenciais que amarram a base eleitoral do atual governo e seus aliados. O governo já lançou um projeto de lei regulamentando a exploração do pré-sal o qual prevê que a fatia dos royalties (que chegaram a um total de R$ 23 bilhões em 2008) a ser distribuída para os estados não-produtores de petróleo passaria dos atuais 0,86% para 4% (Agência Brasil, 15 de setembro de 2009).

A (suposta) superação da crise e a exploração do pré-sal serão o carro-chefe da campanha eleitoral da ministra Dilma Roussef, candidata de Lula e seu bloco de apoio, enquanto que as denúncias de corrupção contra o atual governo serão um dos motes da oposição de direita.

A classe trabalhadora entra em luta

A estratégia da burocracia lulista depende da não ocorrência de novos abalos na economia mundial, que poderiam vir na forma de uma crise do crédito público e da moeda, precipitada pelo endividamento explosivo de praticamente todos os principais Estados. Também depende da habilidade do governo em propagandear as promessas de riqueza do pré-sal, já que o início da produção de petróleo proveniente dessa região ainda demorará anos para ocorrer. Será preciso ainda cooptar a burocracia estatal dos partidos políticos (como o PMDB) e do próprio aparato das instituições (tecnocracia), que também exigirá sua parte no bolo para apoiar o atual bloco no governo.

Por último, será preciso manter a classe trabalhadora sob controle, papel que tem sido desempenhado pela burocracia sindical que comanda a CUT (e demais centrais satélites como FS, CTB, UGT, NCST, CGTB, etc.) e pelas lideranças burocratizadas de outros importantes organismos de luta da classe, como MST, UNE, pastorais sociais, etc. O controle petista sobre esses organismos tem sido fundamental ao longo do governo Lula para evitar que a classe trabalhadora entrasse em luta com todo seu peso nos últimos anos. Além de controlar o setor mais organizado da classe e cooptar o setor mais pauperizado por meio do assistencialismo, tem havido um endurecimento generalizado da repressão. Atestam esse endurecimento o tratamento dado à greve da USP no primeiro semestre e o aumento da repressão policial, verificada em episódios como o assassinato de trabalhadores sem-terra e os conflitos recentes nas favelas de Paraisópolis e Heliópolis.

Entretanto, conforme havíamos apontado em nosso jornal anterior, que indicava a possibilidade de uma retomada das lutas no segundo semestre por ocasião das campanhas salariais, a classe trabalhadora brasileira está reagindo. Na terceira semana de setembro os metalúrgicos das montadoras e auto-peças, setor estratégico concentrado no Sudeste, e os trabalhadores dos correios, categoria com mais de 100 mil integrantes no país, entraram em greve. Na semana seguinte, será a vez dos bancários, outra categoria com peso nacional. Ainda resta a campanha salarial dos petroleiros, setor que está no centro das atenções por conta da importância que o pré-sal assumiu na conjuntura.

Essas greves são determinadas por dois aspectos relacionados à crise. Em primeiro lugar, o aumento do grau de exploração, por conta dos ajustes estruturais realizados pela patronal. Tanto as demissões quanto a intensificação do trabalho impõem uma sobrecarga aos trabalhadores que ficaram nas empresas. Em segundo lugar, a retomada da taxa de lucro das empresas e a propaganda maciça do fim da crise faz com que os trabalhadores sintam que podem reivindicar a sua parte na produção de riqueza.

No atual momento as greves tem limites importantes, como o fato de serem obrigadas a lutar contra as direções da CUT e satélites, além da própria patronal e do governo. E também o fato de que o nível de consciência dos trabalhadores ainda não alcança uma compreensão abragente da situação, uma visão da crise do capitalismo no Brasil e no mundo. A tarefa dos militantes classistas é participar e apoiar todas as lutas que surgirem, fortalecendo as alternativas anti-burocráticas de organização, ajudando os trabalhadores a perceber que é possível lutar, e que é necessário lutar, e também apontando uma perspectiva ideológica oposta à da burguesia e do Estado. Cabe à nossa classe se organizar para construir uma alternativa societária ao capitalismo e suas crises, sua miséria, guerras e barbárie, uma alternativa socialista.