As fases da crise
Conforme temos afirmado nos últimos meses, a crise mundial, que caracterizamos como uma verdadeira crise societal global por conta das suas múltiplas dimensões, segue se desenvolvendo. Ao contrário de haver se resolvido, como diz unanimemente a imprensa burguesa e a propaganda estatal, ela apenas mudou de fase. Compreender exatamente o que está se passando na economia mundial e nacional, em que momento estamos do processo da crise, é fundamental para entendermos o tipo de desafios que estão colocados para a classe trabalhadora.
No atual momento histórico de crise estrutural (iniciada na década de 1970), a contradição fundamental do capitalismo, a superprodução de mercadorias, não pode se desdobrar na forma de uma crise aberta como a de 1929, que precipitou o mundo na Grande Depressão e na II Guerra Mundial. A destruição de capital ao estilo clássico não é mais aceitável. Assim, a crise estrutural se manifesta de outras formas, como a financeirização, o endividamento, a mundialização, a formação de um mercado mundial de força de trabalho e de um exército industrial de reserva em escala mundial. Esses expedientes de que o capital se utilizou para administrar sua crise estrutural exigiram medidas políticas (neoliberalismo) e ideológicas (“fim da história”, “morte do socialismo”, pós-modernismo, etc.) capazes de redefinir o papel de cada economia nacional e impedir a resistência da classe trabalhadora.
Esses processos diluem o impacto das crises cíclicas, ao mesmo tempo em que precipitam uma crise cada vez mais séria para o futuro. A financeirização chegou a um ponto em que os títulos negociados nos mercados financeiros alcançam um valor total mais de dez vezes maior que o do PIB mundial, que é de cerca de US$ 50 trilhões. O grau de artificialidade e irracionalidade desse mecanismo ultrapassou o limite e a aberração começou a vir a tona na atual crise. A crise financeira iniciada com a inadimplência das hipotecas estadunidenses em 2007 e tornada global no final de 2008 é apenas a ponta de um iceberg. A paralisação do mercado financeiro provocou uma paralisação do crédito, que provocou uma reação em cadeia na economia, resultando em diminuição do consumo, do comércio, da produção, e aumento explosivo do desemprego.
O papel do Estado e das economias periféricas
A coincidência da eclosão da crise econômica com a irrupção de uma série de problemas mais ou menos crônicos nas esferas energética, ambiental, alimentar, política, militar, cultural, etc., explicitando a crise societal global, acendeu o sinal de alerta dos gestores do sistema, pois permitiu que se vislumbrasse de um relance toda a irracionalidade do capitalismo e a necessidade da superação desse sistema. Antes que isso se tornasse claro na consciência dos trabalhadores, a burguesia reagiu e usou o Estado, comitê gestor dos seus negócios, para apagar o incêndio. Governos do mundo inteiro, a começar por Obama (um providencial messias sob encomenda da burguesia), lançaram pacotes de ajuda de trilhões de dólares de ajuda ao mercado financeiro e ao grande capital para que a economia pudesse continuar respirando.
Esses pacotes representam apenas uma fração ínfima da montanha de US$ 500 trilhões em capital fictício ainda em circulação (ou seja, estão longe de poder resolver um problema na verdade insolúvel), mas já representam um custo insustentável para o orçamento público de qualquer país, mesmo os Estados Unidos. O déficit público estadunidense em 2009 está estimado em US$ 1,8 trilhão, o que equivale a 13% do PIB. Essa porcentagem é duas vezes maior que o déficit recorde anterior em tempos de paz (números do Boletim Crítica Semanal, agosto de 2009). Para cobrir esse déficit, o governo estadunidense precisa absorver dinheiro do mundo inteiro, o que faz emitindo títulos de dívida pública, que são comprados principalmente pelos países que exportam para os Estados Unidos (China, Japão, tigres asiáticos, Brasil, etc.).
Entretanto, para continuar comprando esses títulos, esses países precisam continuar acumulando reservas, que se formam com o saldo das exportações que fazem para os próprios Estados Unidos. Ou seja, precisam que os consumidores estadunidenses continuem importando. Os pacotes de ajuda do governo podem reaquecer o crédito e o consumo na principal economia do planeta, mas isso não se dará de forma imediata. O governo estadunidense precisará continuar se endividando para estimular o consumo, alimentando um círculo vicioso. Há estimativas de que esse endividamento venha a dobrar nos próximos 10 anos. Esse processo pode levar a que os compradores dos títulos do governo estadunidense deixem de acreditar no valor desses ativos, o que significaria o fim do dólar como reserva de valor. Sinais desse processo já se manifestam na desvalorização do dólar em face das outras moedas (como o euro e o próprio real) e especialmente em relação ao ouro.
Para além das dificuldades estruturais descritas acima, que impedem uma retomada sustentada do consumo e da produção, a possibilidade de colapso do dólar é a verdadeira ameaça que paira sobre a economia capitalista, por trás da aparente estabilização verificada nos últimos meses. Se a curto prazo é improvável uma descambada para a depressão global, também é improvável uma retomada imediata do crescimento, por mais que as bolsas de valores e mercados financeiros em geral, narcotizados pelo “dinheiro fácil” do Estado, estejam em alta nos últimos meses, sonhando com a volta de um ciclo especulativo aos moldes do que se encerrou com a atual crise. A atual fase de incerteza deve se prolongar pelos próximos anos, com picos alternados de aceleração e desaceleração, conforme as tendências estruturais da crise se expressem politicamente na luta de classes, que afinal de contas determina quem suporta o impacto da crise e quem dirige a sua superação.
As conseqüências para os trabalhadores
A retomada do crescimento da economia capitalista depende de que os Estados Unidos continuem consumindo manufaturas do mundo inteiro. Mas há uma classe social que não vai poder ajudar na retomada do consumo nos Estados Unidos (e na Europa e Japão), que é exatamente o proletariado. No processo da crise, as empresas realizaram demissões em massa, a tal ponto que a taxa de desemprego chegou a níveis próximos de 10 % nas maiores economias do mundo (Estados Unidos, Europa e Japão). Por conta dos cortes de salários e de direitos, os trabalhadores que permanecerem empregados também terão que reduzir seu consumo. Além disso, terão que trabalhar mais, pois a burguesia se aproveita dos momentos de crise para realizar ajustes estruturais, impondo um ritmo de trabalho mais acelerado. A intensificação do trabalho (mais-valia absoluta) e o aumento da produtividade (mais-valia relativa), por meio da inovação tecnológica, são duas das formas clássicas de superação das crises periódicas do capitalismo.
De fato, o sistema pode continuar funcionando sem que os trabalhadores aumentem o seu consumo (ou mesmo que dimunuam), pois existem outras formas improdutivas de absorver a superprodução crescente de mercadorias, tais como o consumo de luxo da burguesia e o consumo de armas pelo Estado em suas guerras. O problema dessas duas soluções é que elas aprofundam os contrastes sociais, tornando mais nítida a divisão de classe. Na realidade, o capital precisa nivelar por baixo as condições de vida do proletariado mundial, impondo aos trabalhadores dos países desenvolvidos o mesmo padrão de superexploração hoje já vigente na China e sudeste asiático. O aumento do desemprego e a queda generalizada nas condições de vida da classe trabalhadora, ou seja, o aumento da miséria, levará aos países imperialistas problemas típicos dos países periféricos. A crise das hipotecas já provocou o aparecimento de milhões de sem-teto nos Estados Unidos. Resta saber o quanto os trabalhadores estadunidenses, europeus e japoneses suportarão de retrocesso sem lutar. Já aconteceram lutas importantes este ano, em especial na Europa, demonstrando que não será tão fácil impor esse nivelamento.
Os países periféricos e o Brasil
Quanto aos países periféricos, o Estado precisou compensar a queda das exportações, em particular daquelas destinadas aos Estados Unidos, por meio de medidas de incentivo ao mercado interno. Países como o Brasil não tiveram que arcar com o custo dos pacotes de ajuda para resgatar o capital fictício, pois seus sistemas financeiros subdesenvolvidos estavam menos comprometidos com a especulação desenfreada. Assim, o Estado pôde investir diretamente na reativação da economia. O Estado brasileiro cumpriu o seu papel de muleta do capital, entregando muito dinheiro aos bancos e grandes empresas, por meio de medidas de facilitação do crédito:
“Um ano depois do agravamento da crise financeira internacional, as medidas anticíclicas adotadas pelo governo brasileiro somam R$ 483 bilhões, o que, na visão de economistas, mostrou-se 'suficiente' para blindar a economia nacional de um impacto maior. Desse total, R$ 15 bilhões sairão diretamente do caixa do governo, por meio da redução de impostos. Outros R$ 6 bilhões de gastos para construção de casas também estão previstos no orçamento deste ano. A maior parte das medidas, no entanto, não teve impacto fiscal. Cerca de R$ 289 bilhões foram colocados à disposição do mercado pelo Banco Central (BC), principalmente pela redução do compulsório bancário - dinheiro que pertence às instituições financeiras que fica retido pelo BC.”(BBC Brasil, 15 de setembro de 2009).
Apesar do foco dos gastos ter sido diferente, os resultados no nível de endividamento do Estado foram semelhantes aos dos países centrais: “O déficit nominal do setor público consolidado mais do que dobrou para 3,3% do Produto Interno Bruto (PIB) em 12 meses até julho, ante 1,3% em setembro do ano passado. Em parte pelas medidas agressivas de gastos e corte de impostos, a dívida líquida do setor público subiu para 44,2% do PIB em agosto, frente a 36% no final do ano passado.”(Agência Brasil, 15 de setembro de 2009).
A estratégia do governo Lula
A burguesia brasileira reagiu de modo exagerado logo no início da crise, na virada de 2008 para 2009, quando houve cerca de 1,5 milhão de demissões. Além disso, aproveitando-se do pânico gerado pela gravidade da crise, a burguesia praticamente encostou o governo contra a parede, exigindo a liberação de crédito mais fácil e incentivos fiscais para tocar seus negócios e manter a taxa de lucro. Assim como nos países imperialistas, a intervenção do Estado brasileiro produziu resultados, pois houve um aumento expressivo das vendas de automóveis, eletrodomésticos e materiais de construção ao longo do 2º e 3º trimestres do ano. Isso se refletiu nas estatísticas, com o recuo dos índices de desemprego e um aumento do nível de atividade (produção e comércio), freando a queda do PIB. Entretanto, tomando-se os índices de 2008 como base para comparação, a suposta recuperação em curso ainda não colocou a economia de volta ao mesmo patamar anterior ao da crise. Mesmo assim, esses resultados parciais são aproveitados pela propaganda governista para alimentar o discurso ufanista de que “o Brasil venceu a crise”.
As notícias sobre essa recuperação fictícia nos últimos meses dividiram espaço com a chamada crise política no Senado. Foram revelados atos de corrupção praticados pelo presidente da casa e ex-presidente da República José Sarney, um dos principais caciques do PMDB, partido da base de apoio do governo Lula. Isso deu munição para a oposição de direita do PSDB e do DEM atacar o governo Lula, tentando desgastar sua popularidade. Para não perder o apoio do PMDB, crucial para as eleições de 2010, Lula interveio e abafou as investigações sobre a corrupção no Senado. Isso serviu para evidenciar a profundidade do acordo entre Lula e o PMDB, que representa parte dos setores mais reacionários da burguesia brasileira, como as oligarquias do Norte e Nordeste.
Para não ficar na defensiva, o governo Lula anunciou o projeto de exploração das reservas de petróleo do pré-sal, vendido para a opinião pública como uma vitória do modelo estatal e da soberania nacional. Na verdade, trata-se de uma forma de continuar entregando o petróleo ao capital internacional (acionistas privados, inclusive alguns estrangeiros, são maioria na própria Petrobrás), mas de modo que a burocracia do Estado consiga reservar sua parte. Essa fatia sob controle do Estado será fundamental para o financiamento dos programas assistenciais que amarram a base eleitoral do atual governo e seus aliados. O governo já lançou um projeto de lei regulamentando a exploração do pré-sal o qual prevê que a fatia dos royalties (que chegaram a um total de R$ 23 bilhões em 2008) a ser distribuída para os estados não-produtores de petróleo passaria dos atuais 0,86% para 4% (Agência Brasil, 15 de setembro de 2009).
A (suposta) superação da crise e a exploração do pré-sal serão o carro-chefe da campanha eleitoral da ministra Dilma Roussef, candidata de Lula e seu bloco de apoio, enquanto que as denúncias de corrupção contra o atual governo serão um dos motes da oposição de direita.
A classe trabalhadora entra em luta
A estratégia da burocracia lulista depende da não ocorrência de novos abalos na economia mundial, que poderiam vir na forma de uma crise do crédito público e da moeda, precipitada pelo endividamento explosivo de praticamente todos os principais Estados. Também depende da habilidade do governo em propagandear as promessas de riqueza do pré-sal, já que o início da produção de petróleo proveniente dessa região ainda demorará anos para ocorrer. Será preciso ainda cooptar a burocracia estatal dos partidos políticos (como o PMDB) e do próprio aparato das instituições (tecnocracia), que também exigirá sua parte no bolo para apoiar o atual bloco no governo.
Por último, será preciso manter a classe trabalhadora sob controle, papel que tem sido desempenhado pela burocracia sindical que comanda a CUT (e demais centrais satélites como FS, CTB, UGT, NCST, CGTB, etc.) e pelas lideranças burocratizadas de outros importantes organismos de luta da classe, como MST, UNE, pastorais sociais, etc. O controle petista sobre esses organismos tem sido fundamental ao longo do governo Lula para evitar que a classe trabalhadora entrasse em luta com todo seu peso nos últimos anos. Além de controlar o setor mais organizado da classe e cooptar o setor mais pauperizado por meio do assistencialismo, tem havido um endurecimento generalizado da repressão. Atestam esse endurecimento o tratamento dado à greve da USP no primeiro semestre e o aumento da repressão policial, verificada em episódios como o assassinato de trabalhadores sem-terra e os conflitos recentes nas favelas de Paraisópolis e Heliópolis.
Entretanto, conforme havíamos apontado em nosso jornal anterior, que indicava a possibilidade de uma retomada das lutas no segundo semestre por ocasião das campanhas salariais, a classe trabalhadora brasileira está reagindo. Na terceira semana de setembro os metalúrgicos das montadoras e auto-peças, setor estratégico concentrado no Sudeste, e os trabalhadores dos correios, categoria com mais de 100 mil integrantes no país, entraram em greve. Na semana seguinte, será a vez dos bancários, outra categoria com peso nacional. Ainda resta a campanha salarial dos petroleiros, setor que está no centro das atenções por conta da importância que o pré-sal assumiu na conjuntura.
Essas greves são determinadas por dois aspectos relacionados à crise. Em primeiro lugar, o aumento do grau de exploração, por conta dos ajustes estruturais realizados pela patronal. Tanto as demissões quanto a intensificação do trabalho impõem uma sobrecarga aos trabalhadores que ficaram nas empresas. Em segundo lugar, a retomada da taxa de lucro das empresas e a propaganda maciça do fim da crise faz com que os trabalhadores sintam que podem reivindicar a sua parte na produção de riqueza.
No atual momento as greves tem limites importantes, como o fato de serem obrigadas a lutar contra as direções da CUT e satélites, além da própria patronal e do governo. E também o fato de que o nível de consciência dos trabalhadores ainda não alcança uma compreensão abragente da situação, uma visão da crise do capitalismo no Brasil e no mundo. A tarefa dos militantes classistas é participar e apoiar todas as lutas que surgirem, fortalecendo as alternativas anti-burocráticas de organização, ajudando os trabalhadores a perceber que é possível lutar, e que é necessário lutar, e também apontando uma perspectiva ideológica oposta à da burguesia e do Estado. Cabe à nossa classe se organizar para construir uma alternativa societária ao capitalismo e suas crises, sua miséria, guerras e barbárie, uma alternativa socialista.
Nenhum comentário:
Postar um comentário