26.10.07

Em defesa da Revolução Russa: algumas conclusões teórico-políticas

Apresentação

No mundo em que vivemos o estudo da História está interditado por uma proibição de tipo absoluto. Uma vez que a ideologia dominante decretou o “Fim da História”, tanto o futuro quanto o passado tornaram-se opacos, inacessíveis, incompreensíveis. E simultaneamente, o presente está eternizado. Se “a História acabou”, todo o passado não serviu senão para nos trazer ao mundo tal qual ele é hoje no presente. E se o mundo já é hoje “exatamente como deveria ser”, todo o futuro não será mais do que uma repetição “ad eternum” desse mesmo mundo presente. De modo que, para recusar o mundo atual, e lutar por sua transformação, é preciso romper com essa lógica que nos condena a um tempo presente eternizado. É preciso resgatar o tempo histórico, restituindo-lhe as dimensões concretas do passado, do presente e do futuro.

Desenvolver uma narrativa histórica concreta, que respeite a especificidade do tempo histórico em suas três dimensões, pressupõe uma síntese totalizadora que articule o passado ao presente e ao futuro, o que exige o emprego da racionalidade dialética. O estudo do passado abre as portas para a crítica do presente e a transformação do futuro. O passado guarda a memória da luta de classes, das experiências em que a humanidade lutou contra a condição desumana do trabalho alienado e a divisão social do trabalho. A ideologia dominante, naturalmente, precisa varrer essas experiências de luta para debaixo do tapete, fazendo com que sejam esquecidas e mistificadas, de modo que não se pense jamais em repetí-las. Para aqueles que lutam pela transformação do presente, ao contrário, o passado da luta de classes é um rico tesouro repleto de ensinamentos sobre os acertos a serem repetidos e os erros a serem contornados.

Há exatamente 90 anos a humanidade viveu uma dessas experiências de transformação social radical, cujas vicissitudes, apesar de tudo o que diz a ideologia dominante, ainda marcam o nosso presente. A Revolução Russa de outubro de 1917 inaugurou uma época histórica caracterizada pela luta para destruir o capitalismo, a última das sociedades de classe, e construir o socialismo. A tentativa de transição ao socialismo aberta pela Revolução Russa dominou todo o século XX. O melancólico final dessa experiência nos anos de 1989-91 foi justamente o que serviu de pretexto para que a ideologia burguesa decretasse o “Fim da História”. Seu alvo explícito era declarar o fim do socialismo e a perenidade do capitalismo, em conformidade com os ditames eternos da “natureza humana”.

O início do século XXI mostrou porém que a roda da História continua girando, que o capitalismo não se livrou de suas crises, que suas catástrofes sociais e ambientais continuam ameaçando a própria sobrevivência da humanidade e que a sua substituição por uma ordem socialista é uma questão da mais dramática urgência. É mais do que oportuno portanto aproveitar os 90 anos da Revolução Russa para aprender sobre os percalços da transformação social a partir da mais importante experiência realizada até hoje na tentativa de uma transição ao socialismo.

A Revolução e a formação da URSS

De saída, o primeiro ensinamento a ser tirado desse estudo diz respeito à relação entre o projeto dos revolucionários de 1917 e a entidade que veio a se constituir de fato como resultado da luta revolucionária: a URSS. A União Soviética foi durante todo o século XX o “modelo” de socialismo em relação ao qual todos os socialistas tiveram que se posicionar, com maior ou menor margem de distanciamento crítico, sendo que na verdade os revolucionários que a construíram não tinham como projeto servir de modelo para ninguém. Os revolucionários russos, ou seja, o partido bolchevique, eram uma das alas da esquerda socialista internacional, cuja luta objetivava a realização da revolução socialista nos países mais avançados, como Alemanha, França e Inglaterra. A partir das condições econômicas, técnicas e culturais superiores desses países, o socialismo teria condições de se construir como alternativa sociometabólica em escala mundial.

Os revolucionários do início do século XX pensavam o socialismo como um projeto internacionalista e mundial, a ser impulsionado pelos países mais avançados. Jamais a partir da devastada e atrasada Rússia. E no entanto, foi justamente na Rússia que a revolução foi vitoriosa. Esse fato determinou as características da luta pelo socialismo durante todo o século. O retrocesso da revolução européia provocou o isolamento da Rússia revolucionária. E o isolamento da Rússia trouxe a necessidade de defendê-la ideologicamente como cabeça-de ponte avançada da revolução proletária, contra a maciça propaganda difamatória da burguesia.

A necessidade de defender a Revolução Russa acabou trazendo de contrabando a defesa de certas características do regime pós-revolucionário derivadas justamente do atraso russo. O vício foi transformado em virtude, especialmente depois da ascensão da camada burocrática contra-revolucionária stalinista.

Quais eram essas características do atraso russo? A mais importante era o fato de que o proletariado russo era minoritário em relação à população camponesa. Essa minoria proletária teve forças suficientes para produzir uma vanguarda revolucionária capaz de tomar o poder. Entretanto, nas gravíssimas circunstâncias da guerra civil que se seguiu à tomada do poder, essa vanguarda foi dizimada. Restou então ao partido bolchevique a paradoxal tarefa de liderar a transição a uma ordem social mais avançada a partir de um elemento social atrasado, ou seja, a partir do campesinato e de um novo proletariado industrial, inexperiente, que seria recrutado sobre a base desse campesinato.

Ao longo dos anos 1920, para fazer frente a esse atraso, para reconstruir o país, para fazer com que as pessoas trabalhassem, com que a economia fosse capaz de alimentar a população e produzir os bens indispensáveis à sobrevivência, o partido bolchevique se viu forçado a administrar a sociedade com os instrumentos da guerra civil revolucionária. Consolidaram-se a ditadura do partido único, a polícia política (Tcheka / GPU / NKVD / KGB) e a censura. Essas características excepcionais da experiência russa foram convertidas em características por excelência do movimento socialista internacional, a partir da formação dos novos Partidos Comunistas (PCs), que não eram somente inspirados pela Revolução Russa, mas diretamente dirigidos pela III Internacional liderada pelos bolcheviques.

Características da época imperialista

Estabelecemos até aqui que o socialismo é um projeto internacional e que só pode ser viabilizado a partir da transformação dos países mais avançados; que a vitória solitária da revolução na Rússia foi uma espécie de “acidente” no contexto da luta socialista; que não havia condições (sociais, econômicas, culturais, tecnológicas, etc.) para que a Rússia liderasse uma transição ao socialismo; e que as características que definiriam o regime pós-revolucionário na Rússia (partido único, polícia política, censura) eram muito mais um resultado de contingências do atraso russo do que decorrências essenciais do projeto socialista russo e internacional.

Sendo assim, a tomada do poder pelos bolcheviques, mais do que um simples “acidente”, não terá sido na verdade um erro monumental? Se não havia condições de iniciar a construção do socialismo a partir da Rússia, por que os revolucionários tomaram o poder no império dos czares? Se os bolcheviques não contavam com o apoio da maioria da população (camponesa), mas tão somente com o dos operários (que acabaram dizimados na guerra civil), a revolução por eles liderada não terá sido uma aventura inconseqüente? O que a distingue de um simples golpe de Estado? A resposta a essas questões é provavelmente o que diferencia definitivamente a visão de mundo dos marxistas revolucionários da visão burguesa (ou mesmo reformista) que domina o senso comum.

Os marxistas revolucionários, como Lenin e os bolcheviques, sabiam que a Rússia era atrasada e não seria a base para a transição ao socialismo. Seria tão somente o ponto de partida. Os mencheviques e todo um amplo leque de reformistas defendiam para a Rússia o programa de uma “revolução por etapas”, que primeiro desenvolvesse o capitalismo, e com ele o Estado burguês moderno, ou seja, a república parlamentar com suas instituições de democracia formal, para somente depois realizar a transformação socialista. Essa concepção parte de um completo desconhecimento sobre a natureza do capitalismo na época imperialista.

O imperialismo representa a união entre o capital monopolista (fusão do capital financeiro com o industrial) e o Estado na disputa por mercados. Nesse contexto, desaparece definitivamente a ficção da “livre concorrência” do capitalismo liberal típico do século XIX (a pretensão dos neoliberais de ressuscitar o “livre mercado” na era da “globalização” em pleno século XXI, com suas mega-corporações globais monopolistas e seus políticos-gângsteres e mercenários do complexo industrial-militar, só pode ser uma piada de péssimo gosto). O Estado passa a ser o executor direto das políticas de interesse das grandes corporações, disputando mercados pela força das armas. Essa é a causa das duas guerras mundiais (e da “guerra ao terror” de hoje).

Na disputa feroz entre as seções nacionais do capital imperialista, desaparece qualquer possibilidade da parte dos países periféricos de experimentar um desenvolvimento capitalista independente. Desde o início do século XX, a idéia de uma “revolução burguesa” nos países periféricos já estava condenada. A burguesia russa era sócia menor e subordinada do capital imperialista inglês e francês. Exatamente por isso, entrou na I Guerra ao lado dos países da Entente. E em obediência aos seus patrões, recusou-se a sair da guerra, agravando o sofrimento das massas russas. Por sua vinculação orgânica com o imperialismo, a burguesia nacional russa jamais seria capaz de conceder as reivindicações populares que desencadearam a revolução: “paz, pão e terra”.

O que era válido para a burguesia russa do início do século XX era válido para o conjunto dos países periféricos. As burguesias locais e oligarquias rurais eram em todos os casos demasiado débeis para liderar qualquer desenvolvimento nacional independente e ao mesmo tempo sempre predispostas a esmagar as reivindicações populares em obediência a seus amos imperialistas. Desse modo, a estratégia dos PCs liderados pelo stalinismo depois da II Guerra somente poderia resultar em desastre. Os PCs stalinistas reciclaram para consumo externo a fracassada estratégia menchevique da “revolução por etapas”, apoiando os “setores avançados” da burguesia nacional nos países periféricos e renunciando à tarefa fundamental de construir organizações políticas independentes e revolucionárias das classes exploradas e de desenvolver a consciência socialista.

Se no contexto das lutas políticas nacionais particulares era talvez correto desenvolver alianças táticas temporárias num ou noutro momento com setores de classe pequeno-burgueses ou mesmo burgueses, isso jamais poderia resultar, como aconteceu na maior parte dos casos, em renúncia à estratégia da revolução socialista liderada pela classe trabalhadora. A renúncia à construção de partidos revolucionários dos trabalhadores e à criação de uma consciência socialista de massa levou a que os movimentos populares dos países periféricos, tão logo se aproximavam do limiar revolucionário, fossem invariavelmente afogados em sangue pela ala reacionária da burguesia nacional e pelo imperialismo.

A Rússia escapou a esse destino por ter tido a vanguarda operária e o partido bolchevique forjados na experiência de 1905. Se a Rússia era atrasada e incapaz de construir o socialismo, o restante da periferia também o era. Mas a quebra dos “elos frágeis” da cadeia do capital, rompendo os circuitos de acumulação da economia-mundo capitalista, interrompendo o fornecimento de matérias-primas e a demanda de manufaturas, minando o controle do capital monopolista, faria com que o capitalismo entrasse em colapso nos países imperialistas centrais e abrisse as portas para a revolução nos países avançados.

É por isso que a revolução liderada pelos bolcheviques não foi um golpe de Estado vulgar. A revolução na Rússia era vista pelos revolucionários russos como uma etapa da revolução mundial. É por isso que o Outubro russo não foi um “acidente” nem um desvio e sim uma exceção, já que foi o único momento em que a estratégia da revolução mundial foi bem sucedida. Foi a única vitória de um amplo movimento que no seu conjunto acabou derrotado. Por ter sido a única revolução bem sucedida, a Revolução Russa acabou arcando com o ônus dos fracassos alheios, ou seja, passou a carregar sozinha o fardo e a responsabilidade da construção do socialismo num contexto de retrocesso da revolução socialista européia e mundial.

É importante ainda lembrar que a idéia de uma revolução européia como fonte de uma transformação socialista mundial não era um delírio messiânico dos bolcheviques, mas uma possibilidade concreta ao alcance das mãos dos socialistas europeus. Na Finlândia houve uma revolta operária em 1918 (que sofreu uma das repressões mais sangrentas da história), na Inglaterra houve grandes greves em 1919, na França houve motins de marinheiros também em 1919, na Alemanha houve a revolta spartaquista em 1919 e o levante de 1923, na Hungria a “república dos conselhos” operários em 1920, na Itália o movimento das fábricas ocupadas também em 1920. A efervescência vermelha estava por toda parte e não apenas na Rússia. Tomar o poder e trabalhar pela revolução européia não era uma utopia, mas era a única estratégia racional disponível naquelas circunstâncias.

A Guerra Civil

Se a tomada do poder se justifica em função de uma estratégia mundial, os defensores empedernidos da visão de mundo burguesa e reformista ainda podem esgrimir o argumento da democracia formal. Ou seja, os bolcheviques não poderiam jamais apelar para métodos ditatoriais na condução da revolução, pois “por melhores que fossem suas intenções”, o mecanismo ditatorial abriria as portas para a ascensão de aventureiros e oportunistas do tipo de Stalin, como acabou acontecendo. Esse argumento “democrático” na verdade esconde um grosseiro desconhecimento de como a História se desenrola concretamente, quando não uma cínica mistificação.

Se os bolcheviques chegaram à condição de tomar o poder em outubro de 1917, é porque tinham a maioria nos soviets surgidos em fevereiro daquele ano. Os soviets eram conselhos de delegados operários, soldados e camponeses, eleitos por local de trabalho, por fábrica, por bairro, por pelotão, por aldeia, etc. e com mandatos revogáveis e controlados pela base. Eram instituições avançadas da democracia direta. Se os bolcheviques tinham a maioria nos soviets, é por que sua política representava as aspirações da esmagadora maioria da população, que queria o fim da guerra, o fim das privações e a distribuição da terra. Se os bolcheviques não organizassem a tomada do poder para atender a essas reivindicações, seriam varridos por uma incontrolável avalanche popular, juntamente com os outros grupos políticos que vacilavam. Era sua responsabilidade tomar o poder para organizar um governo popular e evitar que a queda inevitável do regime capitalista russo em colapso não resultasse na decomposição do país em completo caos e anarquia e ainda maior sofrimento.

Os bolcheviques atenderam às reivindicações da maioria camponesa (distribuição da terra) e dos operários que constituíam sua base social mais direta. Concederam liberdade política aos partidos de oposição e liberdade de imprensa até mesmo para a burguesia. Agiram portanto com a máxima democracia possível. Se o regime veio a se tornar ditatorial logo depois, não foi por ter sido essa a escolha inicial dos bolcheviques, mas por imposições práticas posteriores decorrentes da necessidade de defender as conquistas da revolução. Somente quem não tem o menor conhecimento da História concreta, ou seja, da luta de classes, poderia supor que a burguesia iria observar calmamente a organização de um governo de transição socialista debaixo de seu nariz e não iria reagir. Desde o início a burguesia russa, a pequena-burguesia, setores da intelectualidade e “socialistas” reformistas se colocaram contra o governo que os bolcheviques tentavam organizar.

Não apenas se declararam contrários a esse governo, mas lutaram contra ele de todas as formas. Organizaram atentados terroristas que feriram Lenin e mataram dirigentes bolcheviques, sabotaram a economia, fecharam fábricas, esconderam matérias-primas e víveres, especularam com os preços, saqueraram os camponeses, jogaram a população do campo contra as cidades, etc. A partir de meados de 1918, essa oposição contra-revolucionária aliou-se aos antigos generais monarquistas para travar uma guerra civil sanguinária que durou até o fim de 1920 e custou a vida de dezenas de milhões de pessoas, seja pelas armas, seja pelas privações que causou.

Além disso, a burguesia internacional não deu tréguas ao governo dos soviets. A narrativa histórica convencional diz que a I Guerra Mundial durou de 1914 a 1918. Mas esquece de mencionar que ao longo da guerra civil revolucionária (1918-1920) os exércitos de praticamente todos os países beligerantes invadiram a Rússia para derrubar o governo soviético, perpetrando também toda sorte de atrocidades. Na verdade, a Guerra Mundial foi encerrada apressadamente pelo temor dos Estados-maiores de que o exemplo russo fosse seguido e que, das deserções que já começavam a se massificar, os soldados e operários passassem à formação de soviets e conselhos revolucionários e à destruição da ordem burguesa na Europa. Se no pós-Segunda Guerra tivemos a “Guerra Fria”, o pós-Primeira Guerra já havia trazido o “cordão sanitário”, a tentativa de truncar pela força das armas a experiência socialista russa então no nascedouro.

Esses “espíritos democráticos” que fazem questão de permanecer absolutamente ignorantes da História concreta raciocinam como se a disputa de alternativas sociais entre capitalismo e socialismo fosse um debate de tipo acadêmico no qual ambas as partes conservam um saudável distanciamento e com cavalheiresco espírito esportivo concedem um ao outro a chance de demonstrar seus méritos, cada qual no seu terreno de escolha, agindo na mais completa paz, com toda liberdade de movimentos e em total igualdade de condições. Ao contrário dessa ficção piedosa, tão ao gosto dos intelectuais de gabinete e dos jornalistas sabichões, a disputa se deu concretamente como uma luta de vida ou morte em que os socialistas não tiveram sequer um segundo de descanso e tiveram que testar a viabilidade de seus métodos improvisados nas condições mais desvantajosas possíveis.

É muito comum os “espíritos democráticos” censurarem os bolcheviques por terem instaurado o terror vermelho, a pena de morte e a perseguição aos opositores. A mesma estridência com que se aplicam nessa denúncia se converte em estrepitoso silêncio quando se trata de expor a existência do terror branco, que começou primeiro, causou muito mais mortes e que na verdade foi o que obrigou o governo revolucionário a organizar sua legítima defesa.

Democracia e ditadura

Quando se fala em erros que os bolcheviques cometeram nesse período (a guerra civil revolucionária de 1918-1920), é necessário precisar em relação a que critérios as suas escolhas podem ser consideradas erradas. É muito comum lembrar a revolta dos marinheiros da base naval de Kronstadt (março de 1921), vizinha a São Petersburgo, como um exemplo clássico de erro. Os marinheiros daquela base entraram em greve exigindo o fim da ditadura e depois de negociações mal-sucedidas, acabaram sendo massacrados. Os anarquistas em particular se especializaram em fazer de Kronstadt a “prova definitiva” da má fé dos bolcheviques e da inviabilidade do socialismo, fazendo coro nesse ponto com os “espíritos democráticos” burgueses.

É muito fácil, a posteriori, censurar o governo dos bolcheviques por ter ordenado o massacre de Kronstadt. Com a mesma facilidade com que se faz essa condenação, se omite que o governo revolucionário havia acabado de passar por uma guerra civil mortal, em que a sua sobrevivência esteve diversas vezes por um fio. Vivia-se um cenário em que não se podia ter certeza de que o perigo havia passado, pois havia ameaças internas e externas de todos os lados, e o menor sinal de fraqueza poderia ser o estopim para uma nova guerra. Não se tratava da paranóia arbitrária de um bando de ditadores, mas da vivência traumática de quem havia se acostumado a enfrentar cotidianamente o terrorismo, a sabotagem, a sedição, a insurreição e a guerra implacável em suas variedades clandestina e aberta por mais de três anos.

Para discutir o mérito dessa escolha, é preciso se colocar na mesma posição daqueles que se viram diante dela. Não é essa a posição em que se colocam a maioria dos críticos. De um ponto de vista socialista, o massacre de Kronstadt pode ser considerado um erro, assim como o banimento da oposição política (ainda havia uma minoria de mencheviques, socialistas-revolucionários de esquerda e anarquistas que apoiavam a revolução), a partir de 1921. Do mesmo modo, foi um erro a proibição da formação de tendências e frações no interior do partido bolchevique, como a Oposição Operária, e a censura às posições divergentes nas publicações do partido. Essas medidas ditatoriais foram todas tomadas em caráter provisório, em face das circunstâncias calamitosas em que estava o país após os quatro anos da Guerra Mundial e os três da guerra revolucionária.

Nunca é demais lembrar que os operários, soldados e camponeses haviam feito a revolução, sob a liderança dos bolcheviques, com o objetivo de trabalhar menos. Agora, com a população das cidades reduzida à menos da metade, a produção industrial reduzida à cerca de 15% do que era antes da guerra, a fome, o frio e as doenças matando milhões de pessoas, o comércio exterior e toda forma de intercâmbio praticamente interrompido, a barbárie corroendo a sociedade como um câncer (corrupção, banditismo, estupros, canibalismo), um estado geral de exaustão, desmoralização, venalidade, individualismo e cinismo; o partido bolchevique era obrigado a pedir ao povo que trabalhasse mais do que antes. Nessas condições, não há governo no mundo capaz de manter sua popularidade. As reivindicações de mais democracia, melhores salários, etc., por mais que parecessem formalmente justas, eram materialmente inatingíveis. Os grupos que apresentavam essas reivindicações em tais circunstâncias excepcionais agiam como demagogos irresponsáveis e inconseqüentes.

Nesse momento, ceder parte do poder aos outros partidos de esquerda poderia significar a volta das turbulências da guerra civil. Era esse o risco que os bolcheviques queriam evitar. Ao contrário da revolução permanente defendida por Trotsky, a Rússia vivia um estado de “rebelião permanente”. Depois que o governo do Czar havia sido derrubado em fevereiro de 1917 e o governo provisório burguês em outubro daquele ano, muitos raciocinavam como se o governo bolchevique também pudesse ser derrubado a qualquer momento. Durante a guerra civil formaram-se vários outros governos provisórios em outras regiões da Rússia, liderados por generais monarquistas, os quais desencadearam o terror branco e obrigaram os bolcheviques por sua vez a militarizar o regime. Qualquer bando de aventureiros de armas em punho se achava no direito de fundar seu governo, e tentava de fato fazê-lo, perpetuando um estado de anarquia que só podia ser debelado pela força.

Condições sociais da ascensão do stalinismo

Os bolcheviques acabaram adotando portanto meios de luta (ditadura e terror de Estado) aparentemente contrários aos fins da transformação socialista. Antes de censurá-los por isso, é preciso perguntar: havia outra escolha? A guerra contra-revolucionária desencadeada pela burguesia, pelos monarquistas e pelo imperialismo não lhes deixou nenhuma. Os bolcheviques estavam cientes da contradição entre meios e fins e estavam prontos para abandonar os métodos emergenciais adotados durante a guerra civil tão logo o conflito amainasse. Por que não o fizeram? Porque as novas condições sociais da Rússia pós-guerra civil não lhes permitiram fazer isso. Fez-se sentir o peso das condições materiais, ou seja, a impossibilidade conceitual de um país atrasado tornar-se socialista manifestou-se de forma concreta.

No início dos anos 20 a Rússia estava devastada e faminta. Não havia comércio interno e externo. Havia escassez de alimentos e produtos essenciais. As pessoas morriam de fome, frio e doenças. A tarefa fundamental dos governantes nesse momento era manter o país funcionando. A economia estava desorganizada. Parte do pessoal técnico (engenheiros, gerentes, etc.) se opôs à Revolução e partilhou do mesmo destino da burguesia, ou seja, teve que exilar-se ou desaparecer no terror vermelho. A parte restante do pessoal técnico e letrado aderiu oportunisticamente ao partido bolchevique e serviu como matéria-prima para a reconstrução do Estado. Essa nova camada social havia se tornado indispensável para fazer com que as fábricas, as ferrovias, as comunicações, etc., ou seja, a infra-estrutura econômica funcionasse. Mas para isso, exigiu privilégios materiais, salários mais altos e itens de conforto dos quais os operários comuns não desfrutavam.

A classe operária dos anos 1920, por sua vez, não era a mesma que havia feito a revolução em 1917 (dos quais uma boa parte havia sido formada já na revolução de 1905). Essa nova classe operária, recém-recrutada no campesinato, não tinha a experiência e a formação necessária para se opor politicamente à ascensão da nova camada de técnicos e burocratas. As comissões de fábrica, sindicatos e soviets perderam efetividade, já que na prática a burocracia era o único setor que tinha condições técnicas de tomar as decisões econômicas. Reproduziu-se a separação entre economia e política, entre prática e teoria, entre trabalho braçal e trabalho intelectual, típica da sociedade de classes e do capitalismo.

Depois da Revolução e das duras provações da guerra civil, no momento decisivo da construção do regime socialista, esteve ausente o único elemento social que poderia realizar tal construção, ou seja, um proletariado dotado de consciência de classe. A camada mais consciente do proletariado russo, como vimos, pereceu na guerra civil. A classe operária que se formou após a Revolução vinha diretamente do campo e trazia consigo o peso brutal do analfabetismo e do atraso cultural geral. Os bolcheviques, que representavam o setor mais avançado da classe operária, viram-se subitamente privados de sua base social. O peso econômico decisivo da camada administrativo/burocrática submeteu o partido dirigente a seus interesses materiais, sacramentando os privilégios e a separação social entre burocracia e demais trabalhadores.

Dentro bolchevismo, a Oposição Operária e depois a Oposição de Esquerda liderada por Trotsky se opuseram à política pró-burocracia do partido. Mas essa oposição acabou privada de uma base social que pudesse sustentar sua luta política. Após o afastamento de Lenin por doença em 1922 e sua morte em 1924, a liderança do partido coube justamente à ala que representava os interesses da burocracia, ou seja, Stalin. Na formação do stalinismo como tendência política não entra apenas o elemento pessoal de traição ou o caráter malévolo de um indivíduo, mas um conjunto de fatores sociais. A Revolução Russa avançou socialmente até onde ainda existia fisicamente uma classe operária consciente a lhe dar impulso. Depois disso, na ausência daquele elemento social, desarticulado, coube à burocracia recolher suas conquistas.

A adoção da tese do “socialismo num só país” no congresso do partido em 1925 significava o abandono da estratégia da revolução mundial em função da qual a própria Revolução Russa se justificava. Dizer que o socialismo era possível num só país significava dizer que este país, a Rússia, estava maduro para o socialismo, o que não era verdade, pois ignorava o fato fundamental de que a classe trabalhadora estava alijada dos dispositivos de controle econômico e político. Significava também que a nova burocracia dirigente exerceria o poder em nome da classe trabalhadora, transformando a ditadura do proletariado em “ditadura sobre o proletariado”.

A longa sobrevida da URSS

Com todas essas restrições (o isolamento da Rússia, o atraso tecnológico e cultural, a desaparição da vanguarda operária, as perdas humanas de proporções cataclísmicas, os sofrimentos inomináveis e privações intoleráveis impostos aos operários e camponeses, a ascensão da camada burocrática, o fim da democracia operária dos soviets), a Rússia transformou-se numa superpotência, com o nome de União Soviética, capaz de enfrentar as maiores potências imperialistas, como a Alemanha na II Guerra Mundial e os Estados Unidos durante a Guerra Fria. Como se explica esse “milagre”? Como um país semi-feudal e de industrialização incipiente, tendo passado pelos transes de duas guerras mundiais, sangrado quase até a morte; conseguiu em poucas décadas estar à frente dos Estados Unidos na corrida espacial e armamentista?

A resposta é uma só: a expropriação da burguesia. A colocação dos meios de produção social sob controle estatal permitiu um planejamento que no sistema capitalista é impossível. O fim da anarquia do mercado capitalista racionalizou e potencializou enormemente a estreita base das forças produtivas da Rússia pré-revolucionária. É claro que esse avanço econômico se deu sob controle da burocracia e do Estado, bloqueando o exercício do controle pelos próprios produtores diretos. Esse bloqueio à participação dos trabalhadores nas decisões econômicas e políticas determinaria, ao fim de algumas décadas, o esgotamento do sistema burocrático de produção.

A expropriação da burguesia é apenas a primeira fase de uma transformação socialista, que compreende a efetiva devolução dos poderes sociais de direção econômica e política aos trabalhadores associados. Esse segundo passo não chegou a ser dado na Rússia, pois os poderes de controle permaneceram nas mãos da burocracia. Sem esse segundo passo, a revolução estava condenada. Sem a criação de novas relações sociais, que rompessem com a subordinação estrutural do trabalho, o mais natural era que a forma puramente capitalista de subordinação voltasse a se impor. Foi isso o que aconteceu, na década de 1980. Observando-se o processo em perspectiva, não é surpresa que a URSS tenha desabado em 1991, e sim que tenha persistido por tanto tempo. O fato de que o Estado pós-revolucionário burocratizado tenha sobrevivido por sete décadas é o que há de mais excepcional em todo esse processo.

A longa sobrevida do Estado pós-capitalista russo, se por um lado faz ressaltar dramaticamente a importância e a profundidade das transformações ali realizadas, por outro lado fez com que o movimento socialista internacional ficasse paralisado, por assim dizer, ao nível das limitações russas. Como foi dito acima, a necessidade de defender ideologicamente a Revolução Russa trouxe de contrabando a defesa do atraso russo. O movimento socialista do século XX acabou tomando a forma dos PCs centralizados por Moscou, diante dos quais as diversas formas de dissidência (trotskista, maoísta, foquista, situacionista, etc.) não conseguiram alcançar influência mais do que marginal. À medida em que a União Soviética se consolida como um Estado pós-capitalista administrado por uma burocracia, os PCs se convertem em instrumentos da diplomacia soviética, impedindo o desenvolvimento de linhas teóricas e práticas independentes.

A sectarização do marxismo

Toda forma de consciência social (ideologia) é a expressão de uma determinada forma de existência material. Pelas mãos do stalinismo mundial, o marxismo deixou de ser a visão de mundo da classe trabalhadora em luta pela emancipação para se tornar uma espécie peculiar de falsa consciência, a “propaganda enganosa” do socialismo já “realizado” no “modelo soviético”. O marxismo deixou de ser expressão dos interesses gerais da humanidade, materializados na luta da classe trabalhadora, para se converter na expressão dos interesses particulares da burocracia. Em outras palavras, a burocracia se apropriou do marxismo para convertê-lo no seu contrário, a apologia de uma forma de dominação, e com isso legitimar-se no poder.

A vigência de um determinado sistema de pensamento só pode ser provada quando esse sistema é capaz de demonstrar não só que os sistemas alternativos estão errados, como também de explicar porque esses erros necessariamente se produzem sob condições dadas. A vitalidade do marxismo reside justamente nessa sua capacidade de medir-se com a realidade concreta em todos os momentos da história.

Enquanto expressão viva da luta de classes, o marxismo continuou existindo na prática cotidiana de incontáveis militantes anônimos e na voz insubmissa de pensadores dissidentes e marginais. Sob forma “morta”, o marxismo se transformou no discurso oficial emanado de Moscou e difundido pelos PCs e seus epígonos, inclusive na academia e até mesmo em setores da mídia. O marxismo “petrificou-se” numa ortodoxia doutrinária, que não admite divergência em relação aos seus “textos sagrados”. O espírito revolucionário que vivifica as palavras dos grandes autores marxistas converteu-se na letra morta dos manuais stalinistas. Além de petrificado, o marxismo foi também pasteurizado, ao ser reduzido a uma teoria determinista e economicista da sucessão dos modos de produção, ao modo das teorias positivistas do progresso. Confortavelmente instalados nas suas “dachas”, os burocratas podiam contar com a “vitória final” do socialismo, pois isso “estava escrito nos desígnios da História”.

Quando um sistema de pensamento se transforma em porta-voz de interesses materiais firmemente estabelecidos, torna-se necessariamente conservador, ou seja incapaz de renovar-se e assimilar novos elementos da realidade. Passa assim a assumir as características de um discurso religioso, ou seja dogmático. A principal conseqüência do dogmatismo é a sectarização. Para sacramentar o seu poder de dirigente máximo, Stalin precisou usurpar o nome de Lenin (e seu cadáver, que permanece até hoje insepulto na Praça Vermelha como objeto de culto) e criar o “leninismo”, que seria a interpretação “oficial” e “correta” do marxismo. Precisou também criar uma heresia oficial que servisse de bode expiatório para todos os males, atribuindo aos opositores a pecha de “trotskistas”. Os seguidores de Trotsky, por sua vez, caíram na armadilha e inventaram o “marxismo-leninismo-trotskismo”, mergulhando numa disputa sem fim para determinar qual corrente política é “a representante mais fiel” do legado marxista revolucionário.

Para recomeçar

O sectarismo é um dos muitos vícios da esquerda no presente, inclusive dos setores que reivindicam a defesa da Revolução Russa. Muitos fazem essa defesa de maneira formal, vazia, abstrata, descolada da realidade e fanática. Usam o passado como um escudo para se afastar do presente, que não lhes parece “revolucionário” o bastante; ao invés de fazer do conhecimento crítico e aprofundado do passado o instrumento para a intervenção concreta no presente. Uma militância que não tem os pés bem plantados no chão da realidade que pretende transformar corre o risco de se transformar em simples profissão de fé, ou seja, outra forma de alienação. Onde falta conteúdo, a forma vazia se sobressai caricaturalmente.

O mecanismo da sectarização faz com que muitos revolucionários se percam em disputas bizantinas acerca de filigranas da literatura marxista, esgrimindo citações dos clássicos extraídas dos contextos e debates mais diversos para demonstrar a “superioridade incontestável” das suas respectivas escolas e conventículos “revolucionários”. Enquanto se perdem nessas disputas, deixam passar o bonde da História e negligenciam as verdadeiras tarefas que esperam pelo empenho dos que se inspiram em Marx: o estudo das contradições reais em que se enredam os homens reais no mundo real, a luta real ao lado dos trabalhadores tais como existem em carne e osso, a convivência ombro a ombro com os companheiros de luta de todos os “credos” e denominações, o debate com todas as formas de falsa consciência emanadas da ideologia burguesa que corrompem a filosofia, a arte e a ciência, a superação dos obstáculos materiais que obstruem a revolução socialista no presente.

Dedicar-se a essas tarefas é provavelmente a melhor forma de prestar a merecida homenagem aos bolcheviques e demais revolucionários do passado.

Daniel M. Delfino
26/10/2007

25.10.07

A Revolução Russa passo a passo

A Rússia na 1ª Guerra Mundial

O Partido Bolchevique, juntamente com os setores de esquerda da Internacional Socialista (II Internacional), lutou arduamente para que o movimento socialista se posicionasse de forma clara contra a deflagração do conflito entre as potências imperialistas. Em caso de eclosão da guerra, os socialistas deveriam evitar que os trabalhadores fossem recrutados para matar seus irmãos de classe de outros países; e deveriam também derrubar a burguesia em cada país. Essa resolução, tirada pela Internacional em 1907 e reiterada seguidas vezes até 1912, mesmo que com atenuantes, não foi cumprida. A guerra foi deflagrada em 1914. Os deputados dos partidos socialistas votaram a favor da guerra nos parlamentos burgueses de cada Estado. A II Internacional ficou politicamente desmoralizada e inoperante. A Europa mergulhou na carnificina e os trabalhadores chacinaram uns aos outros aos milhões, em nome dos lucros da burguesia que os explorava em cada país.

A guerra opunha dois grandes blocos: a “Entente” (Inglaterra, França e Rússia) e a “Tríplice Aliança”, também chamada de os “impérios centrais” (Alemanha, Áustria-Hungria e Turquia). Dentre esses países, a Rússia foi o que mais sofreu com a guerra. De uma população total de cerca de 150 milhões de habitantes (as estatísticas do período não eram precisas), aproximadamente 15 milhões de homens foram mobilizados ao longo do conflito. A tecnologia de guerra havia sido aperfeiçoada pelas conquistas da II Revolução Industrial, mas as táticas militares não haviam sido atualizadas. Os generais russos lançavam suas tropas em cargas de cavalaria e de infantaria contra metralhadoras, canhões, morteiros, granadas, trincheiras, tanques, arame farpado. Mais de 5 milhões de soldados foram mortos, aprisionados ou desaparecidos.

Para sustentar o imenso contingente mobilizado nesse estúpido morticínio, o conjunto da sociedade também teve que arcar com sua parte no esforço de guerra. A produção econômica foi reestruturada para priorizar o abastecimento das tropas na frente de batalha. Foi instituído o racionamento. Ítens básicos como o pão começaram a faltar para a população em geral. Depois dos primeiros anos de patriotismo febril, o entusiasmo com a guerra diminuiu drasticamente.

A Revolução de Fevereiro

Todos ainda tinham viva a memória dos acontecimentos de 1905, quando as dificuldades trazidas pela guerra contra o Japão levaram à mobilização da população e ao surgimento do “conselho dos delegados operários” (soviet) de São Petersburgo. No início de 1917, o mesmo fenômeno começa a se repetir, mas com muito maior volume e intensidade: greves, manifestações, deserções, motins. Multidões imensas se mobilizam e tomam as ruas. A situação se agudiza quando as forças da repressão sucessivamente se recusam a atirar contra o povo. Os destacamentos da polícia, os soldados e até mesmo os cossacos desobedecem as ordens e aderem à mobilização popular.

Na frente de batalha, os soldados destituem os oficiais do comando, elegem seus próprios representantes e deliberam a retirada. Todos desejam voltar para suas cidades e aldeias. Com a deserção de grande parte do exército, que era composto majoritariamente por camponeses, o movimento se irradia por todo o interior do país. Formam-se soviets de operários, camponeses e soldados e marinheiros.

Em 23 de fevereiro (8 de março no calendário ocidental - a Rússia seguia o calendário juliano, que àquela altura estava atrasado em 13 dias em relação ao calendário gregoriano usado no Ocidente; somente depois da Revolução, em fevereiro de 1918, adotou-se o calendário ocidental), Dia Internacional de Luta das Mulheres, a capital São Petersburgo está em greve geral. Centenas de milhares de pessoas marcham pelas ruas. Nos dias seguintes, as praças e principais locais públicos permanecem ocupados pelas multidões, que ninguém consegue fazer recuar. O governo está sem iniciativa. Tendo suas ordens desobedecidas em todos os setores, o Czar abdica em 2 de março. O herdeiro do trono, ainda criança e hemofílico, não pode assumir. O irmão do Czar, próximo na linha sucessória, recusa o trono.

Os representantes das classes dominantes, reunidos na Duma (Parlamento), são forçados pela mobilização popular a constituir um Governo Provisório, que fica sob a chefia do Príncipe Lvov. As primeiras medidas do governo são a redução da jornada de trabalho para 8 horas e a concessão de liberdades civis. Os partidos revolucionários saem da clandestinidade e passam a atuar abertamente. Em todas as cidades e nos campos multiplicam-se os soviets. As assembléias são praticamente diárias e todos têm o direito à palavra. A Rússia se torna subitamente o país mais democrático do mundo. Desde o início vigora o “duplo poder”, ou seja, a vigilância cerrada dos soviets, órgãos do poder popular, sobre o governo oficialmente constituído.

O Governo Provisório

A composição do Governo Provisório é bastante heterogênea. Dele fazem parte os monarquistas, a burguesia (agrupada no partido Constitucional Democrático, apelidado “cadete”), a pequena burguesia, os intelectuais e até o partido SR, que tem o direito de nomear alguns ministros. Os mencheviques, que neste momento estão em maioria nos soviets, apóiam o novo governo. Para os socialistas moderados, o Governo Provisório era a materialização de seu programa histórico: a revolução burguesa na Rússia, que consideravam uma etapa prévia indispensável para a construção do socialismo.

Em seu doutrinarismo e distanciamento das massas, esses socialistas tornaram-se absolutamente cegos para a realidade concreta. A burguesia era extremamente débil e completamente submissa à Inglaterra e à França, cujos empréstimos haviam financiado a industrialização russa. Esses laços com o imperialismo faziam com que a prioridade da burguesia fosse a continuidade da guerra contra os impérios centrais. Ora, o fim da guerra era exatamente o que as massas mobilizadas mais desejavam. Os socialistas moderados mantiveram-se surdos ao clamor popular e com isso abriram caminho para a própria derrocada.

Se os moderados tinham a plena convicção da necessidade de apoiar o Governo Provisório, os revolucionários ainda não tinham uma posição definida em relação a ele. Essa situação só muda em abril, quando Lênin volta do exílio e publica as “Teses sobre as tarefas do proletariado na presente Revolução”, que se tornariam célebres como as “Teses de abril”. Nelas Lênin expõe o caráter burguês e pró-imperialista do Governo Provisório e a necessidade de derrubá-lo para tirar a Rússia da guerra. O poder deveria passar à classe trabalhadora, através dos soviets. A Rússia ainda não estava madura para o socialismo, mas sua revolução romperia um elo frágil da cadeia do capital e precipitaria a revolução nos países avançados. Seria preciso convocar os socialistas do mundo inteiro para construir uma III Internacional revolucionária que lutasse pelo socialismo. O novo governo adotaria medidas transicionais (estatização dos bancos, redução da jornada). A terra seria estatizada e distribuída aos camponeses para ser administrada pelos soviets rurais.

Lênin teve enorme dificuldade para convencer o partido a adotar suas teses. Entretanto, foi bem sucedido, e a partir da adoção da nova orientação, a atuação do partido dá um grande salto de qualidade. Os bolcheviques passam a agitar sistematicamente as palavras de ordem de “pão, paz e terra”. Com isso, passam a ser vistos pelas massas como aqueles que defendem suas reivindicações mais sentidas. Aos poucos, começam a tornar-se maioria nos soviets, num processo de crescimento avassalador e inexorável. A partir de maio, a organização Interdistrital de Trotsky começa a fundir-se com o partido bolchevique (o Congresso da Unificação aconteceria em junho) e seu dirigente ganha um lugar no Comitê Central (CC).

A Revolução de Outubro

Em junho de 1917 acontece na capital o I Congresso dos Soviets de toda a Rússia, com representantes das organizações populares de todo o país. Após mobilizações impressionantes das massas, convocadas pelos soviets, os ministros mais impopulares do Governo Provisório são obrigados a renunciar e forma-se um novo gabinete sob a chefia de Kerenski, do partido SR. O Governo Provisório se equilibrava no poder fazendo promessas duvidosas às massas. Prometeu-se convocar uma Assembléia Constituinte que decidiria sobre a questão da reforma agrária. Mas no campo os soviets de camponeses preparavam-se para apossar-se das terras por sua própria conta e a qualquer momento. Prometeu-se também acabar rapidamente com a guerra por meio de uma ofensiva fulminante contra os impérios centrais. Mas a ofensiva foi um fiasco total e o governo de Kerenski se desmoralizou.

Diante dessa desmoralização, parte da guarnição de São Petersburgo decidiu sublevar-se. Os bolcheviques foram contra, pois entendiam que a hora para tomar o poder ainda não havia chegado. A insurreição aconteceu, em julho, e foi derrotada. Kerenski endurece a repressão e revoga as medidas democráticas de fevereiro. Trotsky é preso e Lenin se refugia na Finlândia. Mas a população já não aceita mais as medidas repressivas e protesta. Kerenski perde popularidade.

Setores da classe dominante, inconformados com a “anarquia” que a seu ver reinava na capital, decidem-se por um golpe de força. O general Kornilov desloca suas tropas do front em direção à capital, ainda em julho. Seu plano é aplicar um golpe de Estado e passar a fio de espada os operários dos soviets e os militantes revolucionários. Rapidamente, os bolcheviques organizam a defesa da capital. Formam-se milícias de operários e soldados. Os batalhões convocados por Kornilov desertam à medida em que se aproximam da capital. Muitos se confraternizam com seus irmãos da capital e aderem aos soviets.

Apesar da forma improvisada como são constituídas, as milícias vermelhas são infinitamente superiores em entusiasmo e motivação. O golpe de Estado é derrotado e os operários e soldados ganham enorme confiança em suas próprias forças. Os bolcheviques, que se destacaram na organização das defesas da cidade, tornam-se maioria nos soviets da capital. Lenin e Trotsky retornam. A partir de setembro, o partido desenvolve um intenso e paciente trabalho de organização já tendo como meta a tomada do poder. Cria-se um Comitê Revolucionário Militar (CRM), sob a chefia de Trotsky, e forma-se uma Guarda Vermelha composta de soldados e operários armados.

Esses trabalhos de organização prosseguem até outubro. A data da tomada do poder é marcada para coincidir com a realização do II Congresso dos Soviets de toda a Rússia. Cientes de sua superioridade numérica, os bolcheviques ordenam à Guarda Vermelha a tomada do Palácio de Inverno, sede do Governo Provisório. Isto seria a concretização da palavra de ordem de “todo poder aos soviets!” O governo de Kerenski é derrubado praticamente sem oferecer resistência, em 25 de outubro.

A tomada do poder pelos bolcheviques foi recebida em todo o mundo com grande espanto e incredulidade. Em nome do órgão Executivo dos soviets reunidos em Congresso, forma-se um Conselho dos Comissários do Povo, composto por dirigentes bolcheviques. Os SR de direita e os mencheviques se colocam na oposição. A ala esquerda dos SR e parte dos anarquistas adere ao novo governo. A burguesia, incrédula, espera pelos acontecimentos.

A luta pela paz

Cumprida a tarefa da tomada do poder, o novo governo passa a atender as reivindicações populares. É enviado um pedido de abertura de negociações de paz (a proposta da chamada “paz sem anexações e reparações” e a divulgação dos tratados diplomáticos secretos tiveram grande impacto no exterior) com os impérios centrais e publicado um decreto de entrega da terra aos camponeses. Os soviets de camponeses, onde os SR de esquerda tem a maioria, encarregam-se de concretizar a reforma agrária. Já a obtenção da paz seria bem mais problemática.

As negociações com os impérios centrais arrastam-se de dezembro de 1917 até fevereiro de 1918. Lenin não tinha nenhuma ilusão quanto a uma possível aceitação do regime dos soviets pelo imperialismo. A burguesia internacional (e também a da Rússia) raciocinava como se se tratasse de um simples motim que seria rapidamente esmagado, como fora a Comuna de Paris em 1871, e trabalhava ativamente para que isso se repetisse. A única chance da Revolução Russa sobreviver estava na deflagração da Revolução socialista na Europa, cujo próximo passo seria a Revolução alemã. Com extraordinária lucidez política, Lenin e os bolcheviques subordinavam suas táticas a essa estratégia da Revolução internacional.

Foi preciso fazer concessões ao imperialismo alemão para conseguir o fim da guerra. O tratado de Brest-Litovsk foi assinado em 23 de fevereiro. A Alemanha ocupou a Polônia, as repúblicas bálticas e parte da Ucrânia (a Finlândia tornou-se independente). Havia um grande risco nessa concessão, pois a entrega desses territórios abria caminho para uma possível invasão alemã a São Petersburgo. Além disso, a retirada da Rússia da guerra atraiu a hostilidade do ocidente contra a Revolução, mesmo das massas operárias que, intoxicadas pelo chauvinismo, consideravam a paz uma traição à causa da Entente (isso só mudaria com o fim da guerra em novembro de 1918 e a invasão do conjunto do imperialismo contra a Rússia soviética).

Apesar disso tudo, os bolcheviques sabiam que a Alemanha não conseguiria lutar sozinha (o Império Austro-Húngaro e o Turco Otomano se esfacelam e abandonam a guerra) por muito tempo contra a Entente, reforçada pela entrada dos Estados Unidos e seu poderio esmagador. A derrota da Alemanha abriria caminho para a queda do governo do Kaiser e para a possível tomada do poder pelos socialistas alemães. A Revolução alemã continuaria alimentando a esperanças de todos por anos a fio e era em nome dessa esperança que os bolcheviques sabiam que precisavam se manter no poder.

Enquanto essa ocasião não chegava, era preciso administrar a vida cotidiana do país. A situação era catastrófica após anos de guerra ruinosa. A desorganização era geral e tudo precisava ser improvisado: a distribuição de víveres, o fornecimento de combustível e matérias primas, a circulação de trens, os bondes urbanos, os telégrafos, as escolas, os hospitais. Os SR de direita e mencheviques, hostis ao novo governo, controlavam os principais sindicatos de servidores públicos e de setores estratégicos, como o dos ferroviários, e usavam essa força para desestabilizar os bolcheviques. Greves e sabotagens paralisavam as iniciativas dos Comissários do Povo. A burguesia, por sua vez, tentava paralisar a economia. As fábricas eram fechadas, os estoques de matérias-primas escondidos, as mercadorias tiradas de circulação para que se especulasse com seus preços. Não foi em função de um programa premeditado de transformação socialista precipitada, mas para manter a economia minimamente funcionando, que se adotaram as medidas de desapropriação e estatização das empresas nesse primeiro período, entregando-as à direção dos operários.

Apesar das práticas desleais da oposição, os bolcheviques aprofundaram a democracia obtida em fevereiro do ano anterior e permitiram que os outros partidos funcionassem e que seus jornais fossem publicados, mesmo os que pregavam a derrubada do governo pela força. As medidas repressivas somente eram adotadas em casos de emergência extrema. A sordidez dos opositores não tinha limites. As adegas da nobreza foram saqueadas e houve uma “epidemia” de embriaguez desenfreada na capital. Os pelotões enviados para vigiar as adegas, por sua vez, também embriagavam-se. Foi preciso decretar a pena de morte para quem roubasse bebidas a fim de controlar a situação. Os criminosos comuns, que haviam sido libertados sob a promessa de regeneração, voltaram a delinqüir e tiveram que ser encarcerados novamente, não sem antes provocar toda sorte de confusão. Os anarquistas, sob o pretexto de anti-autoritarismo, admitiam inadvertidamente a infiltração de espiões e terroristas a serviço da contra-revolução em seus grupos, de modo que o governo teve que desarmar suas milícias. Os monarquistas pretendiam libertar a família imperial aprisionada nas proximidades da Sibéria e restaurar o czarismo, o que obrigou o soviet local a decretar a execução dos membros da família Romanov, em julho de 1918.

A Guerra Civil revolucionária

As dificuldades dos bolcheviques para reativar a vida do país eram interpretadas pela oposição como um vazio de autoridade, o que dava a oportunidade para toda sorte de aventuras. Generais monarquistas começam a formar batalhões de cossacos e oficiais do antigo exército para derrubar o governo. Formam-se tropas de “guardas brancos” em várias partes do país (foram tais tropas que tentaram libertar o Czar). Os diplomatas ocidentais colaboram com a contra-revolução com o intuito de derrubar os bolcheviques, primeiro para forçar a Rússia a voltar à guerra, e depois para garantir o estabelecimento de um governo burguês que honrasse as dívidas da Rússia com o capital imperialista. A burguesia, entusiasmada, patrocina a formação de governos paralelos ao dos soviets. Para sua vergonha e desgraça, os SR e mencheviques aderem a tais governos. Terroristas a mando dos SR matam Volodarski e Uritski, membros do CC bolchevique e também o embaixador alemão, a fim de tentar provocar o reinício da guerra contra aquele país. Finalmente, o próprio Lenin é baleado em agosto de 1918.

A partir de maio de 1918, o país já vive uma guerra civil aberta, que é simultaneamente uma guerra revolucionária internacional, em função da necessidade crucial de defender as conquistas da classe trabalhadora contra a agressão imperialista. Com a rendição da Alemanha e o fim da I Guerra (novembro de 1918), Inglaterra e França estão livres para enviar tropas para invadir a Rússia, ao norte (Archangelsk) e ao sul (Criméia), respectivamente. O Japão invade o território soviético pelo oriente. Um exército branco ocupa a ferrovia transiberiana. Ao todo tropas de 14 nacionalidades invadem a Rússia revolucionária. Forma-se o “cordão sanitário” (expressão do presidente francês Clemenceau) para impedir a “contaminação” do proletariado europeu pelo bolchevismo. No período mais crítico da guerra civil, o território sob controle dos soviets reduz-se praticamente ao do antigo Principado de Moscóvia da época medieval. Por medida de segurança, a capital tem que ser transferida de São Petersburgo para Moscou.

As tropas brancas procedem com grande crueldade em todas as regiões “libertadas”. Os operários são sumariamente fuzilados, assim como qualquer um sobre o qual recaia a mais leve suspeita de haver participado dos soviets. Além disso, os governos contra-revolucionários mostram-se extremamente corruptos. Seus generais e dirigentes comportavam-se como aventureiros vulgares, tiranetes e saqueadores. As populações locais, revoltadas com o terror dos brancos, jamais se deixam dominar e não colaboram com tais governos. Os métodos autoritários dos brancos, idênticos ou piores que os do czarismo, já não eram aceitos por seus próprios soldados, que desertavam ou passavam para o lado dos revolucionários.

De sua parte, o governo soviético é obrigado a organizar um Exército Vermelho. Trotsky, o encarregado dessa tarefa, adota um procedimento extremamente audacioso e polêmico: recrutar alguns dos oficiais do antigo exército czarista, muitos dos quais eram aventureiros de lealdade duvidosa e também odiados pelo povo, para servir à causa da Revolução, sob a justificativa de que tais homens eram os únicos elementos que detinham o conhecimento da técnica de organização militar. Em cada unidade, ao lado dos oficiais, haveria um “comissário político” (na maioria das vezes, militante bolchevique), delegado pelos soviets, encarregado de referendar as ordens e com poder de, se necessário, aprisionar ou executar os traidores, desertores e os próprios oficiais.

O Exército Vermelho se desdobra para enfrentar os brancos em todas as frentes. No norte, nas proximidades de São Petersburgo (a cidade esteve muito perto de ser invadida no verão de 1918 e de novo no outono de 1919); no sul, na Ucrânia, no Cáucaso e na Ásia Central; no oriente, ao longo da transiberiana. O comando móvel do exército, com Trotsky e sua equipe, se deslocava de trem pelo país, levando disciplina, organização, diretrizes e, principalmente, um contagiante entusiasmo às tropas, numa das jornadas épicas mais gloriosas da História em todos os tempos.

A guerra civil se prolongou até o fim de 1920 e terminou com a vitória incontestável dos vermelhos, que recuperaram para a Rússia soviética quase todo o território do antigo Império czarista, com exceção da Polônia, Finlândia e repúblicas bálticas. Em 1919 os bolcheviques impulsionaram a criação da Internacional Comunista (a III Internacional, também chamada de “Comintern”) com o objetivo de organizar os revolucionários do mundo inteiro. Em 1920, o contra-ataque à ofensiva do general polonês Pilsudski levou o Exército Vermelho às portas de Varsóvia, na tentativa de forçar uma revolução européia; tal contra-ataque, porém, foi derrotado.

O partido em tempo de guerra

Do ponto de vista de um governo socialista, as contingências da guerra civil apresentavam dilemas excruciantes. Em janeiro de 1918 a dissolução da Assembléia Constituinte não trouxe maiores dramas de consciência a nenhum revolucionário minimamente sério. Afinal, a Assembléia, em que os SR e mencheviques tinham maioria, era um fóssil do sistema político burguês, completamente supérfluo e historicamente superado do ponto de vista do avanço da democracia, num momento em que os soviets funcionavam plenamente e expressavam de forma viva e direta toda a riqueza e diversidade das aspirações populares. Ninguém lamentou o fim da Constituinte, a não ser os próprios SR e mencheviques e os adeptos fanáticos do cretinismo parlamentar.

A situação mudou bastante de figura quando a guerra civil produziu o esvaziamento dos próprios soviets. Durante o processo revolucionário, as assembléias dos soviets haviam revelado por todo o país dezenas, centenas, milhares de ativistas capazes, oradores brilhantes, organizadores competentes, inteligências diligentes, líderes visionários (muitos dos quais aderiram ao partido bolchevique), surgidos da massa dos operários, dos estudantes e intelectuais, da pequena-burguesia revolucionária, dos camponeses, dos mananciais inesgotáveis de generosidade e voluntariedade revolucionária do povo russo, recém-libertado da tirania nas graves circunstâncias da guerra.

A maior parte dessa vanguarda foi aproveitada no Exército Vermelho, deslocada para a linha de frente da guerra civil, nas funções de comissário político e na reorganização administrativa das regiões libertadas. Nesse momento, os próprios soviets tornaram-se instituições formais, vazias. E também perigosas, pois os SR, mencheviques e alguns anarquistas passam a servir-se deles para obstruir os trabalhos do governo bolchevique. O Conselho dos Comissários do Povo foi forçado a concentrar o poder em suas mãos, revogando na prática a palavra de ordem de “todo o poder aos soviets” do ano anterior.

Além dos soviets, as diversas instituições surgidas espontaneamente no calor da revolução, os diversos conselhos nacionais de planificação da economia, de controle operário da produção, de organização dos sindicatos, das cooperativas, das organizações populares; todas essas iniciativas improvisadas e altamente democráticas tiveram que ser suprimidas para desembaraçar o governo de empecilhos que impedissem a tomada das medidas enérgicas e urgentes que a guerra civil revolucionária demandava.

Por fim, foi preciso cassar a liberdade de atuação dos partidos de oposição e parte dos anarquistas. Os opositores “socialistas” e anarquistas do bolchevismo empregavam contra o governo dos Comissários do Povo os mesmos métodos que se emprega contra o inimigo de classe, ou seja, as greves, sabotagens e atos terroristas. Seus jornais pregavam a derrubada dos bolcheviques e seus partidários atiravam contra os dirigentes do governo nas ruas. Com isso, os “socialistas moderados” do passado e alguns anarquistas colocavam-se ao lado da própria burguesia e dos generais monarquistas facínoras. Optavam pela trincheira oposta na luta de classes; tinham que ser tratados portanto como agentes da burguesia, apesar da retórica socialista democratizante e pseudo-libertária.

Foi isso o que obrigou os dirigentes bolcheviques a transformar o regime dos soviets numa ditadura do partido. Um partido que durante décadas lutara na clandestinidade contra a tirania czarista, pavimentando seu caminho ao poder com fileiras de mártires enforcados e assassinados pela repressão, foi obrigado, uma vez chegando ao poder, a colocar seus opositores também na clandestinidade. Era isto ou deixar-se derrotar pelo inimigo de classe, a contra-revolução feroz, à espreita de qualquer rachadura na armadura do governo revolucionário.

Tratava-se de uma luta de vida ou morte pela sobrevivência material da Revolução, e não de um debate utópico e abstrato sobre princípios mais ou menos democráticos. O Estado foi militarizado. Assim como os comissários políticos impunham a disciplina no exército por meio da pena de morte para desertores e traidores, o governo instituiu uma polícia política (Tcheka), encarregada de reprimir os opositores e desbaratar as conspirações, sabotagens e atentados. Em resposta ao terror branco contra-revolucionário, foi instituído o terror vermelho. A burguesia, a pequena-burguesia, os camponeses ricos, os intelectuais e opositores políticos socialistas moderados e parte dos anarquistas, todos aqueles que colaboravam com os brancos, eram também perseguidos e mortos.

Todos esses passos foram motivo de intenso e acalorado debate nos círculos dirigentes do partido bolchevique. Cada medida era arduamente debatida e lançavam-se teses e réplicas para fundamentar a adoção ou não de cada proposta. Havia polêmicas duras entre os principais dirigentes, a maior parte das quais era publicada nos jornais do partido. Num regime que se tornara um sistema de partido único, era este partido e seus fóruns a única instância democrática que funcionava e na qual era possível discutir os rumos do país.

O “comunismo de guerra”

A guerra civil foi extremamente cruel com a população em geral, já exausta com a guerra precedente. Milhões morreram vítimas dos combates e do terror branco. Na completa desorganização social que se seguiu, bandos armados percorriam o interior do país matando, roubando e estuprando, ora em nome dos brancos, ora em nome da “revolução”. Seria impossível para qualquer governo, branco ou vermelho, estabelecer-se sem impor as medidas mais autoritárias de ditadura.

Uma questão fundamental era o abastecimento. A população das cidades, os operários nas fábricas e os soldados em guerra precisavam de alimento. Sem comida, a população das cidades emigrou de volta para o campo (num país de urbanização recente, quase todas as famílias tinham parentes próximos divididos entre a cidade e o interior), provocando um grande êxodo urbano. Os camponeses já não tinham como ser pagos, pois não existia mais dinheiro que pudesse ser aceito. A produção industrial estava paralisada (o que piorou com o êxodo) e logo já não havia também sequer manufaturas para trocar com o campesinato.

É importante destacar que, do ponto de vista do camponeses, a Revolução já lhes dera o que queriam, ou seja, a propriedade da terra. Logo, tornaram-se hostis às cidades quando estas passaram a exigir o produto de seu trabalho sem ter nada para oferecer em troca. Isso criou condições propícias para a especulação. Os estoques de trigo eram açambarcados por atravessadores que se aproveitavam da escassez para enriquecer. De outro lado, bandos de saqueadores roubavam os camponeses. Muitos simplesmente se recusavam a plantar novas safras enquanto não lhes fossem dadas garantias de pagamento. A desorganização econômica produziu uma grande fome, em 1921, na qual milhões de pessoas morreram.

Com o abastecimento desarticulado, o governo organizou os “batalhões de requisição”, que iam até o campo, confiscavam o trigo dos camponeses e o embarcavam em trens para as cidades e o front. Estimulou-se a luta de classes no campo, opondo os camponeses pobres aos ricos e aos comerciantes aproveitadores. Do ponto de vista da população camponesa, não havia porém diferença prática entre os batalhões de requisição e os salteadores comuns que saqueavam sua produção. Os trens de abastecimento para as cidades eram por sua vez atacados por camponeses e por criminosos comuns.

Nessas circunstâncias um governo fraco ou vacilante teria sucumbido ante as provocações da oposição ou teria aberto caminho para golpes de Estado do primeiro aventureiro com força suficiente. O partido bolchevique, organismo vivo da revolução, teve forças para resistir e inteligência suficiente para manobrar nesse mar tempestuoso sem perder o rumo.

As práticas do partido nesse período ficariam conhecidas como “comunismo de guerra”. Houve um intenso debate para determinar se esse regime, onde tudo estava estatizado e coletivizado, poderia já ser considerado um passo em direção a uma transição socialista. Contra essa opinião, Lenin era constantemente obrigado a esgrimir sua argumentação realista e racional, acima de tudo prática: a Rússia ainda era um país atrasado e tudo o que lhe cabia fazer era sustentar as conquistas duramente obtidas até que a revolução estalasse nos países ricos. A estes sim, com sua ciência e tecnologia avançadas, sua industrialização plenamente desenvolvida, sua população urbanizada e culta, seu proletariado numeroso e politizado, caberia a tarefa de construir o socialismo. A Rússia seria tão somente o seu celeiro. Tragicamente, a Revolução alemã foi derrotada e a Rússia viu-se sozinha com a bandeira do socialismo nas mãos.

A Nova Política Econômica

A Rússia no início dos anos 1920 era um arquipélago de cidades devastadas sitiadas por um oceano de ira camponesa. Essa ira se manifestou em março de 1921. Os marinheiros da base naval de Kronstadt, vizinha a São Petersburgo, revoltaram-se contra o governo, exigindo a volta dos soviets. Temendo, por sua vez a volta da anarquia, o partido bolchevique ordenou o massacre dos revoltosos, executado por Trotsky. O simbolismo de Kronstadt foi cruel: essa base sempre apoiou os bolcheviques, sempre forneceu uma platéia entusiasmada para os discursos do próprio Trotsky e ofereceu heróis incontáveis para a marinha vermelha. Agora, uma nova geração, desprovida da experiência e da maturidade que somente se adquire nas duras provas da luta revolucionária, mas contagiada por uma insolência anarquista despropositada, tornava-se mártir dos ideais libertários que já não mais vigoravam.

Kronstadt forçou o governo bolchevique a fazer um balanço da situação. Calcula-se que os combates da guerra mundial e da guerra civil revolucionária subseqüente tenham custado a vida de 14 milhões de pessoas. Outros 17 milhões morreram de fome, frio e doenças. A população de São Petersburgo, Moscou e das grandes cidades caiu pela metade. Os operários foram reduzidos a menos de 200 mil. A produção industrial caiu a cerca de 15% do que era em 1913, último ano antes da guerra. O PIB do país perdeu 60% do seu valor (as estatísticas dos historiadores diferem, prejudicadas pela falsificação e destruição sistemáticas de documentos do período stalinista, de modo que só se pode ter uma idéia aproximada da dimensão de tais fenômenos sociais). Territórios que faziam parte do antigo Império Russo, como a Finlândia, a Polônia e as repúblicas bálticas, onde se localizava parte das regiões mais urbanizadas, de setores econômicos tecnicamente mais avançados e das populações de melhor nível cultural, foram perdidos.

Parte importante da burguesia, da pequena-burguesia, dos intelectuais, da comunidade universitária, cientistas, artistas, advogados, médicos, letrados em geral; emigrou ou desapareceu no terror vermelho. Não havia pessoal especializado, técnicos, engenheiros, gerentes, contadores disponíveis. A economia de então (convém lembrar que estamos décadas antes da invenção da informática) era cronicamente dependente de papelório, procedimentos de controle, burocracia, o que demandava exércitos de profissionais letrados, que simplesmente não havia.

Também não havia comércio exterior. O cerco militar contra a Rússia fora desfeito, mas o cordão sanitário permaneceu. Não havia fornecimento de manufaturas, nem compradores para o trigo russo. O país seria obrigado a se reconstruir com seus próprios recursos. Transcorreram anos até que os demais países aceitassem gradualmente manter relações diplomáticas e comerciais com o governo soviético.

Em face dessa situação, o governo instituiu a Nova Política Econômica (que se tornou universalmente conhecida pela sigla em inglês “NEP”), que Lenin descreveu como “um passo atrás para dar dois passos para frente”. Tratava-se de reintroduzir relações de mercado no campo, de modo que os camponeses voltassem a produzir e as cidades pudessem ser abastecidas. As empresas estatizadas passariam a ter maior autonomia. Buscaram-se empréstimos no exterior para reativar a economia. À medida em que a década de 1920 avançava, tornara-se claro que a Revolução européia não viria imediatamente e teria que esperar por uma nova e importante crise. As medidas transicionais para o socialismo teriam que ser implantadas conforme a própria reconstrução do país permitisse.

Paradoxalmente, as medidas de abertura econômica coincidiram com o completo fechamento político. Os partidos políticos de oposição, os SR, mencheviques e anarquistas, mesmo aqueles remanescentes que estavam dispostos a praticar uma oposição leal, continuaram na ilegalidade e com seus jornais sob censura. Pior do que isso, foi proibida a formação de tendências e frações dentro do próprio partido bolchevique, como a Oposição Operária, que reivindicava a volta da democracia dos soviets e o afastamento da Tcheka e dos burocratas. O regime prosseguiu fechado, à espera de ventos melhores, que no entanto jamais vieram.

O fim do período revolucionário

A força do partido bolchevique residia justamente na sua diversidade e no seu método de tomada de decisões pelo coletivo, fato sistematicamente secundarizado pela narrativa convencional. É típico da historiografia burguesa agigantar desequilibradamente as individualidades e omitir o coletivo que as define e potencializa. A história projetou os nomes de Lenin e Trotsky, o que é bastante justo, mas também havia Sverdlov, Bukharin, Zinoviev, Kamenev, Preobrajenski, Radek, Lunatcharsky, Alexandra Kollontai, Eugênia Bosch, Rakovski, Chliapnikov, Tchitcherin, Riazanov, Kalinin, Kirov, Smilga, Rykov, Dzerjinsky, Smirnov, Manuilski, Piatakov, Yoffe, Bubnov, Ordjonikidze, Molotov, Stalin, (sem falar em dezenas de outros heróis anônimos). Todos esses quadros estavam habilitados a disputar de igual para igual os rumos do partido. Quase todos eram revolucionários experimentados, a maioria dos quais haviam combatido em 1905, passado pela escola da clandestinidade, da prisão, do exílio, vivido no exterior, aprendido a debater com os socialistas europeus. Quase todos desempenhavam meia dúzia de funções simultâneas, no Estado, no exército, na diplomacia, na Internacional, no partido, e ainda tinham condições de desenvolver as polêmicas teóricas e políticas. Essa plêiade de personalidades titânicas congregava as qualidades humanas mais diversas. Muitos eram cultos e poliglotas, outros oradores inflamados, outros ainda escritores prolíficos, ou também teóricos criativos e por último homens práticos habilidosos.

O partido bolchevique era acima de tudo um coletivo, que aproveitava da melhor forma as qualidades individuais e permitia que se desenvolvessem ao máximo. Nesse partido, a liderança não era imposta artificialmente, era conquistada pelo respeito que os militantes adquiriam em função das tarefas desempenhadas. Sem o partido, não teria havido a revolução, e sem os líderes, não haveria o partido. Por outro lado, sem o partido, os líderes não seriam o que eram.

No início dos anos 1920, o que restara do partido bolchevique era essa veterana equipe dirigente. Não havia mais a numerosa camada dos quadros intermediários que ligavam a direção às bases sociais proletárias, aquela prodigiosa vanguarda surgida desde 1917 nos soviets, fisicamente desaparecida na guerra. Na base do partido, por sua vez, proliferava um novo tipo de “militante”: jovem, inexperiente, sem conhecimento do marxismo, de origem social duvidosa, não-proletária, aventureiro, oportunista, carreirista, ambicioso, formado na atmosfera viciada da guerra civil. Esses novos membros do partido eram, na prática, quaisquer pessoas letradas minimamente capazes de desempenhar uma função administrativa, das quais o Estado carecia cronicamente. Eram o germe da futura burocracia.

Desde 1922, Lenin estava debilitado (sua saúde fora afetada pelos atentados terroristas) e não podia mais assumir tarefas importantes. Com sua morte em 1924, o partido, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS, nome adotado pela Rússia em 1922) e a jovem III Internacional viram-se privados de seu dirigente mais importante. Na disputa pela liderança do partido, o poder veio caber àquele elemento mais apagado e discreto da excepcional equipe dirigente bolchevique; àquele que desempenhava a função mais secundária e sem atrativos políticos (mas cuja importância política se mostraria absolutamente crucial nas circunstâncias dramaticamente diferenciadas do novo período: o controle do centro organizativo que atribuía as tarefas aos militantes de base); àquele cujas principais qualidades eram a determinação férrea, a inteligência política penetrante (porém desprovida de cultura geral e sofisticação teórica) e a completa ausência de escrúpulos; àquele que falava a linguagem da “nova espécie” de membros arrivistas do partido; àquele enfim a quem restaria paralisar as conquistas da revolução no pântano da burocracia: Stalin.

Daniel M. Delfino
24/10/2007

24.10.07

A Rússia antes da Revolução





Um dos relatos clássicos da Revolução de 1917, “O ano 1 da Revolução Russa”, publicado pela primeira vez em 1930, constitui um documento histórico inestimável (do qual retiramos dados e estatísticas para este e o próximo artigo), além de representar uma construção literária vívida e envolvente do grande drama histórico iniciado naquele Outubro memorável. Nesta obra, Victor Serge situa no ano de 1861 o marco inicial dos processos que arremessariam a Rússia no torvelinho das transformações da sociedade capitalista moderna. Neste ano, o Czar Alexandre II decretou o fim da servidão dos camponeses. Formalmente, o feudalismo estava abolido no Império Russo, o que abria as portas para o desenvolvimento do capitalismo.

Naquele momento, a Rússia era uma das grandes potências européias, mas era também um dos países mais atrasados do mundo. A esmagadora maioria da população era camponesa e miserável, a monarquia era absoluta, não havia Constituição, nem liberdades civis. Desde as guerras napoleônicas, a Rússia fora um dos bastiões da reação européia, um dos pilares da Santa Aliança, coligação de monarcas europeus dedicada a esmagar revoluções liberais e revoltas populares. No entanto, enquanto a Europa continental evoluía celeremente para o capitalismo industrial liberal e os regimes constitucionais, a Rússia permanecia feudal e arcaica.

O sinal de alarme soou por ocasião da guerra da Criméia (1853-56), quando uma coligação Anglo-Franco-Turca conteve as pretensões expansionistas dos czares em direção ao Mar Negro e aos Balcãs. A superioridade técnica e militar das potências européias convenceu os czares a acelerar a modernização do país. Para fazer frente aos seus rivais europeus e também prosseguir a expansão pelos territórios asiáticos, seria preciso contar com um exército e instituições mais eficientes, bem como uma população mais coesa e homogênea. Mas o dilema do Czar é que isso teria que ser feito sem modificar a estrutura social do país, ou seja, sem alterar os privilégios da nobreza fundiária, do clero ortodoxo, da burocracia do Estado e do exército, camadas que sustentavam o poder autocrático da dinastia reinante.

Características do Império Russo

Antes de tratar das reformas propriamente ditas, é importante descrever mais detalhadamente algumas características da Rússia de então.

O Império Russo se extendia desde a fronteira com a Alemanha e a Austro-Hungria, no Ocidente, até o Japão, no extremo oriente (o Alasca foi vendido aos EUA em 1867 por U$ 7 milhões); desde o círculo polar ártico e as imensas extensões da Sibéria até as fronteiras montanhosas com a Índia, o Afeganistão e a Pérsia. Era o maior país do mundo, com mais de 22 milhões de quilômetros quadrados. Na prática, era impossível precisar as fronteiras exatas, pois no Oriente elas se perdiam nas infindáveis planícies do norte da China e da Mongólia, com suas populações rarefeitas, selvagens e semi-nômades. Em direção à Ásia Central, ao Cáucaso e aos Bálcãs, a posse do território era objeto constante de disputa com as indomáveis tribos montanhesas muçulmanas e também de guerras com o Império Turco Otomano.

Depois do episódio da Criméia, haveria ainda outra guerra contra os turcos em 1877-1878 (na verdade as guerras contra os turcos eram uma rotina desde o século XVIII). Exercitava-se o “pan-eslavismo”, a doutrina de que todos os povos eslavos deveriam estar unidos sob um mesmo cetro (o do Czar, é claro), contra os impérios Austro-Húngaro e Turco Otomano, que subjugavam importantes minorias eslavas (tchecos, eslovacos, romenos, búlgaros, sérvios, croatas, eslovenos, montenegrinos, macedônios, bósnios, albaneses). Evidentemente, isso era mero pretexto para expandir ainda mais o Império Russo.

O território colossal do Império continha fabulosas riquezas naturais, como ferro, carvão (hoje se explora também o petróleo), minérios, florestas, terras férteis, vastas extensões despovoadas e grandes concentrações de populações diversas. Era um mundo a parte.

Esse grande mundo russo continha também uma ampla diversidade populacional, étnica, lingüística, religiosa e cultural. O censo de 1897 contabilizou uma população de 126 milhões de almas, distribuídas entre 56 milhões de russos, 22 milhões de ucranianos, 6 milhões de bielorussos, 8 milhões de poloneses, 3 milhões de lituanos, 1,8 milhões de alemães, 1 milhão de moldávios, 5 milhões de judeus, 2,6 milhões de finlandeses, 1 milhão de caucasianos, 3,5 milhões de fineses e 13,6 milhões de tártaros.

Dentre essas populações figuravam povos que já haviam tido Estados independentes e poderosos no passado remoto, como a Polônia e a Lituânia, e também aqueles que, mesmo sob domínio estrangeiro, vinham desenvolvendo uma forte identidade e consciência nacional, como a Finlândia e a Ucrânia; isso sem falar no caso sempre particular dos judeus.

Para manter o controle sobre essa população heterogênea, o Estado russo se constituía numa estrutura extremamente autoritária. O russo era a língua oficial do Império, o cristianismo ortodoxo de rito grego era a religião do Estado (a denominação de “Czar” dos monarcas russos era uma russificação de “César”, título que evocava o dos imperadores de Constantinopla, de quem os czares alegavam ser os herdeiros na defesa da cristandade oriental), o clero era considerado parte do funcionalismo estatal, a educação básica estava sob controle da Igreja, havia um rígido sistema de castas que impedia aos plebeus o acesso aos cargos da administração civil, bem como à condição de oficiais do exército. Havia ainda o regimento dos cossacos, tropa de elite fanaticamente devotada ao Czar (seus componentes cumpriam serviço militar dos 20 aos 60 anos) e recompensada com a posse de terras férteis na Ucrânia.

Em relação às nacionalidades subjugadas, havia uma política de russificação pela força, impondo o uso da língua russa e a religião ortodoxa. Havia minorias russas no território de todas as nacionalidades dominadas. Essas minorias russas ocupavam as posições hierarquicamente superiores nas regiões em que habitavam. Em geral eram os russos que moravam nas cidades e dedicavam-se às profissões artesanais, comerciais e intelectuais. E também detinham os cargos administrativos. 90% da população total do Império era camponesa e analfabeta.

Conseqüências da reforma de 1861

Foi este o Império que Alexandre II determinou-se a modernizar, sem no entanto abrir mão do férreo controle exercido pelo Estado autocrático. A abolição da servidão libertou os camponeses dos laços servis de tipo feudal, mas aprisionou-os na moderna servidão capitalista. O servo feudal trabalhava nas terras do senhor durante um certo período do ano, durante o qual deveria entregar em espécie uma certa quantidade de produto. No tempo restante, era livre para cuidar da sua subsistência, produzindo localmente os próprios alimentos, vestimentas, utensílios, ferramentas, moradias, etc.

A reforma de 1861 instituiu a propriedade capitalista da terra. Os camponeses foram obrigados a comprar a terra e os bens de que necessitavam e a vender sua produção no mercado. Os lotes foram divididos em porções mínimas, insuficientes para prover o sustento das famílias. O preço dos produtos agrícolas caía e o das manufaturas aumentava. Os pequenos proprietários tinham que trabalhar cada vez mais para manter o já precário nível de vida de que desfrutavam. Os camponeses pobres (mujiques) se endividaram progressivamente e se tornaram arrendatários dos grandes proprietários. Os nobres a princípio detestaram as reformas, mas logo se viram na condição de poder adquirir mais terras do que tinham antes. Os mujiques transformaram-se num proletariado rural sem terra e superexplorado. Apenas uma pequena fração de camponeses prosperou, convertendo-se numa camada de médios proprietários denominados “kulaks”.

A superexploração dos mujiques elevou a exportação russa de cereais para a Europa em 140% entre 1861 e 1876. O lucro dos grandes proprietários aumentou enormemente. Para fugir da superexploração no campo, os mujiques emigraram em massa para as cidades. A população urbana do Império passou de 6 para 18,3 milhões entre 1863 e 1914. Nas cidades, os migrantes se tornaram proletários industriais. A metalurgia e a indústria têxtil se desenvolveram aceleradamente em São Petersburgo, capital do país, e também em Moscou e em Kiev, em menor escala. Com grande investimento de capital francês, inglês, alemão e belga, a Rússia logo se tornaria também uma nação industrial.

É sintomático que no mesmo ano em que acontece a abolição da servidão na Rússia (1861) tenha início a Guerra de Secessão nos Estados Unidos. Nos dois extremos do mundo, Rússia e Estados Unidos, destinados a serem as maiores potências do século XX, o avanço em direção ao capitalismo encontra um mesmo marco no calendário. O capitalismo necessita que a força de trabalho seja libertada dos laços escravistas e feudais para se desenvolver enquanto sistema de extração de mais-valia mediatizado pela compra e venda entre “iguais”.

O desenvolvimento da cultura russa

Além da abolição da servidão, as reformas de Alexandre II outorgaram liberdade de organização ao ensino superior, revogando a tutela do clero sobre as universidades. Uma camada letrada começou a despontar nas cidades. Muitos intelectuais russos, oriundos da aristocracia e das classes burguesas, passaram a travar intercâmbio com a intelectualidade européia. Os ideais românticos e nacionalistas da burguesia européia tiveram eco no surgimento de uma consciência nacional russa moderna, marcada por um forte misticismo de origem popular. Era a época em que a “alma nacional” estava sendo “descoberta” (ou melhor, inventada) em vários países da Europa, especialmente os menores, mais atrasados e subjugados a impérios estrangeiros, mas também na própria Rússia. Nos meios intelectuais russos, acreditava-se na “missão” da Rússia de salvar a humanidade.

A partir da década de 1880, uma vibrante literatura russa conquistaria renome internacional, projetando autores que se tornaram clássicos universais. Desde o legendário poeta Alexander Puchkin, morto em duelo em 1837, considerado o Dante ou o Shakespeare da Rússia, até o tempestuoso e arrebatador Fiódor Dostoiévski (1821-1881), o popularíssimo Leon Tolstoi (1828-1910), e um dos inventores do conto e do teatro modernos, Anton Tchecov (1860-1904); os autores russos se tornaram sinônimos de uma literatura de profundidade psicológica e existencial inigualável.

Nas artes em geral a Rússia se mostrou capaz de produzir obras tão sofisticadas quanto as das culturas mais avançadas da época. As composições de Piotr Tchaikovski (1840-1893) foram executadas nos grandes teatros europeus ao lado das de outros gênios contemporâneos como Wagner e Verdi. As companhias de ópera e ballet e as orquestras dos teatros Bolshoi (fundado em 1776) e Mariinsky (fundado em 1860 e rebatizado como Kirov depois da Revolução) firmaram uma reputação de excelência no cenário mundial que se mantém até hoje.

Até mesmo nas ciências naturais os russos se tornaram capazes de produzir inovações e descobertas tão fundamentais quanto as que eram desenvolvidas nos laboratórios das potências européias. Para ficar em apenas um exemplo, o químico Dmitri Mendelev (1834-1907) desenvolveu um sistema para classificar os elementos químicos a partir do seu peso atômico, criando o primeiro esboço daquilo que ficaria conhecido como tabela periódica e prevendo a descoberta de novos elementos.

A intelectualidade e os movimentos revolucionários

Essa cultura vívida e sofisticada se desenvolvia, as classes abastadas se tornavam ainda mais ricas, a economia do país crescia; mas a situação da maioria da população piorava. A crescente pauperização dos camponeses, as condições de vida do proletariado urbano (as jornadas de trabalho freqüentemente chegavam a 14 horas diárias, os salários eram miseráveis, as habitações precárias), a corrupção generalizada do Estado, o monopólio das carreiras de prestígio pelas famílias aristocráticas, o fausto da nobreza e da autocracia, a persistência do absolutismo, a opressão das nacionalidades, a completa ausência de liberdades civis e políticas; tudo isso exasperava a intelectualidade pequeno-burguesa das cidades. Nos círculos cultos de estudantes universitários e pequeno-burgueses, desenvolvem-se os germes dos primeiros movimentos revolucionários, na década de 1870.

O primeiro movimento significativo foi chamado de “narodnik” (da palavra russa “narod”, que significa povo), comumente traduzido como “populista”. Os narodnik tentaram dirigir-se às camadas mais exploradas do povo, ao campesinato, para despertá-lo para a necessidade de lutar contra o regime. Sonhavam reproduzir na Rússia as revoluções que já haviam acontecido na Europa, pondo fim ao absolutismo e ao feudalismo e proclamando a república. Sonhavam também com um vago ideal de socialismo utópico, baseado nas comunas rurais das aldeias (chamadas “Mir” em russo).

Os mujiques permanceram surdos aos apelos dos narodnik, incapazes de enxergar-se como classe (e menos ainda como classe revolucionária) e de ver o seu “paizinho Czar” como opressor. Inconformados, os narodnik partiram diretamente para a conspiração. Planejaram tomar o poder primeiro, para que o povo os seguisse depois. Organizaram-se sociedades secretas (dentre as quais a “Vontade do povo” e sua fração “Terra e Liberdade” ficaram famosas pela audácia) e planejaram-se atentados terroristas.

A escalada terrorista teve seu auge a partir de 1878. Generais, ministros, governadores e o próprio Czar foram acossados por franco-atiradores, granadas, carruagens que explodiam pelos ares. A maior parte da população ignorava ou não compreendia esses acontecimentos. Enquanto o povo permanecia passivo, a polícia caçava febrilmente os terroristas, suas redes de apoio, e mesmo os suspeitos de serem simpatizantes. Finalmente, o próprio Czar foi morto a tiros em 1881, depois de três atentados fracassados.

A reação se fez sentir imediatamente. As reformas do Czar assassinado, mesmo tímidas como foram (a concentração da terra na verdade se acentuou), haviam desagradado a nobreza, que clamava por um endurecimento do regime. O novo Czar, Alexandre III, acatou tais conselhos e instituiu a Okrana, a polícia secreta, encarregada de perseguir os revolucionários. Uma repressão feroz se abateu sobre os meios intelectuais. Houve dezenas de enforcamentos, um número ainda maior de exilados e milhares de presos foram enviados à Sibéria. Dentre os condenados ilustres à Sibéria, estiveram o escritor Dostoiévski e o pensador Tchernichevski (1828-89). A Rússia, que já exportava escritores brilhantes, passou a exportar também revolucionários ardentes e tiranicidas apaixonados. Depois da primeira safra de narodnik, vieram os anarquistas como Bakunin (cuja liderança rivalizou com Marx na direção da Associação Internacional dos Trabalhadores, a 1ª Internacional), Nechaiev e Kropotkin, todos forçados a se exilar na Europa.

Num novo complô contra o Imperador, em 1887, desbaratado antes de ser desencadeado, foi preso e enforcado o estudante Alexander Ulianov, de 21 anos, membro de uma organização terrorista. Seu irmão, Vladimir Ilitch Ulianov, então com 17 anos, passaria à história como Lenin, e seria bem sucedido onde Alexander falhou, adotando porém uma estratégia política completamente diferente.

É preciso destacar ainda a ocorrência dos “pogroms”, as perseguições aos judeus, tradicional bode expiatório dos regimes autoritários. Os judeus foram proibidos de residir nas grandes cidades, ou confinados em guetos e também forçados a migrar para a Polônia. Foram hostilizados pela população, muitos foram mortos, tiveram suas lojas depredadas, etc. A Okrana forjou os “Protocolos dos sábios de Sião”, um suposto plano dos judeus para conquistar o mundo, usado como pretexto para perseguir os judeus, os intelectuais e os revolucionários (na época essas três palavras eram muito freqüentemente sinônimos).

O movimento socialista e os partidos

Os 30 anos que separam a conspiração de Alexander da Revolução de Vladimir foram marcados pelo crescimento da industrialização, pelo desenvolvimento do movimento operário e pela difusão do socialismo. Em nenhum outro país como na Rússia a profecia de Marx de que “o capitalismo cria seus próprios coveiros” (a classe operária) seria mais verdadeira. A industrialização russa, tardia e acelerada, reunia em grandes fábricas (a lendária metalúrgica Putilov, em São Petersburgo, tinha mais de 10 mil operários, número assombroso para a época) um proletariado fortemente concentrado e submetido a uma exploração brutal. As jornadas eram longas, os salários eram baixos, pagos com atraso e corroídos por multas e punições arbitrárias dos patrões. Essas imensas massas humanas rapidamente desenvolviam a consciência da sua condição comum de exploração e da necessidade de organização e luta coletiva.

Já na década de 1870 começam as greves e manifestações operárias, violentamente reprimidas (os sindicatos eram proibidos e também qualquer tipo de organização ou mesmo reunião política). Também nessa década, os narodnik e os anarquistas começam a militar entre os operários. Na década seguinte formam-se as primeiras organizações operárias, todas clandestinas. O movimento toma impulso quando as idéias socialistas lhe fornecem uma doutrina, explicando o papel da classe operária na História, ou seja, sua condição protagônica na superação do capitalismo e da sociedade de classes. Os compactos batalhões do proletariado russo ofereciam terreno fértil para a semeadura das idéias socialistas.

“O Capital” havia sido publicado em russo em 1872; os grupos marxistas revolucionários se formam na década de 1890. O primeiro Congresso das organizações socialistas russas acontece em 1894, com o intuito de fundar um partido. Todos os participantes foram imediatamente presos. A militância socialista só poderia prosseguir na clandestinidade. A repressão não diferenciava entre os grupos narodnik e anarquistas, com suas táticas terroristas, e os socialistas, com seu paciente trabalho de organização entre os operários. Eram todos considerados criminosos e como tais eram enforcados, presos, mandados para a Sibéria ou exilados.

O segundo Congresso somente aconteceria em 1903, em Londres, resultando na fundação do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR). Dele participaram nomes como Giorgi Plekhanov, introdutor do marxismo na Rússia, Vera Zasulitch, veterana revolucionária que fora terrorista narodnik na juventude, e o jovem mas já destacado Lenin. Esses três nomes integravam a redação da revista “Iskra” (Centelha), que publicava artigos de teoria marxista. Foi nessa revista que Lenin publicou o “Que fazer?”, obra em que expõe sua concepção de como deveria funcionar o partido.

Para Lenin, o partido deveria ser composto de revolucionários profissionais, ou seja, militantes clandestinos, inteiramente dedicados à causa da revolução, dispostos a mudar de fábrica para fábrica, de cidade em cidade, organizando greves e círculos operários, promovendo comícios e panfletagens, divulgando as publicações do partido e coletando fundos para a organização, recolhendo notícias das diversas bases e distribuindo informes da situação nacional e internacional.

Na votação que se seguiu sobre os critérios de filiação ao partido, a proposta de Lenin obteve a maioria, enquanto a ala liderada por Iuri O. Zederbaum (Martov), que propunha um critério mais frouxo de filiação, admitindo simpatizantes sem tarefas definidas, ficou em minoria. O partido acaba dividido em duas alas, a da maioria (“bolchevique”, em russo) e a da minoria (“menchevique”). Essa divisão quanto à questão organizativa refletia uma divergência política de fundo em relação à concepção programática. Enquanto a ala menchevique se aproximaria do reformismo e da colaboração com a burguesia, os bolcheviques mantiveram a inflexível linha revolucionária.

O partido de tipo proposto pelos mencheviques é adequado à concepção “etapista” de revolução. Nessa concepção, deveria haver primeiramente uma revolução burguesa na Rússia e somente depois a revolução socialista. A Rússia deveria passar preliminarmente por uma revolução capitalista, sob a égide da burguesia, a quem os trabalhadores deveriam seguir, para somente depois, num momento posterior, num capitalismo desenvolvido e num regime democrático-burguês consolidado, colocar-se a tarefa de disputar o poder. O partido de tipo proposto pelos bolcheviques, ao contrário, é um partido preparado para a guerra implacável contra o regime burguês. Os bolcheviques partiam da caracterização correta de que a burguesia russa era demasiado fraca para lutar contra o czarismo e pior, atavicamente predisposta a se aliar com este para esmagar as classes subalternas. Desse modo, a Revolução anti-czarista na Rússia seria liderada pelo proletariado, que, das reivindicações políticas democrático-burguesas, passaria logo em seguida à tomada do poder e às medidas transicionais socialistas (reforma agrária, estatizações, etc.).

As duas alas seguiriam atuando dentro do mesmo partido, disputando sua direção a cada Congresso e aplicando separadamente suas respectivas linhas políticas, até 1912, quando as divergências se provaram inconciliáveis a ponto de determinar a formação de dois partidos distintos. Curiosamente, o grupo bolchevique logo se tornaria minoria (paradoxo explicável, pois era muito mais difícil recrutar revolucionários profissionais do que “simpatizantes” socialistas) em relação aos mencheviques e assim prosseguiria até 1917.

Outro agrupamento que desempenharia papel importantíssimo no período subseqüente era o Partido Socialista-Revolucionário (que não era marxista, apesar do nome), mais conhecido como SR (seus militantes eram chamados “esseristas”). Surgido no início do século XX das cinzas dos narodnik, o SR defendia o socialismo utópico baseado na Mir, e era extremamente popular entre os camponeses e a pequena-burguesia das cidades. Dada a debilidade da burguesia liberal, que temia muito mais a sublevação das classes subalternas do que o pesado tacão da repressão, e portanto não se organizava em partidos de oposição significativos, o SR era na verdade o maior partido da Rússia. Combinava a luta parlamentar com a tática terrorista. Sua formidável organização clandestina de combate causaria baixas importantes nas fileiras da classe dominante, assassinando ministros e aristocratas por anos a fio.

O fato de que o socialismo marxista tenha apresentado uma tática mais eficiente e historicamente superior ao terrorismo, qual seja, a organização da classe operária diretamente no “chão de fábrica”, não significava que ela tivesse sido imediatamente adotada por todos. O terrorismo continuaria sendo uma praga na vida política russa por décadas. O POSDR conviveu com os SR e os anarquistas, pequena porém estridente minoria, durante os longos anos de preparação até a Revolução de Outubro.

A Revolução de 1905

Os primeiros anos do século XX foram marcados por um forte ascenso do movimento operário. O ritmo do movimento pode ser medido pelo número de vezes em que o governo usou tropas para reprimir greves e manifestações. Foram 19 vezes em 1893. Esse número cresceu para 50 em 1899, 33 em 1900, 241 em 1901, 522 em 1902 e 427 em 1903. Esse crescimento impressionante das mobilizações atesta a imensa combatividade da classe operária russa. O ascenso do proletariado, ao lado das mobilizações estudantis, das agitações esseristas no campo e do levantamento das nacionalidades oprimidas, colocava um desafio aberto à capacidade do regime imperial de administrar o país.

A saída do Czar para contornar essa situação difícil não poderia ser pior: a guerra contra o Japão. Como parte do impulso em direção ao Oriente, a ferrovia Transiberiana é completada em 1904, ligando Moscou a Vladivostok, no Pacífico, com acesso a Port Artur (Lüshun), cedido pela China. O Japão sentiu-se provocado pela penetração russa em sua área de influência e declarou guerra ao Impéro russo. Era a oportunidade que o Czar esperava para mobilizar o entusiasmo popular em defesa da “mãe Rússia”, galvanizar a nação e silenciar a oposição interna. No entanto, o tiro saiu pela culatra. O Japão venceria a guerra (a armada russa no Pacífico foi completamente destruída), o que foi motivo de espanto mundial.

O conflito seria encerrado de maneira humilhante para os russos em agosto de 1905. Antes disso, a população sofreu com as dificuldades econômicas provocadas pelo esforço de guerra. Para que se tenha idéia das dificuldades que a guerra acarretava, um navio da frota do Mar Negro (portanto muito distante do teatro de operações), o encouraçado Potemkin, foi tomado por um motim dos marinheiros, que se rebelaram contra as privações e o sistema de castigos corporais vigente na Marinha. O episódio do Potemkin se tornaria célebre (virou filme em 1925) e foi encerrado com o exílio dos amotinados na Romênia.

O recrudescimento das dificuldades econômicas provocado pela guerra com o Japão aumentou a disposição das massas populares. Uma marcha em direção ao próprio palácio do Czar foi organizada por um padre no dia 9 de janeiro de 1905, com o objetivo de entregar uma petição ao soberano. Reivindicava-se a redução da jornada de trabalho nas fábricas, o direito de organização, liberdade de imprensa, Constituição e sufrágio universal. Os operários marcharam com suas famílias, mulheres, crianças e idosos, carregando ícones religiosos e entoando cânticos de louvor ao “paizinho Czar”. Foram recebidos à bala pelos cossacos da guarda imperial. Houve centenas de mortos e milhares de feridos.

O “domingo sangrento” marcou o divórcio definitivo entre a população de São Petersburgo e a autocracia. Dali por diante não poderia haver senão ódio e desejo de vingança por parte do povo contra o tirano. O massacre debilitou as organizações populares na capital, mas por todo o país aconteciam greves, manifestações, motins e atentados contra autoridades. A população de São Petersburgo somente voltaria a se mobilizar em outubro de 1905. Os gráficos de Moscou entram em greve, exigindo o pagamento dos sinais de pontuação. Imediatamente, a greve ganha a adesão das outras categorias e das demais cidades. Logo, a capital também está em greve geral. Grandes massas se mobilizam novamente. Dessa vez, porém, os operários estão melhor preparados. Ao invés de ícones religiosos, erguem-se barricadas nas ruas.

No processo de organização da greve os operários de cada fábrica, cada bairro, cada setor da cidade, enviam representantes para um comando de greve centralizado, o “conselho dos delegados operários”. O conselho (“soviet” em russo), cujos delegados podiam ser revogados a qualquer momento por suas bases, materializava a forma mais acabada de democracia direta e foi a mais importante inovação política do movimento socialista russo. Nascido diretamente da iniciativa das massas, o seu surgimento podia ser tomado como indicador da elevada maturidade da consciência de classe do proletariado russo. O presidente do primeiro soviet foi Lev D. Bronstein (Trotsky), então estudante de matemática, que militava entre os operários e não pertencia nem aos bolcheviques, nem aos mencheviques.

O governo enviou tropas para sufocar o soviet e houve enfrentamento com os operários armados. Os trabalhadores resistiram heroicamente, mas a sua inexperiência e a falta de um projeto estratégico (o soviet não se propunha derrubar o governo e tomar o poder) culminaram na derrota do movimento. Os líderes foram presos e o movimento refluiu.

Esse conjunto de episódios ficaria conhecido como a “Revolução de 1905”, a qual Lenin mais tarde denominou o “ensaio geral” para a Revolução de Outubro. Logo em seguida a essa primeira onda revolucionária, o Czar Nicolau II (entronizado em 1894), que sentiu a força e o perigo da insatisfação popular, foi obrigado a fazer concessões. Foram convocadas eleições para uma Duma (Parlamento), que no entanto somente se reuniria em 1907 (quando os deputados revolucionários já haviam sido devidamente expurgados). O primeiro-ministro Stolipyn decretou uma nova reforma agrária, distribuindo mais terras aos camponeses, porém não ainda em quantidade suficiente.

Ao mesmo tempo em que acenava com essas concessões, o governo recrudescia a repressão, obrigando a maior parte das lideranças (entre as quais Lenin e Trotsky) a se exilarem. O movimento operário entra refluxo e somente volta a se levantar às vésperas da 1ª Guerra Mundial.

Às vésperas da Revolução

Em meados de 1917, a população russa já estava exausta com mais uma guerra, dessa vez muito mais longa e mortífera. Havia escassez de víveres e racionamento, sendo que a prioridade era dada aos soldados na linha de frente. Cansados de lutar, porém, os soldados desertavam em massa, voltando para suas aldeias e cidades. Os regimentos se decompunham caoticamente e a hierarquia do exército se esfarelava. A economia também estava desorganizada, a produção em declínio, havia gargalos de abastecimento em todos os setores.

O cansaço com a guerra era generalizado e também a insatisfação com o regime. A agitação política se intensificava e os rumores de uma nova Revolução cresciam. Logo os soviets começariam a ressurgir espontaneamente no seio das massas. A população em geral (e os soldados em especial) queria o fim da guerra. Os camponeses queriam mais terra. E todos queriam pão. Só havia um grupo político que, sintonizado com as necessidades populares, agitava sistematicamente essas três palavras de ordem, “pão, paz e terra”: o partido bolchevique. E mais do que isso, os bolcheviques indicavam também por meio de outro slogan o único caminho pelo qual essas três reivindicações poderiam ser atingidas: “todo poder aos soviets!” Era a senha da Revolução.

Daniel M. Delfino
24/10/2007