25.10.07

A Revolução Russa passo a passo

A Rússia na 1ª Guerra Mundial

O Partido Bolchevique, juntamente com os setores de esquerda da Internacional Socialista (II Internacional), lutou arduamente para que o movimento socialista se posicionasse de forma clara contra a deflagração do conflito entre as potências imperialistas. Em caso de eclosão da guerra, os socialistas deveriam evitar que os trabalhadores fossem recrutados para matar seus irmãos de classe de outros países; e deveriam também derrubar a burguesia em cada país. Essa resolução, tirada pela Internacional em 1907 e reiterada seguidas vezes até 1912, mesmo que com atenuantes, não foi cumprida. A guerra foi deflagrada em 1914. Os deputados dos partidos socialistas votaram a favor da guerra nos parlamentos burgueses de cada Estado. A II Internacional ficou politicamente desmoralizada e inoperante. A Europa mergulhou na carnificina e os trabalhadores chacinaram uns aos outros aos milhões, em nome dos lucros da burguesia que os explorava em cada país.

A guerra opunha dois grandes blocos: a “Entente” (Inglaterra, França e Rússia) e a “Tríplice Aliança”, também chamada de os “impérios centrais” (Alemanha, Áustria-Hungria e Turquia). Dentre esses países, a Rússia foi o que mais sofreu com a guerra. De uma população total de cerca de 150 milhões de habitantes (as estatísticas do período não eram precisas), aproximadamente 15 milhões de homens foram mobilizados ao longo do conflito. A tecnologia de guerra havia sido aperfeiçoada pelas conquistas da II Revolução Industrial, mas as táticas militares não haviam sido atualizadas. Os generais russos lançavam suas tropas em cargas de cavalaria e de infantaria contra metralhadoras, canhões, morteiros, granadas, trincheiras, tanques, arame farpado. Mais de 5 milhões de soldados foram mortos, aprisionados ou desaparecidos.

Para sustentar o imenso contingente mobilizado nesse estúpido morticínio, o conjunto da sociedade também teve que arcar com sua parte no esforço de guerra. A produção econômica foi reestruturada para priorizar o abastecimento das tropas na frente de batalha. Foi instituído o racionamento. Ítens básicos como o pão começaram a faltar para a população em geral. Depois dos primeiros anos de patriotismo febril, o entusiasmo com a guerra diminuiu drasticamente.

A Revolução de Fevereiro

Todos ainda tinham viva a memória dos acontecimentos de 1905, quando as dificuldades trazidas pela guerra contra o Japão levaram à mobilização da população e ao surgimento do “conselho dos delegados operários” (soviet) de São Petersburgo. No início de 1917, o mesmo fenômeno começa a se repetir, mas com muito maior volume e intensidade: greves, manifestações, deserções, motins. Multidões imensas se mobilizam e tomam as ruas. A situação se agudiza quando as forças da repressão sucessivamente se recusam a atirar contra o povo. Os destacamentos da polícia, os soldados e até mesmo os cossacos desobedecem as ordens e aderem à mobilização popular.

Na frente de batalha, os soldados destituem os oficiais do comando, elegem seus próprios representantes e deliberam a retirada. Todos desejam voltar para suas cidades e aldeias. Com a deserção de grande parte do exército, que era composto majoritariamente por camponeses, o movimento se irradia por todo o interior do país. Formam-se soviets de operários, camponeses e soldados e marinheiros.

Em 23 de fevereiro (8 de março no calendário ocidental - a Rússia seguia o calendário juliano, que àquela altura estava atrasado em 13 dias em relação ao calendário gregoriano usado no Ocidente; somente depois da Revolução, em fevereiro de 1918, adotou-se o calendário ocidental), Dia Internacional de Luta das Mulheres, a capital São Petersburgo está em greve geral. Centenas de milhares de pessoas marcham pelas ruas. Nos dias seguintes, as praças e principais locais públicos permanecem ocupados pelas multidões, que ninguém consegue fazer recuar. O governo está sem iniciativa. Tendo suas ordens desobedecidas em todos os setores, o Czar abdica em 2 de março. O herdeiro do trono, ainda criança e hemofílico, não pode assumir. O irmão do Czar, próximo na linha sucessória, recusa o trono.

Os representantes das classes dominantes, reunidos na Duma (Parlamento), são forçados pela mobilização popular a constituir um Governo Provisório, que fica sob a chefia do Príncipe Lvov. As primeiras medidas do governo são a redução da jornada de trabalho para 8 horas e a concessão de liberdades civis. Os partidos revolucionários saem da clandestinidade e passam a atuar abertamente. Em todas as cidades e nos campos multiplicam-se os soviets. As assembléias são praticamente diárias e todos têm o direito à palavra. A Rússia se torna subitamente o país mais democrático do mundo. Desde o início vigora o “duplo poder”, ou seja, a vigilância cerrada dos soviets, órgãos do poder popular, sobre o governo oficialmente constituído.

O Governo Provisório

A composição do Governo Provisório é bastante heterogênea. Dele fazem parte os monarquistas, a burguesia (agrupada no partido Constitucional Democrático, apelidado “cadete”), a pequena burguesia, os intelectuais e até o partido SR, que tem o direito de nomear alguns ministros. Os mencheviques, que neste momento estão em maioria nos soviets, apóiam o novo governo. Para os socialistas moderados, o Governo Provisório era a materialização de seu programa histórico: a revolução burguesa na Rússia, que consideravam uma etapa prévia indispensável para a construção do socialismo.

Em seu doutrinarismo e distanciamento das massas, esses socialistas tornaram-se absolutamente cegos para a realidade concreta. A burguesia era extremamente débil e completamente submissa à Inglaterra e à França, cujos empréstimos haviam financiado a industrialização russa. Esses laços com o imperialismo faziam com que a prioridade da burguesia fosse a continuidade da guerra contra os impérios centrais. Ora, o fim da guerra era exatamente o que as massas mobilizadas mais desejavam. Os socialistas moderados mantiveram-se surdos ao clamor popular e com isso abriram caminho para a própria derrocada.

Se os moderados tinham a plena convicção da necessidade de apoiar o Governo Provisório, os revolucionários ainda não tinham uma posição definida em relação a ele. Essa situação só muda em abril, quando Lênin volta do exílio e publica as “Teses sobre as tarefas do proletariado na presente Revolução”, que se tornariam célebres como as “Teses de abril”. Nelas Lênin expõe o caráter burguês e pró-imperialista do Governo Provisório e a necessidade de derrubá-lo para tirar a Rússia da guerra. O poder deveria passar à classe trabalhadora, através dos soviets. A Rússia ainda não estava madura para o socialismo, mas sua revolução romperia um elo frágil da cadeia do capital e precipitaria a revolução nos países avançados. Seria preciso convocar os socialistas do mundo inteiro para construir uma III Internacional revolucionária que lutasse pelo socialismo. O novo governo adotaria medidas transicionais (estatização dos bancos, redução da jornada). A terra seria estatizada e distribuída aos camponeses para ser administrada pelos soviets rurais.

Lênin teve enorme dificuldade para convencer o partido a adotar suas teses. Entretanto, foi bem sucedido, e a partir da adoção da nova orientação, a atuação do partido dá um grande salto de qualidade. Os bolcheviques passam a agitar sistematicamente as palavras de ordem de “pão, paz e terra”. Com isso, passam a ser vistos pelas massas como aqueles que defendem suas reivindicações mais sentidas. Aos poucos, começam a tornar-se maioria nos soviets, num processo de crescimento avassalador e inexorável. A partir de maio, a organização Interdistrital de Trotsky começa a fundir-se com o partido bolchevique (o Congresso da Unificação aconteceria em junho) e seu dirigente ganha um lugar no Comitê Central (CC).

A Revolução de Outubro

Em junho de 1917 acontece na capital o I Congresso dos Soviets de toda a Rússia, com representantes das organizações populares de todo o país. Após mobilizações impressionantes das massas, convocadas pelos soviets, os ministros mais impopulares do Governo Provisório são obrigados a renunciar e forma-se um novo gabinete sob a chefia de Kerenski, do partido SR. O Governo Provisório se equilibrava no poder fazendo promessas duvidosas às massas. Prometeu-se convocar uma Assembléia Constituinte que decidiria sobre a questão da reforma agrária. Mas no campo os soviets de camponeses preparavam-se para apossar-se das terras por sua própria conta e a qualquer momento. Prometeu-se também acabar rapidamente com a guerra por meio de uma ofensiva fulminante contra os impérios centrais. Mas a ofensiva foi um fiasco total e o governo de Kerenski se desmoralizou.

Diante dessa desmoralização, parte da guarnição de São Petersburgo decidiu sublevar-se. Os bolcheviques foram contra, pois entendiam que a hora para tomar o poder ainda não havia chegado. A insurreição aconteceu, em julho, e foi derrotada. Kerenski endurece a repressão e revoga as medidas democráticas de fevereiro. Trotsky é preso e Lenin se refugia na Finlândia. Mas a população já não aceita mais as medidas repressivas e protesta. Kerenski perde popularidade.

Setores da classe dominante, inconformados com a “anarquia” que a seu ver reinava na capital, decidem-se por um golpe de força. O general Kornilov desloca suas tropas do front em direção à capital, ainda em julho. Seu plano é aplicar um golpe de Estado e passar a fio de espada os operários dos soviets e os militantes revolucionários. Rapidamente, os bolcheviques organizam a defesa da capital. Formam-se milícias de operários e soldados. Os batalhões convocados por Kornilov desertam à medida em que se aproximam da capital. Muitos se confraternizam com seus irmãos da capital e aderem aos soviets.

Apesar da forma improvisada como são constituídas, as milícias vermelhas são infinitamente superiores em entusiasmo e motivação. O golpe de Estado é derrotado e os operários e soldados ganham enorme confiança em suas próprias forças. Os bolcheviques, que se destacaram na organização das defesas da cidade, tornam-se maioria nos soviets da capital. Lenin e Trotsky retornam. A partir de setembro, o partido desenvolve um intenso e paciente trabalho de organização já tendo como meta a tomada do poder. Cria-se um Comitê Revolucionário Militar (CRM), sob a chefia de Trotsky, e forma-se uma Guarda Vermelha composta de soldados e operários armados.

Esses trabalhos de organização prosseguem até outubro. A data da tomada do poder é marcada para coincidir com a realização do II Congresso dos Soviets de toda a Rússia. Cientes de sua superioridade numérica, os bolcheviques ordenam à Guarda Vermelha a tomada do Palácio de Inverno, sede do Governo Provisório. Isto seria a concretização da palavra de ordem de “todo poder aos soviets!” O governo de Kerenski é derrubado praticamente sem oferecer resistência, em 25 de outubro.

A tomada do poder pelos bolcheviques foi recebida em todo o mundo com grande espanto e incredulidade. Em nome do órgão Executivo dos soviets reunidos em Congresso, forma-se um Conselho dos Comissários do Povo, composto por dirigentes bolcheviques. Os SR de direita e os mencheviques se colocam na oposição. A ala esquerda dos SR e parte dos anarquistas adere ao novo governo. A burguesia, incrédula, espera pelos acontecimentos.

A luta pela paz

Cumprida a tarefa da tomada do poder, o novo governo passa a atender as reivindicações populares. É enviado um pedido de abertura de negociações de paz (a proposta da chamada “paz sem anexações e reparações” e a divulgação dos tratados diplomáticos secretos tiveram grande impacto no exterior) com os impérios centrais e publicado um decreto de entrega da terra aos camponeses. Os soviets de camponeses, onde os SR de esquerda tem a maioria, encarregam-se de concretizar a reforma agrária. Já a obtenção da paz seria bem mais problemática.

As negociações com os impérios centrais arrastam-se de dezembro de 1917 até fevereiro de 1918. Lenin não tinha nenhuma ilusão quanto a uma possível aceitação do regime dos soviets pelo imperialismo. A burguesia internacional (e também a da Rússia) raciocinava como se se tratasse de um simples motim que seria rapidamente esmagado, como fora a Comuna de Paris em 1871, e trabalhava ativamente para que isso se repetisse. A única chance da Revolução Russa sobreviver estava na deflagração da Revolução socialista na Europa, cujo próximo passo seria a Revolução alemã. Com extraordinária lucidez política, Lenin e os bolcheviques subordinavam suas táticas a essa estratégia da Revolução internacional.

Foi preciso fazer concessões ao imperialismo alemão para conseguir o fim da guerra. O tratado de Brest-Litovsk foi assinado em 23 de fevereiro. A Alemanha ocupou a Polônia, as repúblicas bálticas e parte da Ucrânia (a Finlândia tornou-se independente). Havia um grande risco nessa concessão, pois a entrega desses territórios abria caminho para uma possível invasão alemã a São Petersburgo. Além disso, a retirada da Rússia da guerra atraiu a hostilidade do ocidente contra a Revolução, mesmo das massas operárias que, intoxicadas pelo chauvinismo, consideravam a paz uma traição à causa da Entente (isso só mudaria com o fim da guerra em novembro de 1918 e a invasão do conjunto do imperialismo contra a Rússia soviética).

Apesar disso tudo, os bolcheviques sabiam que a Alemanha não conseguiria lutar sozinha (o Império Austro-Húngaro e o Turco Otomano se esfacelam e abandonam a guerra) por muito tempo contra a Entente, reforçada pela entrada dos Estados Unidos e seu poderio esmagador. A derrota da Alemanha abriria caminho para a queda do governo do Kaiser e para a possível tomada do poder pelos socialistas alemães. A Revolução alemã continuaria alimentando a esperanças de todos por anos a fio e era em nome dessa esperança que os bolcheviques sabiam que precisavam se manter no poder.

Enquanto essa ocasião não chegava, era preciso administrar a vida cotidiana do país. A situação era catastrófica após anos de guerra ruinosa. A desorganização era geral e tudo precisava ser improvisado: a distribuição de víveres, o fornecimento de combustível e matérias primas, a circulação de trens, os bondes urbanos, os telégrafos, as escolas, os hospitais. Os SR de direita e mencheviques, hostis ao novo governo, controlavam os principais sindicatos de servidores públicos e de setores estratégicos, como o dos ferroviários, e usavam essa força para desestabilizar os bolcheviques. Greves e sabotagens paralisavam as iniciativas dos Comissários do Povo. A burguesia, por sua vez, tentava paralisar a economia. As fábricas eram fechadas, os estoques de matérias-primas escondidos, as mercadorias tiradas de circulação para que se especulasse com seus preços. Não foi em função de um programa premeditado de transformação socialista precipitada, mas para manter a economia minimamente funcionando, que se adotaram as medidas de desapropriação e estatização das empresas nesse primeiro período, entregando-as à direção dos operários.

Apesar das práticas desleais da oposição, os bolcheviques aprofundaram a democracia obtida em fevereiro do ano anterior e permitiram que os outros partidos funcionassem e que seus jornais fossem publicados, mesmo os que pregavam a derrubada do governo pela força. As medidas repressivas somente eram adotadas em casos de emergência extrema. A sordidez dos opositores não tinha limites. As adegas da nobreza foram saqueadas e houve uma “epidemia” de embriaguez desenfreada na capital. Os pelotões enviados para vigiar as adegas, por sua vez, também embriagavam-se. Foi preciso decretar a pena de morte para quem roubasse bebidas a fim de controlar a situação. Os criminosos comuns, que haviam sido libertados sob a promessa de regeneração, voltaram a delinqüir e tiveram que ser encarcerados novamente, não sem antes provocar toda sorte de confusão. Os anarquistas, sob o pretexto de anti-autoritarismo, admitiam inadvertidamente a infiltração de espiões e terroristas a serviço da contra-revolução em seus grupos, de modo que o governo teve que desarmar suas milícias. Os monarquistas pretendiam libertar a família imperial aprisionada nas proximidades da Sibéria e restaurar o czarismo, o que obrigou o soviet local a decretar a execução dos membros da família Romanov, em julho de 1918.

A Guerra Civil revolucionária

As dificuldades dos bolcheviques para reativar a vida do país eram interpretadas pela oposição como um vazio de autoridade, o que dava a oportunidade para toda sorte de aventuras. Generais monarquistas começam a formar batalhões de cossacos e oficiais do antigo exército para derrubar o governo. Formam-se tropas de “guardas brancos” em várias partes do país (foram tais tropas que tentaram libertar o Czar). Os diplomatas ocidentais colaboram com a contra-revolução com o intuito de derrubar os bolcheviques, primeiro para forçar a Rússia a voltar à guerra, e depois para garantir o estabelecimento de um governo burguês que honrasse as dívidas da Rússia com o capital imperialista. A burguesia, entusiasmada, patrocina a formação de governos paralelos ao dos soviets. Para sua vergonha e desgraça, os SR e mencheviques aderem a tais governos. Terroristas a mando dos SR matam Volodarski e Uritski, membros do CC bolchevique e também o embaixador alemão, a fim de tentar provocar o reinício da guerra contra aquele país. Finalmente, o próprio Lenin é baleado em agosto de 1918.

A partir de maio de 1918, o país já vive uma guerra civil aberta, que é simultaneamente uma guerra revolucionária internacional, em função da necessidade crucial de defender as conquistas da classe trabalhadora contra a agressão imperialista. Com a rendição da Alemanha e o fim da I Guerra (novembro de 1918), Inglaterra e França estão livres para enviar tropas para invadir a Rússia, ao norte (Archangelsk) e ao sul (Criméia), respectivamente. O Japão invade o território soviético pelo oriente. Um exército branco ocupa a ferrovia transiberiana. Ao todo tropas de 14 nacionalidades invadem a Rússia revolucionária. Forma-se o “cordão sanitário” (expressão do presidente francês Clemenceau) para impedir a “contaminação” do proletariado europeu pelo bolchevismo. No período mais crítico da guerra civil, o território sob controle dos soviets reduz-se praticamente ao do antigo Principado de Moscóvia da época medieval. Por medida de segurança, a capital tem que ser transferida de São Petersburgo para Moscou.

As tropas brancas procedem com grande crueldade em todas as regiões “libertadas”. Os operários são sumariamente fuzilados, assim como qualquer um sobre o qual recaia a mais leve suspeita de haver participado dos soviets. Além disso, os governos contra-revolucionários mostram-se extremamente corruptos. Seus generais e dirigentes comportavam-se como aventureiros vulgares, tiranetes e saqueadores. As populações locais, revoltadas com o terror dos brancos, jamais se deixam dominar e não colaboram com tais governos. Os métodos autoritários dos brancos, idênticos ou piores que os do czarismo, já não eram aceitos por seus próprios soldados, que desertavam ou passavam para o lado dos revolucionários.

De sua parte, o governo soviético é obrigado a organizar um Exército Vermelho. Trotsky, o encarregado dessa tarefa, adota um procedimento extremamente audacioso e polêmico: recrutar alguns dos oficiais do antigo exército czarista, muitos dos quais eram aventureiros de lealdade duvidosa e também odiados pelo povo, para servir à causa da Revolução, sob a justificativa de que tais homens eram os únicos elementos que detinham o conhecimento da técnica de organização militar. Em cada unidade, ao lado dos oficiais, haveria um “comissário político” (na maioria das vezes, militante bolchevique), delegado pelos soviets, encarregado de referendar as ordens e com poder de, se necessário, aprisionar ou executar os traidores, desertores e os próprios oficiais.

O Exército Vermelho se desdobra para enfrentar os brancos em todas as frentes. No norte, nas proximidades de São Petersburgo (a cidade esteve muito perto de ser invadida no verão de 1918 e de novo no outono de 1919); no sul, na Ucrânia, no Cáucaso e na Ásia Central; no oriente, ao longo da transiberiana. O comando móvel do exército, com Trotsky e sua equipe, se deslocava de trem pelo país, levando disciplina, organização, diretrizes e, principalmente, um contagiante entusiasmo às tropas, numa das jornadas épicas mais gloriosas da História em todos os tempos.

A guerra civil se prolongou até o fim de 1920 e terminou com a vitória incontestável dos vermelhos, que recuperaram para a Rússia soviética quase todo o território do antigo Império czarista, com exceção da Polônia, Finlândia e repúblicas bálticas. Em 1919 os bolcheviques impulsionaram a criação da Internacional Comunista (a III Internacional, também chamada de “Comintern”) com o objetivo de organizar os revolucionários do mundo inteiro. Em 1920, o contra-ataque à ofensiva do general polonês Pilsudski levou o Exército Vermelho às portas de Varsóvia, na tentativa de forçar uma revolução européia; tal contra-ataque, porém, foi derrotado.

O partido em tempo de guerra

Do ponto de vista de um governo socialista, as contingências da guerra civil apresentavam dilemas excruciantes. Em janeiro de 1918 a dissolução da Assembléia Constituinte não trouxe maiores dramas de consciência a nenhum revolucionário minimamente sério. Afinal, a Assembléia, em que os SR e mencheviques tinham maioria, era um fóssil do sistema político burguês, completamente supérfluo e historicamente superado do ponto de vista do avanço da democracia, num momento em que os soviets funcionavam plenamente e expressavam de forma viva e direta toda a riqueza e diversidade das aspirações populares. Ninguém lamentou o fim da Constituinte, a não ser os próprios SR e mencheviques e os adeptos fanáticos do cretinismo parlamentar.

A situação mudou bastante de figura quando a guerra civil produziu o esvaziamento dos próprios soviets. Durante o processo revolucionário, as assembléias dos soviets haviam revelado por todo o país dezenas, centenas, milhares de ativistas capazes, oradores brilhantes, organizadores competentes, inteligências diligentes, líderes visionários (muitos dos quais aderiram ao partido bolchevique), surgidos da massa dos operários, dos estudantes e intelectuais, da pequena-burguesia revolucionária, dos camponeses, dos mananciais inesgotáveis de generosidade e voluntariedade revolucionária do povo russo, recém-libertado da tirania nas graves circunstâncias da guerra.

A maior parte dessa vanguarda foi aproveitada no Exército Vermelho, deslocada para a linha de frente da guerra civil, nas funções de comissário político e na reorganização administrativa das regiões libertadas. Nesse momento, os próprios soviets tornaram-se instituições formais, vazias. E também perigosas, pois os SR, mencheviques e alguns anarquistas passam a servir-se deles para obstruir os trabalhos do governo bolchevique. O Conselho dos Comissários do Povo foi forçado a concentrar o poder em suas mãos, revogando na prática a palavra de ordem de “todo o poder aos soviets” do ano anterior.

Além dos soviets, as diversas instituições surgidas espontaneamente no calor da revolução, os diversos conselhos nacionais de planificação da economia, de controle operário da produção, de organização dos sindicatos, das cooperativas, das organizações populares; todas essas iniciativas improvisadas e altamente democráticas tiveram que ser suprimidas para desembaraçar o governo de empecilhos que impedissem a tomada das medidas enérgicas e urgentes que a guerra civil revolucionária demandava.

Por fim, foi preciso cassar a liberdade de atuação dos partidos de oposição e parte dos anarquistas. Os opositores “socialistas” e anarquistas do bolchevismo empregavam contra o governo dos Comissários do Povo os mesmos métodos que se emprega contra o inimigo de classe, ou seja, as greves, sabotagens e atos terroristas. Seus jornais pregavam a derrubada dos bolcheviques e seus partidários atiravam contra os dirigentes do governo nas ruas. Com isso, os “socialistas moderados” do passado e alguns anarquistas colocavam-se ao lado da própria burguesia e dos generais monarquistas facínoras. Optavam pela trincheira oposta na luta de classes; tinham que ser tratados portanto como agentes da burguesia, apesar da retórica socialista democratizante e pseudo-libertária.

Foi isso o que obrigou os dirigentes bolcheviques a transformar o regime dos soviets numa ditadura do partido. Um partido que durante décadas lutara na clandestinidade contra a tirania czarista, pavimentando seu caminho ao poder com fileiras de mártires enforcados e assassinados pela repressão, foi obrigado, uma vez chegando ao poder, a colocar seus opositores também na clandestinidade. Era isto ou deixar-se derrotar pelo inimigo de classe, a contra-revolução feroz, à espreita de qualquer rachadura na armadura do governo revolucionário.

Tratava-se de uma luta de vida ou morte pela sobrevivência material da Revolução, e não de um debate utópico e abstrato sobre princípios mais ou menos democráticos. O Estado foi militarizado. Assim como os comissários políticos impunham a disciplina no exército por meio da pena de morte para desertores e traidores, o governo instituiu uma polícia política (Tcheka), encarregada de reprimir os opositores e desbaratar as conspirações, sabotagens e atentados. Em resposta ao terror branco contra-revolucionário, foi instituído o terror vermelho. A burguesia, a pequena-burguesia, os camponeses ricos, os intelectuais e opositores políticos socialistas moderados e parte dos anarquistas, todos aqueles que colaboravam com os brancos, eram também perseguidos e mortos.

Todos esses passos foram motivo de intenso e acalorado debate nos círculos dirigentes do partido bolchevique. Cada medida era arduamente debatida e lançavam-se teses e réplicas para fundamentar a adoção ou não de cada proposta. Havia polêmicas duras entre os principais dirigentes, a maior parte das quais era publicada nos jornais do partido. Num regime que se tornara um sistema de partido único, era este partido e seus fóruns a única instância democrática que funcionava e na qual era possível discutir os rumos do país.

O “comunismo de guerra”

A guerra civil foi extremamente cruel com a população em geral, já exausta com a guerra precedente. Milhões morreram vítimas dos combates e do terror branco. Na completa desorganização social que se seguiu, bandos armados percorriam o interior do país matando, roubando e estuprando, ora em nome dos brancos, ora em nome da “revolução”. Seria impossível para qualquer governo, branco ou vermelho, estabelecer-se sem impor as medidas mais autoritárias de ditadura.

Uma questão fundamental era o abastecimento. A população das cidades, os operários nas fábricas e os soldados em guerra precisavam de alimento. Sem comida, a população das cidades emigrou de volta para o campo (num país de urbanização recente, quase todas as famílias tinham parentes próximos divididos entre a cidade e o interior), provocando um grande êxodo urbano. Os camponeses já não tinham como ser pagos, pois não existia mais dinheiro que pudesse ser aceito. A produção industrial estava paralisada (o que piorou com o êxodo) e logo já não havia também sequer manufaturas para trocar com o campesinato.

É importante destacar que, do ponto de vista do camponeses, a Revolução já lhes dera o que queriam, ou seja, a propriedade da terra. Logo, tornaram-se hostis às cidades quando estas passaram a exigir o produto de seu trabalho sem ter nada para oferecer em troca. Isso criou condições propícias para a especulação. Os estoques de trigo eram açambarcados por atravessadores que se aproveitavam da escassez para enriquecer. De outro lado, bandos de saqueadores roubavam os camponeses. Muitos simplesmente se recusavam a plantar novas safras enquanto não lhes fossem dadas garantias de pagamento. A desorganização econômica produziu uma grande fome, em 1921, na qual milhões de pessoas morreram.

Com o abastecimento desarticulado, o governo organizou os “batalhões de requisição”, que iam até o campo, confiscavam o trigo dos camponeses e o embarcavam em trens para as cidades e o front. Estimulou-se a luta de classes no campo, opondo os camponeses pobres aos ricos e aos comerciantes aproveitadores. Do ponto de vista da população camponesa, não havia porém diferença prática entre os batalhões de requisição e os salteadores comuns que saqueavam sua produção. Os trens de abastecimento para as cidades eram por sua vez atacados por camponeses e por criminosos comuns.

Nessas circunstâncias um governo fraco ou vacilante teria sucumbido ante as provocações da oposição ou teria aberto caminho para golpes de Estado do primeiro aventureiro com força suficiente. O partido bolchevique, organismo vivo da revolução, teve forças para resistir e inteligência suficiente para manobrar nesse mar tempestuoso sem perder o rumo.

As práticas do partido nesse período ficariam conhecidas como “comunismo de guerra”. Houve um intenso debate para determinar se esse regime, onde tudo estava estatizado e coletivizado, poderia já ser considerado um passo em direção a uma transição socialista. Contra essa opinião, Lenin era constantemente obrigado a esgrimir sua argumentação realista e racional, acima de tudo prática: a Rússia ainda era um país atrasado e tudo o que lhe cabia fazer era sustentar as conquistas duramente obtidas até que a revolução estalasse nos países ricos. A estes sim, com sua ciência e tecnologia avançadas, sua industrialização plenamente desenvolvida, sua população urbanizada e culta, seu proletariado numeroso e politizado, caberia a tarefa de construir o socialismo. A Rússia seria tão somente o seu celeiro. Tragicamente, a Revolução alemã foi derrotada e a Rússia viu-se sozinha com a bandeira do socialismo nas mãos.

A Nova Política Econômica

A Rússia no início dos anos 1920 era um arquipélago de cidades devastadas sitiadas por um oceano de ira camponesa. Essa ira se manifestou em março de 1921. Os marinheiros da base naval de Kronstadt, vizinha a São Petersburgo, revoltaram-se contra o governo, exigindo a volta dos soviets. Temendo, por sua vez a volta da anarquia, o partido bolchevique ordenou o massacre dos revoltosos, executado por Trotsky. O simbolismo de Kronstadt foi cruel: essa base sempre apoiou os bolcheviques, sempre forneceu uma platéia entusiasmada para os discursos do próprio Trotsky e ofereceu heróis incontáveis para a marinha vermelha. Agora, uma nova geração, desprovida da experiência e da maturidade que somente se adquire nas duras provas da luta revolucionária, mas contagiada por uma insolência anarquista despropositada, tornava-se mártir dos ideais libertários que já não mais vigoravam.

Kronstadt forçou o governo bolchevique a fazer um balanço da situação. Calcula-se que os combates da guerra mundial e da guerra civil revolucionária subseqüente tenham custado a vida de 14 milhões de pessoas. Outros 17 milhões morreram de fome, frio e doenças. A população de São Petersburgo, Moscou e das grandes cidades caiu pela metade. Os operários foram reduzidos a menos de 200 mil. A produção industrial caiu a cerca de 15% do que era em 1913, último ano antes da guerra. O PIB do país perdeu 60% do seu valor (as estatísticas dos historiadores diferem, prejudicadas pela falsificação e destruição sistemáticas de documentos do período stalinista, de modo que só se pode ter uma idéia aproximada da dimensão de tais fenômenos sociais). Territórios que faziam parte do antigo Império Russo, como a Finlândia, a Polônia e as repúblicas bálticas, onde se localizava parte das regiões mais urbanizadas, de setores econômicos tecnicamente mais avançados e das populações de melhor nível cultural, foram perdidos.

Parte importante da burguesia, da pequena-burguesia, dos intelectuais, da comunidade universitária, cientistas, artistas, advogados, médicos, letrados em geral; emigrou ou desapareceu no terror vermelho. Não havia pessoal especializado, técnicos, engenheiros, gerentes, contadores disponíveis. A economia de então (convém lembrar que estamos décadas antes da invenção da informática) era cronicamente dependente de papelório, procedimentos de controle, burocracia, o que demandava exércitos de profissionais letrados, que simplesmente não havia.

Também não havia comércio exterior. O cerco militar contra a Rússia fora desfeito, mas o cordão sanitário permaneceu. Não havia fornecimento de manufaturas, nem compradores para o trigo russo. O país seria obrigado a se reconstruir com seus próprios recursos. Transcorreram anos até que os demais países aceitassem gradualmente manter relações diplomáticas e comerciais com o governo soviético.

Em face dessa situação, o governo instituiu a Nova Política Econômica (que se tornou universalmente conhecida pela sigla em inglês “NEP”), que Lenin descreveu como “um passo atrás para dar dois passos para frente”. Tratava-se de reintroduzir relações de mercado no campo, de modo que os camponeses voltassem a produzir e as cidades pudessem ser abastecidas. As empresas estatizadas passariam a ter maior autonomia. Buscaram-se empréstimos no exterior para reativar a economia. À medida em que a década de 1920 avançava, tornara-se claro que a Revolução européia não viria imediatamente e teria que esperar por uma nova e importante crise. As medidas transicionais para o socialismo teriam que ser implantadas conforme a própria reconstrução do país permitisse.

Paradoxalmente, as medidas de abertura econômica coincidiram com o completo fechamento político. Os partidos políticos de oposição, os SR, mencheviques e anarquistas, mesmo aqueles remanescentes que estavam dispostos a praticar uma oposição leal, continuaram na ilegalidade e com seus jornais sob censura. Pior do que isso, foi proibida a formação de tendências e frações dentro do próprio partido bolchevique, como a Oposição Operária, que reivindicava a volta da democracia dos soviets e o afastamento da Tcheka e dos burocratas. O regime prosseguiu fechado, à espera de ventos melhores, que no entanto jamais vieram.

O fim do período revolucionário

A força do partido bolchevique residia justamente na sua diversidade e no seu método de tomada de decisões pelo coletivo, fato sistematicamente secundarizado pela narrativa convencional. É típico da historiografia burguesa agigantar desequilibradamente as individualidades e omitir o coletivo que as define e potencializa. A história projetou os nomes de Lenin e Trotsky, o que é bastante justo, mas também havia Sverdlov, Bukharin, Zinoviev, Kamenev, Preobrajenski, Radek, Lunatcharsky, Alexandra Kollontai, Eugênia Bosch, Rakovski, Chliapnikov, Tchitcherin, Riazanov, Kalinin, Kirov, Smilga, Rykov, Dzerjinsky, Smirnov, Manuilski, Piatakov, Yoffe, Bubnov, Ordjonikidze, Molotov, Stalin, (sem falar em dezenas de outros heróis anônimos). Todos esses quadros estavam habilitados a disputar de igual para igual os rumos do partido. Quase todos eram revolucionários experimentados, a maioria dos quais haviam combatido em 1905, passado pela escola da clandestinidade, da prisão, do exílio, vivido no exterior, aprendido a debater com os socialistas europeus. Quase todos desempenhavam meia dúzia de funções simultâneas, no Estado, no exército, na diplomacia, na Internacional, no partido, e ainda tinham condições de desenvolver as polêmicas teóricas e políticas. Essa plêiade de personalidades titânicas congregava as qualidades humanas mais diversas. Muitos eram cultos e poliglotas, outros oradores inflamados, outros ainda escritores prolíficos, ou também teóricos criativos e por último homens práticos habilidosos.

O partido bolchevique era acima de tudo um coletivo, que aproveitava da melhor forma as qualidades individuais e permitia que se desenvolvessem ao máximo. Nesse partido, a liderança não era imposta artificialmente, era conquistada pelo respeito que os militantes adquiriam em função das tarefas desempenhadas. Sem o partido, não teria havido a revolução, e sem os líderes, não haveria o partido. Por outro lado, sem o partido, os líderes não seriam o que eram.

No início dos anos 1920, o que restara do partido bolchevique era essa veterana equipe dirigente. Não havia mais a numerosa camada dos quadros intermediários que ligavam a direção às bases sociais proletárias, aquela prodigiosa vanguarda surgida desde 1917 nos soviets, fisicamente desaparecida na guerra. Na base do partido, por sua vez, proliferava um novo tipo de “militante”: jovem, inexperiente, sem conhecimento do marxismo, de origem social duvidosa, não-proletária, aventureiro, oportunista, carreirista, ambicioso, formado na atmosfera viciada da guerra civil. Esses novos membros do partido eram, na prática, quaisquer pessoas letradas minimamente capazes de desempenhar uma função administrativa, das quais o Estado carecia cronicamente. Eram o germe da futura burocracia.

Desde 1922, Lenin estava debilitado (sua saúde fora afetada pelos atentados terroristas) e não podia mais assumir tarefas importantes. Com sua morte em 1924, o partido, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS, nome adotado pela Rússia em 1922) e a jovem III Internacional viram-se privados de seu dirigente mais importante. Na disputa pela liderança do partido, o poder veio caber àquele elemento mais apagado e discreto da excepcional equipe dirigente bolchevique; àquele que desempenhava a função mais secundária e sem atrativos políticos (mas cuja importância política se mostraria absolutamente crucial nas circunstâncias dramaticamente diferenciadas do novo período: o controle do centro organizativo que atribuía as tarefas aos militantes de base); àquele cujas principais qualidades eram a determinação férrea, a inteligência política penetrante (porém desprovida de cultura geral e sofisticação teórica) e a completa ausência de escrúpulos; àquele que falava a linguagem da “nova espécie” de membros arrivistas do partido; àquele enfim a quem restaria paralisar as conquistas da revolução no pântano da burocracia: Stalin.

Daniel M. Delfino
24/10/2007

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