“Só conhecemos uma Ciência, a Ciência da História”
Marx e Engels
“A Ideologia Alemã”
Marx e Engels
“A Ideologia Alemã”
A Revolução Russa é o acontecimento mais importante da História da Humanidade. Pela primeira vez a classe trabalhadora tomou o poder em todo um país e conseguiu manter-se. Aquilo que os explorados, os oprimidos, os humilhados e ofendidos de todas as épocas tentaram, os operários russos conseguiram em 1917. Desde os escravos com Spártacus, passando pelas revoltas dos camponesas medievais na Europa, dos indígenas e quilombolas nas Américas, dos dominados em todos os continentes, pelos radicais de 1524 (guerra dos camponeses na Alemanha), de 1647 (episódio dos “niveladores” da Revolução Inglesa), de 1792 (governo dos jacobinos na Revolução Francesa), de 1848 (Primavera dos povos), até os comunardos de 1871; todas as vezes em que as classes subalternas ousaram levantar a cabeça contra a opressão, terminaram cruelmente afogadas no próprio sangue pela vingança implacável dos poderosos.
Outubro de 1917 mostrou que a História poderia ser diferente e os vencidos podem também vencer. A Revolução Russa é diferente também qualitativamente porque inaugurou a época histórica da Revolução Socialista. A época em que vivemos não é a das revoltas cegas contra a opressão e as infâmias da sociedade de classes, é a da luta pela afirmação consciente de um projeto alternativo de sociedade a ser construído a partir da potência criadora do trabalho socializado. Nesta época está colocada a tarefa da destruição do capitalismo e da construção de uma sociedade sem classes, sem opressores nem oprimidos. Tarefa grandiosa, pôr fim à exploração do homem pelo homem e emancipar todas as forças criativas do trabalho, da ciência, da cultura, da arte, da subjetividade, da sexualidade, criando um mundo digno de ser chamado Humano.
Tarefa também problemática, pois em nossa época o capital mais e mais aprofunda seu domínio feroz sobre todas as dimensões da vida. O sistema do capital arremessa o mundo na barbárie da guerra, da violência, da degradação ambiental, do desemprego, da miséria, da fome, das doenças, da ignorância, das neuroses; no limite, compromete a própria sobrevivência da espécie humana. Reconstruir a perspectiva da transformação socialista é pois uma tarefa também cada vez mais urgente e vital.
Uma das frentes de batalha fundamentais dessa luta é a disputa pela interpretação da História. Do ponto de vista do capital, vivemos precisamente o “Fim da História”. Ou seja, não existe “outro mundo possível”, apenas o mundo tal como o conhecemos, o mundo do capital. O imperialismo, sob sua nova face de capital financeiro globalizado, se oferece como horizonte definitivo da civilização, além do qual “não há alternativa”. Para tornar essa hipótese sedutora, nosso imaginário é saturado com imagens reluzentes do consumo, ícones do culto à forma mercadoria, chamarizes vulgares de uma falsa felicidade, artificial, plastificada, sem conteúdo; disfarce insultuoso para a tétrica barbárie em que definham 90% dos seres humanos.
A apologia vulgar da ordem estabelecida é uma necessidade crucial para as classes dominantes. A sociedade de classes não se sustentaria se os dominados tivessem a consciência da sua capacidade de agir e de transformar a realidade. Exatamente por isso, é preciso negar a possibilidade de mudar radicalmente o mundo. É preciso apagar todos os traços dessa consciência, todos os vislumbres dessa possibilidade, todos os momentos de inquietação em que a imaginação criativa ameaça romper com a hedionda banalidade do existente. É preciso sitiar aguerridamente o passado, controlar cuidadosamente sua narração, fabricar convenientemente a História.
A História é sempre contada pelos vencedores. Do ponto de vista dos vencedores, a História só pode conduzir justamente à situação em que são vencedores. O passado é transformado em apologia e justificação do presente. O mundo é tal qual é porque não poderia ser de outra maneira. Tudo aquilo que, no passado, poderia conduzir a um desfecho diferenciado, ou seja, a uma situação em que a atual classe dominante não estivesse no poder, é tratado como desvio, acidente, equívoco, absurdo, crime. É esse o caso da Revolução Russa. A ousadia dos revolucionários de Outubro precisa ser convertida em via para o desastre, de modo que a Revolução não seja jamais imitada.
Na concepção burguesa de História, os acontecimentos se sucedem como uma fileira de causas e conseqüências mecanicamente justapostas. Os resultados da ação dos sujeitos históricos corresponderiam exatamente às suas intenções. Ou seja, na Revolução de Outubro já estaria contido automaticamente o terror stalinista, a ditadura burocrática, o fracasso do “socialismo real”. Não haveria contradições, conflitos, lutas, avanços e retrocessos, nuances de consciência e inconsciência, claridade e obscuridade. Nessa concepção distorcida, o passado é sempre inevitável. É o reino da fatalidade, dos impasses e dilemas insolúveis.
A compreensão científica da História, pelo contrário, consiste exatamente no resgate das forças vivas que moldaram os acontecimentos, atuando com toda a riqueza das suas possibilidades criativas, articulando-se na complexa dialética dos seus condicionamentos recíprocos. Os agentes históricos, que são as classes sociais em luta, vivem os seus problemas com toda a dramaticidade do momento presente, no qual devem fazer as escolhas decisivas. À medida em que aquele momento presente se afasta no tempo e se torna passado, fica mais difícil para nós, os pósteros, localizar no labirinto das escolhas passadas o fio de Ariadne daquelas que forjaram o nosso próprio presente e que podem iluminar as trilhas do futuro. A História é vivida em aberto, mas é narrada como algo fechado. Reconstituir a sua abertura, trazendo à tona os conflitos, as contradições, em toda sua intensidade, é o desafio para quem se propõe a alcançar a compreensão o mais fiel possível do passado.
Como num jogo de xadrez, a configuração atual das peças só se torna inteligível retrocedendo-se a narrativa passo a passo, retomando-se cada lance, e ainda considerando-se as estratégias, intenções e expectativas de cada jogador, a cada momento, desde aquelas mais razoáveis até as mais equivocadas. Aliás, o equívoco é muito mais comum na História do que o acerto, do contrário não estaríamos onde estamos.
O desafio da compreensão científica da História não será superado com o recurso aos métodos próprios da historiografia burguesa. “As idéias dominantes de uma época são as idéias da classe dominante”, advertiram Marx e Engels em “A Ideologia Alemã”. Romper com o domínio material da burguesia exige romper também com suas idéias e seu modo de pensar. Não será com uma narrativa unilateral, unívoca, uniforme, unilinear, que se terá um retrato fiel da Revolução Russa. A concepção burguesa da História é a da inevitabilidade; a dos socialistas é a da abertura e da possibilidade.
Situar a Revolução Russa como uma etapa da Revolução Socialista em escala mundial é a via que permite reatar o fio que dá sentido aos acontecimentos. A Revolução Socialista mundial em processo é o pano de fundo que nos unifica a Outubro de 1917. Nesse processo histórico multissecular é natural que sejam experimentados ritmos variados de desenvolvimento nos diferentes níveis da realidade. O movimento contraditório da totalidade sócio-histórica constantemente redefine os contornos da situação nas diferentes esferas que a conformam. Modificam-se as problemáticas econômicas, políticas, sociais, culturais, psicológicas e conseqüentemente modificam-se as estratégias de enfrentamento correlatas.
É pois como parte desse movimento contraditório que a Revolução Russa deve ser situada. Resgatar a Revolução Russa não equivale simplesmente a enaltecê-la. Não basta simplesmente fazer algo geometricamente oposto ao que os intelectuais da burguesia produzem, invertendo o sinal de suas invectivas e imprecações. A tarefa que se coloca é de superar qualitativamente este método. Trata-se de apresentar a realidade como síntese contraditória de tendências e contra-tendências em luta constante. Sem isso não se pode compreender como o processo da Revolução Socialista foi tragicamente interrompido imediatamente após ser deflagrado de maneira tão inédita e heróica pelos eventos de Outubro de 1917 na Rússia. Sem essa compreensão, não se conseguirão tirar lições válidas da história e contribuir materialmente para desbloquear a Revolução no presente.
Alcançar a compreensão científica de um evento como Outubro, não é, para os socialistas, um objeto de curiosidade diletante. Do ponto de vista de quem se propõe a desenvolver hoje a luta revolucionária, a compreensão científica do passado é um imperativo absolutamente vital. Para os revolucionários, apenas a verdade nua e crua é útil, completamente despida da mescla das ilusões auto-complacentes e sentimentalismos retóricos. Reviver os momentos decisivos de 1917 não significa canonizar os seus protagonistas como heróis infalíveis (esse é o método da burguesia em relação aos seus heróis). Significa observá-los como seres humanos concretos, enfrentando desafios extraordinários, impulsionados por qualidades também extraordinárias e tolhidos por obstáculos os mais inesperados e desconcertantes. É desse modo que tais protagonistas podem nos servir de exemplo.
A burguesia não se cansa de celebrar seus heróis, os grandes estadistas, políticos, militares, etc. Aqueles a quem a burguesia chama de heróis, porém, para a classe trabalhadora não passam de carrascos. Estes são na verdade os responsáveis pelo rol de horrores que preenche a maior parte da História: guerras, genocídios, massacres, assassinatos, torturas, violências, estupros, saques, roubos, profanações, imposturas, com o corolário da odiosa escravidão do trabalho e da subjetividade até hoje vigente. No entanto, esses heróis são apresentados como “nossos heróis”, como guias da “civilização”, e tudo o que fizeram, seus crimes infindáveis, como tendo conduzido, “apesar de tudo”, para o “bem comum”, razão pela qual merecem ser absolvidos. Ora, a “civilização” celebrada pela história oficial com seus “heróis” não passa de uma monumental e monstruosa espoliação da maioria da humanidade, privada mesmo da condição de constituir-se em efetivamente Humana, em benefício exclusivo das classes dominantes em cada momento.
Em contraponto, a classe trabalhadora deve aprender também a celebrar os seus heróis, seus revolucionários, seus mártires, seus gênios; mas deve acima de tudo celebrar as massas anônimas que, estas sim, carregam o fardo mais pesado da História. Só o movimento de toda uma classe consciente, como eram os operários russos de 1917, pode produzir líderes como foram os bolcheviques. Reconstruir a história de Outubro é em grande parte reconstruir a dessa relação extraordinária entre a classe revolucionária e seus líderes.
Num momento histórico como o atual, em que a Revolução Socialista parece distante no horizonte, resgatar os feitos heróicos dos trabalhadores no passado é parte fundamental do esforço de rearmamento teórico da esquerda no presente. Uma vez que a revolução que nos cabe fazer é a “afirmação consciente de um projeto alternativo de sociedade”, o resgate da História é também, necessariamente, um estudo crítico. Não basta repetir mecanicamente, 90 anos depois, os nomes, bandeiras e palavras de ordem da Revolução Russa. É preciso medir-se cientificamente, criticamente, com a realidade passada e presente, para que esses símbolos retomem seu significado, importância e valor prático, revigorando seus traços de continuidade no presente.
A reorganização da militância socialista demanda necessariamente a reativação do trabalho teórico, do esforço de pesquisa, estudo, reflexão, elaboração, crítica e debate. Tal era o método do partido bolchevique. Portanto, nada mais adequado, para homenagear a tradição que os bolcheviques inauguraram, do que marcar os 90 anos da Revolução Russa com esta série de artigos, no intuito de fazer com que este estudo seja um instrumento a serviço da qualificação do debate e da militância socialista no presente.
Daniel M. Delfino
22/10/2007
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