“Quem domina o presente domina o passado; quem domina o passado domina o futuro”
George Orwell
“1984”
“As idéias dominantes numa época são as idéias da classe dominante”
Marx e Engels
“A Ideologia Alemã”
Toda época possui uma narrativa justificadora que explica o curso dos acontecimentos e lhes confere um sentido. A narrativa justificadora oferece uma estrutura geral na qual se enquadram os movimentos da política, da economia, da cultura, em escala global e nacional; e mesmo a estrutura da atividade de cada indivíduo, seu “projeto de vida”, se organiza em função das perspectivas que a sociedade lhe oferece num dado momento. Essa narrativa organizadora parte sempre de uma leitura prévia da História, que conecta o presente ao passado, o que por sua vez é feito sempre de forma seletiva. A leitura do passado é determinada pelos interesses materiais situados no presente de quem elabora a narrativa.
A narrativa justificadora hoje predominante nos diz que vivemos a era da “globalização”, na qual a queda da URSS em 1991 demonstrou cabalmente a “inviabilidade do socialismo” e que portanto não cabe pensar em abolir o sistema capitalista. É possível apenas tentar corrigir seus defeitos (isso quando se admite que o sistema tem defeitos). “Humanizar o capitalismo” é o magro consolo oferecido às almas piedosas que se sensibilizam com o sofrimento da imensa maioria da humanidade, mas carecem da energia necessária para lutar realmente de modo eficaz contra a causa desse sofrimento, ou seja, contra o próprio sistema capitalista.
Essa narrativa é duplamente falsa. Em primeiro lugar, pela evidência gritante de que, após 250 anos da Revolução Industrial, quem fracassou foi o capitalismo. O padrão de vida desfrutado pela ínfima minoria dos que são beneficiados pelo sistema (os “vencedores”, no jargão da ideologia burguesa) é impossível de ser generalizado para o conjunto da humanidade. Não pode sequer ser mantido por mais tempo em favor dos 5 a 10% que dele se beneficiam sem que, por exemplo, se aprofunde o já catastrófico grau de devastação ambiental do planeta. Um sistema com tais características não pode ser aceito como modelo viável senão por meio da mais grosseira mistificação. Não é outra a finalidade da toda-poderosa indústria da comunicação de massa e dos numerosos exércitos de jornalistas, publicitários, roteiristas, intelectuais e acadêmicos regiamente pagos para reciclar ad nauseum a mentira escandalosa da “inevitabilidade” e do “sucesso” do capitalismo e sua “globalização”.
Em segundo lugar, a narrativa pressupõe que o sistema materializado na URSS (e derivados como China, Cuba, etc.) é o exemplo acabado do socialismo que se deve ter como alternativa no cotejo contra a ordem do capital. Esse pressuposto é também bisonhamente falso, por uma série de razões, dentre as quais podemos citar:
- o socialismo não é um modelo pronto e acabado a ser aplicado como receita de bolo para “ver se dá certo”, é um processo a ser construído historicamente na vida concreta e que se redefine conforme as circunstâncias históricas.
- o socialismo não pode ser construído em um só país, especialmente em países pobres, como os que vieram a formar a URSS, porque pressupõe a socialização do trabalho em seu mais alto grau de desenvolvimento (ciência, tecnologia, alto nível educacional e cultural, etc.).
- o socialismo requer o controle da produção pelos próprios produtores associados, ou seja, uma forma de organização em que os trabalhadores detém simultaneamente o controle da economia e da direção política, para decidir sobre os fins da produção; na realidade, isso dissolve a separação entre economia e política e dissolve também a própria forma Estado.
Poderiam ser elencadas várias outras razões, conforme o ângulo do qual se observa a questão. O aspecto que interessa à presente discussão é o fato de que, para afirmar que o socialismo “não funcionou”, o que seria atestado pela queda da URSS, a ideologia burguesa precisa apresentar o sistema lá vigente como produto direto e inevitável da luta pelo socialismo. E isso não pode ser feito sem violentar a História da forma mais criminosa. Por outro lado, retomar a luta pelo socialismo impõe, àqueles que abraçam tal causa, a tarefa de explicar como o surgimento da URSS e seu “paradigma” de socialismo está relacionado ao processo da transformação socialista. A URSS nasceu da Revolução Russa, mas terá sido o seu surgimento a concretização do projeto pelo qual os revolucionários lutaram?
Para responder a essa pergunta, é preciso reexaminar a História. A ocasião para retomar essa tarefa de esclarecimento se apresenta no momento em que a Revolução Russa completa 90 anos. Voltar à Outubro de 1917 é um dos passos para construir uma nova narrativa, na busca por uma visão coerente da totalidade, que sirva para organizar os fatos da realidade, hoje dispersos de forma confusa e fragmentária pelos propagadores da ideologia burguesa, neoliberal e pós-moderna. Só assim se poderão juntar os cacos da perspectiva emancipadora.
Os artigos que se seguirão pretendem ser parte deste esforço para desembaralhar os fios da História, desvendando a trama pela qual os acontecimentos de hoje se ligam aos do passado. O objetivo desse exercício de Ciência da História não é o esclarecimento teórico em si e menos ainda o acadêmico; é contribuir para o combate militante contra a nefasta hegemonia da ideologia burguesa reinante.
Daniel M. Delfino
22/10/2007
Um comentário:
Bem-vindo de volta, Daniel. Eu acrescentaria entre as características para definir o que seja o socialismo revolucionário que sua construção tem que acontecer de baixo pra cima. Diferente de seus antecessores, Marx nunca defendeu o socialismo como obra de uma parte separada dos explorados. "A emancipação dos trabalhadores como sua própria obra" não é só uma frase de efeito. E a revolução russa deixou de ser uma cunha para a revolução mundial quando deu origem a um Estado. Nada mais contrário ao socialismo marxista do que o fortalecimento do Estado. E, ao contrário do que poderia parecer, tal concepção não é contraditória com a necessidade da organização partidária da classe.
Abraço
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