25.2.09

A crise 3 - O significado de Obama


Obama e a crise

A eleição de Obama responde a uma necessidade do imperialismo estadunidense de recuperar sua legitimidade política e reconstruir a coesão ideológica em torno da idéia da viabilidade do capitalismo, no momento mesmo em que o sistema é desafiado por uma de suas mais sérias crises. A função da “Obamamania” que tomou conta do mundo é prover um substituto ideológico para o neoliberalismo, cuja hegemonia nas últimas décadas produziu uma crise tão catastrófica que não há mistificação capaz de ocultar.

A eclosão inevitável das crises periódicas faz com que, nos momentos em que elas aparecem, como agora, a burguesia seja obrigada a admitir a crise. Não só isso, a burguesia precisa fazê-lo com grande estardalhaço, pois essa é a única maneira de fazer a classe trabalhadora aceitar o encargo de pagar a conta da crise. A classe trabalhadora precisa ser obrigada a aceitar passivamente as demissões, o rebaixamento de salários, a perda de direitos, o corte de serviços públicos, a proibição de todo protesto ou luta e até mesmo as guerras de extermínio. Todas essas medidas precisam ser apresentadas como inevitáveis, pois “não há outra alternativa”.

Por outro lado, ao admitir abertamente a existência da crise, a burguesia corre um sério risco de ver questionada a própria legitimidade do sistema capitalista. O discurso de que “não há outra alternativa” pode ser contestado. Nos momentos de crise, a classe trabalhadora tem a possibilidade de perceber que o sistema capitalista não funciona, que tudo que os patrões, políticos e intelectuais burgueses dizem é mentira, que tudo não passa de uma armadilha para fazer os trabalhadores aceitarem a exploração e a miséria. Em outras palavras, a crise abre a oportunidade para que os socialistas mostrem aos trabalhadores a necessidade de superar o capitalismo e construir um modo de produção socialista e racional voltado para o atendimento das necessidades humanas.

Abre-se então uma disputa ideológica, um confronto de alternativas para a humanidade. Os socialistas tem a seu favor a própria realidade dos fatos, que aponta para a necessidade de superar o capitalismo e evitar o aprofundamento da miséria, da barbárie e a própria destruição da humanidade. Por seu lado, a única arma da burguesia é a mistificação. A classe dominante precisa encontrar uma maneira de reciclar a crença na possibilidade do capitalismo continuar funcionando. Precisa encontrar uma maneira de dizer aos trabalhadores que não é preciso lutar, que não é preciso revolucionar a sociedade, que tudo pode se resolver por si mesmo. A principal maneira de dizer isso é através das eleições para o Estado burguês. Por meio da eleição de um novo governante, diz a burguesia, todos os problemas serão resolvidos.

É nesse contexto que acontece a eleição de Barack Hussein Obama para a presidência dos Estados Unidos, principal potência imperialista e epicentro da atual crise econômica. Obama é a alternativa interna do sistema. É o conto de fadas que será impingido aos trabalhadores para que todos acreditem que, se até mesmo um negro pode “chegar lá”, então ainda há esperança.

Obama e os negros

A escolha de um negro não é nada casual. Os negros sempre foram o setor mais explorado e marginalizado do proletariado. Sempre foram alvo de violência, preconceito e discriminação. A divisão dos trabalhadores em frações diferenciadas a partir do elemento da cor da pele sempre foi útil para que a burguesia impedisse a união da classe. A disputa entre um setor “privilegiado” e um setor “excluído” pelas vagas cada vez mais escassas no mercado de trabalho faz com que a burguesia possa reduzir o preço geral que paga pela força de trabalho.

Ao mesmo tempo, essa dupla condição de exploração em função da classe e opressão em função da cor da pele gera na população negra a demanda da aceitação e da igualdade. Essa demanda pode ser administrada pela burguesia sem que os fundamentos da divisão de classe sejam questionados. A burguesia pode conceder uma igualdade abstrata e formal aos negros para que estes se sintam representados. Pode até mesmo admitir um negro como presidente do principal país imperialista.

O negro Obama se tornou a esperança de milhões de negros no seu país e no mundo inteiro. Entrou em ação a todo vapor o mecanismo da mistificação pelo qual a classe trabalhadora do mundo inteiro, negra ou não, pode ser levada a acreditar nas virtudes do capitalismo e de seu regime político de democracia representativa. Ao invés de lutar contra a divisão da sociedade em classes, os trabalhadores passam a festejar a aceitação de “um dos seus” no lugar principal do palco.

Obama e o espetáculo

A democracia burguesa consegue assim fazer com que a política deixe de ser uma disputa substantiva entre alternativas societárias e passe a ser uma disputa vazia de imagens. Ao invés de lutar por um outro projeto de sociedade, os trabalhadores são induzidos a festejar uma outra imagem de governante. Ao invés de se discutir o conteúdo de classe da política (os interesses de qual classe social ela atende), passa-se a discutir a identidade do aplicador dessa política. O conteúdo da política permanece sempre o mesmo, mas a política não discute o conteúdo, apenas a aparência, reduzindo-se assim a um mero espetáculo, um jogo de cena. Obama virou um superstar, um “astro do rock”. Sua cerimônia de posse em 20/01/09 se transformou num circo para celebridades da indústria cultural glamourizarem o novo presidente com um verniz pop. Imagens da cerimônia circularam pelo mundo numa espécie de apoteose, como se o próprio Messias tivesse descido à Terra.

Espetáculos semelhantes tem se repetido também na América do Sul. O Chile elegeu uma mulher, a Bolívia elegeu um índio, o Paraguai elegeu um bispo e o Brasil elegeu um operário. Nada disso trouxe mudanças positivas substanciais na vida da classe trabalhadora desses países, pois o sistema sócio-econômico capitalista, baseado na apropriação privada do trabalho coletivo, continuou em vigor. Nenhuma dessas figuras tinha o propósito de abolir o capitalismo; ao contrário, funcionaram como instrumentos para preservar o sistema, manipulando as esperanças dos trabalhadores e impedindo a eclosão de lutas.

Obama terá o mesmo papel dessas figuras da política do espetáculo. Não é coincidência o fato dele ter usado em seu discurso de posse o mesmo bordão da campanha de Lula em 2002: “a esperança venceu o medo”. Obama será uma espécie de Lula global, o gestor do ataque aos trabalhadores revestido de imagem amigável. O Estado é o “comitê gestor dos negócios da burguesia” (na definição de Marx), e Obama, na qualidade de dirigente do principal Estado burguês do planeta, foi eleito para defender os interesses do imperialismo estadunidense.

Obama e a burguesia

O desgaste da imagem dos Estados Unidos ao longo da administração Bush e o crescimento de um sentimento “anti-Estados Unidos” no mundo inteiro obrigaram a burguesia a modificar sua tática. Um outro perfil de governante seria necessário para aplicar a mesma política. Para produzir essa ilusão de mudança sem mudar nada de fato, a burguesia tirou da cartola um político do Partido Democrata. Desde o início da corrida eleitoral, tornou-se evidente que o próximo presidente estadunidense sairia da disputa interna entre Obama e Hillary Clinton pela indicação do Partido Democrata. Não por acaso, essa disputa foi uma das mais acirradas em todos os tempos e foi acompanhada com grande interesse no mundo inteiro.

Uma vez eleito, Obama buscou construir um governo de unidade da burguesia. Para o cargo de Secretária de Estado (equivalente ao de ministro das relações exteriores), ele convocou nada menos do que sua rival na disputa épica de meses atrás, a própria Hillary Clinton. Convém lembrar que a política exterior da era Clinton foi marcada pela afirmação da supremacia imperial dos Estados Unidos, pelo “consenso de Washington”, pela imposição do neoliberalismo, pelos ataques aos direitos dos trabalhadores no mundo inteiro, pelas privatizações, pelos tratados de “livre comércio” que violaram a soberania de dezenas de países, pela escalada do poder das transnacionais, pela desregulamentação financeira internacional; e também pelas intervenções militares contra a Sérvia (então Iugoslávia), a Somália e os bombardeios e sanções que sangraram o Iraque à exaustão (tornando o país presa fácil para Bush poucos anos depois). Por último, convém lembrar que foi a administração Clinton que patrocinou os acordos de Oslo, pelos quais a OLP reconheceu o Estado de Israel e colocou o movimento de resistência nacional palestino no beco sem saída em que se encontra hoje.

As primeiras declarações de Obama e Hillary sobre política externa sinalizam a mudança do eixo da agressão imperialista em direção ao Irã. Diferentemente do Afeganistão, devastado por três décadas de conflito, e do Iraque, sucateado por mais de uma década de bombardeios e bloqueio econômico, o Irã é uma potência de médio porte, uma país populoso, coeso, fortemente centralizado por sua direção política, disposto a resistir e capaz de mobilizar amplos contingentes internacionais de combatentes para a guerra assimétrica contra o império. Na última oportunidade em que Bush ameaçou mais diretamente o Irã, cerca de 40 mil voluntários se alistaram para ser homens-bomba e explodir alvos de interesse do imperialismo pelo mundo. Não contente com o atual atoleiro em que se encontra no Iraque e no Afeganistão (dos quais aliás não vai haver tão cedo uma retirada, apesar dessa ter sido a principal promessa de campanha de Obama), o imperialismo prepara uma catástrofe ainda maior.

Para o cargo de Secretário do Tesouro, Obama convocou Timothy Geithner, que foi dirigente da seccional de Nova York do FED (Banco Central) na era Clinton, quando a desregulamentação financeira produziu a bolha especulativa das empresas “ponto-com”. Um dos principais assessores econômicos de Obama será Paul Volcker, veterano presidente do FED na era Reagan e responsável por uma violenta alta dos juros no início da década de 1980, a qual precipitou a crise da dívida externa na América Latina, arrastando vários países para a recessão e trazendo a miséria para dezenas de milhões de trabalhadores.

Como Secretário de Defesa, comandante do maior aparato militar da história, Obama manteve Robert Gates, nomeado por Bush em 2006 e entusiasta das invasões do Iraque e do Afeganistão. A manutenção de um Secretário de Defesa quando há mudança de partido na Casa Branca é um fato inédito na história política estadunidense.

Como se não bastasse, foi criado um cargo de “Chief Performance Officer”, para o qual foi indicada Nancy Killefer, ex-executiva da firma de consultoria McKinsey & Co. A função desta representante de Wall Street no governo será realizar os cortes no orçamento com os quais a nova administração tentará combater o déficit público total que já chega a US$ 10,7 trilhões. Os cortes não serão feitos no orçamento do Pentágono de Robert Gates, naturalmente, mas nos programas de saúde pública e bem-estar social já bastante precários que atendem as famílias pobres nos Estados Unidos, a maioria negros e latinos, justamente o grosso dos eleitores de Obama.

É importante destacar que Obama não está fazendo todas essas concessões por conta da força política do Partido Republicano. Ao contrário, além de ganhar a Casa Branca, o Partido Democrata tem folgada maioria no Senado e na Câmara dos Deputados, de modo que Obama teria condições de aprovar facilmente quaisquer mudanças que quisesse. Acontece que Obama não foi eleito para trazer “a mudança que precisamos”, como dizia seu slogan de campanha, mas para garantir a continuidade que o imperialismo precisa.

Como diz a célebre frase do personagem de Lampedusa, a burguesia optou por “mudar algo para que tudo permaneça o mesmo”.

Daniel M. Delfino
Fevereiro 2009


16.2.09

A crise 2 - As ameaças à humanidade


O estágio atual da crise

Ao final do ano de 2008 o mundo estava entrando numa forte crise econômica. A imprensa burguesa em peso passou a falar em crise. O mito da invulnerabilidade do capitalismo caiu por terra com impressionante velocidade. Governantes do mundo inteiro fizeram reuniões, emitiram declarações com ar preocupado, anunciaram medidas de emergência, lançaram “pacotes de ajuda” de centenas de bilhões de dólares para salvar os bancos e o sistema financeiro da bancarrota. Subitamente, descobriu-se que o “livre mercado” não é capaz de regular a si mesmo e o Estado precisa intervir. Analistas passaram a falar na pior crise desde 1929, quando teve início a Grande Depressão. Surgiu a ladainha da “falta de confiança”, da “falta de regulação”, da “ganância excessiva”, etc. A crise chegou também ao senso comum. De agora em diante, na boca do povo, tudo “é culpa da crise”.

Na realidade, a crise é um produto inevitável do próprio funcionamento da economia capitalista. Não se trata de “falta de confiança”, “falta de regulação”, “ganância excessiva”, etc. O problema não está no “modelo de desenvolvimento”, que pode ser neoliberal ou desenvolvimentista-keynesiano, está na própria essência do modo de produção capitalista. A crise é uma expressão dos limites internos do sistema, de sua incapacidade de realizar a mais-valia gerada na produção e de sua necessidade de destruir forças produtivas (fechar fábricas, demitir trabalhadores ou mesmo destruir populações inteiras e recursos materiais por meio da guerra) para reiniciar o ciclo de acumulação. Ao contrário do que diz o pensamento vulgar da imprensa burguesa, a crise é parte essencial do mecanismo interno da economia capitalista e portanto a sua aparição de tempos em tempos é um fenômeno inevitável.

Por enquanto, ainda não se produziu o deslizamento para a depressão, nem muito menos qualquer sinal da recuperação sonhada pelos capitalistas, que na verdade pode estar bastante distante, de modo que a crise pode se estender sob a forma de uma recessão prolongada. Nesse meio tempo a burguesia procura manter suas taxas de lucro promovendo demissões, rebaixamento de salários, retirada de direitos e benefícios, corte de serviços públicos. A luta de classes ainda não se manifestou com toda sua agudeza. A reação da classe trabalhadora mundial tem sido desigual. Na sua maior parte, os principais instrumentos de luta da classe, partidos e sindicatos, permanecem controlados por direções abertamente dispostas a colaborar com a burguesia e jogar o custo da crise nas costas do proletariado.

Na Europa, já acontecem fortes greves e mobilizações contra os ataques do capital. No Brasil, a crise chegou ao senso comum e já está na boca do povo, mas a classe trabalhadora não compreende a crise. Para os trabalhadores, ela se parece com uma peste, uma epidemia, cujo contágio ameaçador é totalmente aleatório e só se pode combater rezando para que permaneça distante. A burguesia tenta ganhar ideologicamente os trabalhadores com seu discurso de que “não há alternativa” e tudo que se pode fazer é apertar os cintos e esperar a crise passar. Naturalmente, são os trabalhadores que vão apertar os cintos. E não vão poder contar com o apoio do Estado, que vai precisar tirar cada vez mais dinheiro da educação, da saúde e dos serviços públicos para financiar os “pacotes de ajuda”.

As saídas da burguesia

A crise atual está no estágio de uma recessão mundial em aprofundamento. A burguesia procura neste momento evitar que a recessão se transforme em depressão. Para isso, a classe dominante recorre ao socorro do Estado, que tanto nos centros imperialistas como na periferia está injetando “pacotes de ajuda” que totalizam trilhões de dólares na economia capitalista.

A política do Estado burguês de injetar dinheiro na economia está longe de poder trazer uma solução definitiva para o problema. Assemelha-se a uma tentativa de apagar um incêndio jogando mais gasolina no fogo. Não é preciso ser expert em economia para perceber que há algo muito errado com os tais pacotes de ajuda, como o plano recentemente anunciado por Obama de injetar mais US$ 819 bilhões na economia estadunidense. A simples intuição basta para demonstrar que a solução não pode ser assim tão fácil. Se está ao alcance do Estado produzir tão facilmente dinheiro à vontade e em quantias tão mastodônticas, porque isso não é feito de modo corriqueiro?

A resposta é que na verdade não é tão fácil assim produzir dinheiro, pois isso tem conseqüências. O poder conferido ao Estado para emitir moeda não pode ser usado indiscriminadamente, pois isso ameaça a própria função da moeda como medida de valor. A burguesia não o ignora, por isso só recorre a tal medida apenas em situações de emergência extrema. O fato de que todos os Bancos Centrais do mundo estejam fazendo a mesma coisa neste momento é mais um indício da seriedade da crise em andamento.

A moeda precisa estar lastreada em alguma riqueza real, sem o quê se converte em simples papel sem valor. Os BCs do mundo inteiro estão emitindo trilhões de dólares que correspondem a papel sem valor, na expectativa de que alguma riqueza real possa vir a ser gerada, ou na linguagem da economia burguesa, de que haja uma “retomada do crescimento”. Nesse meio tempo, o dinheiro que sai dos BCs é contabilizado como dívida pública, ou seja, dívida que o Estado terá que cobrir de alguma maneira, seja cobrando impostos, seja cortando dos serviços públicos; em ambos os casos, tomando dos trabalhadores. Em última instância, como toda riqueza real em qualquer sociedade é produzida pelo trabalho humano, a classe capitalista e seu Estado terão que intensificar brutalmente a exploração para recuperar o valor nominal emitido sob a forma de moeda sem valor. Caso isso não seja feito num intervalo de tempo suficientemente curto, a crise pode se desdobrar numa desvalorização drástica da moeda, ou seja, numa inflação desenfreada.

Paradoxalmente, os detentores de capital no mundo inteiro estão neste momento buscando “refúgio” na “segurança” dos títulos do tesouro estadunidense. O dinheiro que sai das bolsas de valores do mundo inteiro, provocando sua queda, está sendo investido em dólares, o que produz a valorização artificial dessa moeda. O dólar está sendo mantido artificialmente valorizado, justamente no momento em que o endividamento suicida dos Estados Unidos, com os trilionários pacotes de ajuda do governo, amplia o risco de corrosão estrutural do valor da principal moeda mundial. Em outras palavras, o capitalismo está se tornando refém da capacidade do imperialismo estadunidense de cobrir sua dívida por meio do saque sobre a classe trabalhadora mundial.

Os limites do capital

A crise atual não é produto apenas do esgotamento de mais um ciclo periódico (como o ciclo anterior que se encerrou em 2000 com a quebra da NASDAQ), mas da crise estrutural do sistema que emperra a acumulação capitalista pelo menos desde o início da década de 1970. A crise estrutural tem sido contornada pelo deslocamento da produção material para países periféricos de mão-de-obra barata (tigres asiáticos, e mais recentemente, China e Índia), combinado com movimentos de expansão do crédito, endividamento do Estado, das empresas e dos consumidores e desregulamentação dos instrumentos financeiros.

Esse duplo movimento de superexploração/financeirização expressa uma dificuldade crescente do capital para continuar se reproduzindo. Há um estreitamente crescente das margens internas intransponíveis do próprio sistema capitalista. O impulso da concorrência obriga as empresas a incorporarem tecnologia e aumentarem a produtividade, produzindo mais em menos tempo de trabalho. Ao produzir mais em menos tempo, as empresas podem dispensar a força de trabalho humana. O desemprego tecnológico estrutural de massa se tornou rotina em todos os países. Ao demitir trabalhadores, as empresas diminuem a quantidade de consumidores aptos a comprar aquilo que produziram. Sem compradores para as mercadorias, não se fecha o ciclo de realização do valor gerado na produção.

Quando não há meios de realizar o capital, a solução é simplesmente destruí-lo, ou seja, fechar as empresas, imobilizar as máquinas, demitir mais trabalhadores, obrigá-los a trabalhar por salários mais baixos. Isso só faz aumentar o problema da falta de consumidores, agravando a crise e precipitando um círculo vicioso. Essa contradição está na raiz de todas as crises econômicas. Para cada ciclo que se encerra o capitalismo tenta encontrar uma saída. A “civilização do automóvel”, o consumismo do estilo de vida estadunidense, a indústria da informática foram saídas desse tipo, bem como recentemente a especulação com empresas de internet ou com imóveis.

Ainda não despontou no horizonte a próxima aposta do capital para tentar contornar a crise. As alternativas estão cada vez mais escassas. Sem a novidade de um novo ramo da produção, a saída pode estar na pura e simples destruição. No limite, uma das formas de encontrar um consumidor capaz de realizar o capital é obrigando os Estados capitalistas a entrarem em guerra, mobilizando os meios de produção para a destruição e gerando a necessidade da reconstrução. É deste limite que estamos nos aproximando.

As ameaças no horizonte

O sistema capitalista carece de coordenação racional e centralização. Não há um “Estado mundial” do sistema do capital capaz de planejar seus passos. Por mais que a superpotência estadunidense se candidate a exercer esse papel, prevalece a existência de uma articulação hierárquico-conflitiva entre as diversas seções nacionais do capital global. As diversas burguesias nacionais (ou burocracias como a da China) perseguem seus próprios interesses particulares em aberta rivalidade entre si e com os Estados Unidos. O imperialismo europeu penetra na América Latina, a Rússia se volta para uma política nacionalista de grande potência, a China desponta com força no cenário geopolítico; tudo isso expressa a contradição entre um único sistema sócio-econômico mundial e a existência de diversos Estados nacionais enquanto estruturas de controle político.

Na última oportunidade em que o sistema se defrontou com dificuldades tão dramáticas, por ocasião da Grande Depressão da década de 1930, não houve política do Estado capaz de produzir uma recuperação por meios puramente econômicos. Ao contrário do que dizem os apologistas burgueses e repetem os desinformados (e os mal-intencionados) papagaios da esquerda reformista, não foram o “New Deal” rooseveltiano ou os sortilégios keynesianos que salvaram a economia capitalista naquela conjuntura. Depois do crash da bolsa de 1929, a economia dos Estados Unidos havia desabado novamente em 1938. O sistema só pôde sobreviver graças à destruição provocada pela II Guerra Mundial.

A destruição é essencial para a economia capitalista. A tendência irrefreável de centralização em direção à formação de grades monopólios e grandes impérios econômicos necessariamente aponta para a destruição dos concorrentes menores e mais fracos. É preciso destruir periodicamente grandes quantidades de vidas humanas, de recursos materiais, de fábricas, edifícios, infra-estrutura, forças produtivas, enfim, para que a acumulação de capital possa se reiniciar. A barbárie de Auschwitz e Hiroshima constitui exemplo indelével da loucura destrutiva a que o capitalismo pode precipitar a humanidade em nome da reprodução ampliada do valor.

Dentro da atual correlação de forças entre as potências imperialistas, a resolução dos conflitos em curso por meio de uma III Guerra Mundial é improvável devido à ameaça concreta de destruição mútua assegurada por arsenais nucleares e outras armas de destruição em massa largamente disseminadas. Entretanto, mesmo conflitos localizados, como uma invasão estadunidense ao Irã, trazem consigo o espectro de uma barbárie intolerável.

Ao invés de uma Guerra Mundial clássica entre grandes Estados imperialistas, está em gestação uma guerra mundial do capital contra os trabalhadores por meio de diversas formas como a “guerra ao terror”, a “guerra às drogas”, a satanização dos países do “eixo do mal” e de todo e qualquer movimento de resistência (doravante alcunhado de “terrorista”); e no plano interno, o renascimento da xenofobia e do neonazismo, a fascistização social, a repressão policial, a criminalização dos protestos e da luta social, as restrições às liberdades democráticas, a destruição dos instrumentos sindicais e políticos da classe trabalhadora, a perseguição aos ativistas, a censura à informação e o bloqueio ideológico contra o pensamento divergente.

A guerra é a alternativa para salvar o imperialismo estadunidense e o capitalismo como um todo. Cabe por sua vez aos trabalhadores lutar para construir uma outra forma de sociedade, livre das crises, das guerras, da miséria, das catástrofes ambientais, da degradação cultural e humana, que só pode ser uma sociedade socialista.

Daniel M. Delfino
Fevereiro 2009

8.2.09

Benjamin Button, uma vida ao contrário, e na direção errada

O diretor David Fincher e o astro Brad Pitt já trabalharam juntos no eficiente thriller “Seven” e em “Clube da Luta”, um dos melhores filmes da década passada. Nesses dois trabalhos anteriores, se expõe uma visão bastante crítica da experiência humana, para não dizer radicalmente negativa. Essa visão é de certo modo característica do restante da brilhante filmografia do diretor, que se coloca bastante acima da média dos realizadores comuns. Os dois repetem agora a parceria em “O curioso caso de Benjamin Button”, que narra a história de um homem que envelhece ao contrário.

Tendo nascido com o aspecto de um ancião, encarquilhado, quase cego, surdo, com artrite e toda sorte de debilidades físicas que acometem os idosos, Benjamin rejuvenesce conforme cresce, tornando-se um homem velho, depois maduro, adulto, jovem, adolescente, criança, terminando seus dias como um bebê. Tendo sua mãe morrido no parto, ele é repudiado pelo pai, o rico dono de uma fábrica de botões, que o deixa nas portas de um asilo de idosos. Lá ele é adotado pela negra Queenie, que cuida dos idosos no asilo, e que não podia ter filhos.

Nenhuma explicação direta é fornecida para o envelhecimento invertido de Benjamin, e de resto o bizarro fenômeno também não surpreende muito as pessoas que convivem com ele, nem provoca escândalo ou o transforma numa celebridade mundial, o que muito provavelmente teria acontecido em nosso mundo se seu caso fosse real. À guisa de explicação, faz-se alusão a um relojoeiro cego que projetou um relógio que corre ao contrário para ser instalado na estação ferroviária central da cidade. Com isso, o relojoeiro queria fazer retroceder o tempo e reverter a perda de seu filho, que tinha acabado de morrer na I Guerra Mundial. Não é apresentada uma relação direta entre os dois casos, apenas exposta a coincidência de que Benjamin nasceu nesse mesmo ano, 1918, e na mesma cidade, New Orleans.

A capital do jazz foi assolada pelo furacão Katrina em 2005. É nesse exato momento que começa a narrativa. Às vésperas da chegada do furacão, uma idosa que está hospitalizada em estado grave pede a sua filha que leia o diário de Benjamin Button. É por meio da leitura do diário que a história é contada e que se conhece a relação das duas mulheres com Benjamin. O filme transcorre então como uma longa exposição do percurso de toda uma vida, do nascimento à morte.

O percurso de uma vida bastante original fazem deste “Curioso caso” um filme extraordinário para os padrões da indústria. Isto, somado aos seus inegáveis méritos técnicos, a competência da direção, o bom trabalho do elenco, da maquiagem, etc., levaram a 13 indicações para o Oscar, prêmio máximo da indústria. Dadas as características do prêmio (o filme com o maior número de indicações é quase sempre o maior vencedor), “Benjamin Button” deve sair consagrado pela Academia. No deserto de criatividade em que se tornou o cinema comercial estadunidense, o filme de David Fincher é de fato excepcional. Tem a rara qualidade de provocar algum tipo de reflexão, de empatia e identificação do espectador com o destino dos personagens. Entretanto, isso não significa que o filme consiga dar conta de seu objeto satisfatoriamente.

As fragilidades começam no esquematismo do roteiro. Assim como a pseudo-explicação fantástica para o envelhecimento invertido por causa do relógio, todo o restante da narrativa é construído por coincidências e paralelismos. Uma série de fatos convenientemente convergentes se articulam para direcionar o percurso da vida do personagem e sua formação. Vários fatos e contextos se combinam também para influenciar na interpretação que se pode tirar da moral da história. O fato de termos a presença de uma idosa intercalando a narrativa anuncia uma reflexão sobre a inevitabilidade da morte, que cedo ou tarde atinge a todos. Tal inevitabilidade é sublinhada pela presença do furacão Katrina, que nós espectadores já sabemos quão mortífero acabaria sendo, mas que as personagens ainda ignoravam. O furacão adiciona a devida dose de arbítrio ao lembrar como a vida humana é frágil e que não apenas os idosos morrem. Outro fato bastante conveniente é o de Benjamin ter sido criado num asilo, o que permitiu a ele não apenas receber os cuidados geriátricos adequados a sua “infância senil”, mas também partilhar do convívio com os idosos e sua sabedoria, e testemunhar a presença constante da morte.

Diz-se que a infância de uma pessoa termina quando ela compreende que vai morrer. Benjamin testemunha desde cedo a desaparição dos demais hóspedes do asilo e experimenta o sentimento de perda que a morte traz aos que ficaram. Esse ambiente, somado à condição peculiar de alguém que nasceu idoso, teriam contribuído para que ele desenvolvesse algum tipo de percepção especial do percurso da vida. Logo que é acolhido no asilo e examinado por um médico, e antes que se pudesse perceber que ele estava na verdade envelhecendo ao contrário (rejuvenescendo), Benjamin era de fato tratado como alguém que tinha muito pouco tempo de vida, como os demais hóspedes do asilo. Ele teria nascido para morrer em pouco tempo, realizando em forma de piada a frase de Heidegger de que “o homem é um ser para a morte”.

O fato de ter passado os primeiros anos de sua infância acreditando que iria morrer a qualquer momento, sem saber quanto tempo lhe restaria, deveria ter lhe inculcado muito precocemente o sentimento da precariedade da vida, acompanhado da percepção do quanto a vida é preciosa, que por fim se completaria com a lição de que todos os momentos deveriam ser muito bem aproveitados. Isso parece estar acontecendo ao longo da primeira parte do filme, quando Benjamin é uma criança e adolescente com aspecto de um velho, e desfruta todos os momentos e descobertas da vida como dádivas. Ao invés de crescer com a paranóia dos jovens, que querem apressadamente “conquistar o mundo”, ele cresce com a serenidade dos idosos, que apreciam os pequenos prazeres da vida, o sopro de uma brisa, o canto de um pássaro, o colorido de um por do sol. A essa primeira parte pertencem os melhores momentos do filme, como as divertidas reminiscências do homem que foi atingido sete vezes por relâmpagos. Aliás, em sua velhice, a única coisa que restou a este homem é a lembrança dos relâmpagos.
Entretanto, a profundidade da temática se desvanece conforme a narrativa avança e a vida de Benjamin se torna comum. Há uma grande dificuldade em mostrar o que ele aprende e o que tem a ensinar quando se torna ele próprio um idoso de verdade.
A temática do envelhecimento é estranha ao cinema hollywoodiano tradicional. A indústria cultural não contempla o fenômeno do envelhecimento e da morte natural nas suas narrativas. A morte, quando aparece, é quase sempre “heróica”, em nome de alguma causa, ou acidental, trágica. A morte pura e simples, como resultado natural do esgotamento da vida, é mantida ausente do imaginário coletivo. Há uma negação da morte natural na indústria cultural.

A negação anti-natural da morte resulta em uma falsa afirmação da vida. O cinema esconde o percurso natural da vida no mesmo movimento em que comercializa a vitalidade exuberante de suas estrelas, a juventude, a beleza, o carisma, a sensualidade. Tudo isso é embalado nas narrativas fantásticas do amor romântico idealizado e devidamente arrematado pelos artifícios do final feliz e pelo mito do “viveram felizes para sempre”. As vidas de contos de fadas do cinema são concebidas para funcionar como um precário substituto e antídoto para a vida miserável da maioria dos seres humanos neste mundo bárbaro.

Pensar na morte implica em questionar a vida. A filosofia nasceu com esse propósito, amparar o homem no confronto com sua inescapável finitude. Questionar filosoficamente a vida é uma atitude não muito bem vinda na nossa realidade atual. As narrativas adocicadas da indústria cultural induzem justamente à atitude oposta. O indivíduo compara sua própria vida com a vida idealizada do cinema, das telenovelas, dos romances, e percebe que há uma abissal diferença, mas considera que a causa da inadequação está na sua própria pessoa e não no mundo, e tenta se ajustar como pode.

Aparentemente, Benjamin Button se coloca na direção oposta do cinema comercial, ao trazer uma narrativa que aborda o início e o fim da vida de um homem. Entretanto, o filme não escapa da armadilha de sua própria premissa. O homem que envelhece ao contrário acaba, na verdade, não envelhecendo. O Benjamin maduro, na imagem de um Brad Pitt adolescente, não é um homem maduro, mas um adolescente. Suas decisões e escolhas, sua psicologia e atitudes, sua moralidade não revelam nenhum conflito real, nenhum dilema, nenhuma cicatriz emocional, nenhum tesouro de sabedoria adquirido ao custo de doloroso aprendizado. A imagem prevalece sobre o conteúdo.

O conto de Benjamin Button na verdade realiza a fantasia coletiva do rejuvenescimento. Ele é uma expressão radical do processo de rejuvenescimento dos protagonistas prototípicos do romance na narrativa cinematográfica. Os protagonistas dos grandes romances clássicos do cinema, como os de “E o vento levou” e “Casablanca” eram casais maduros. Os protagonistas dos romances do cinema atual são adolescentes, como os de “Titanic”. A indústria cultural rejeita a idade madura e busca refúgio na juventude.
Ao invés de ilustrar o envelhecimento como ganho de conhecimento, Benjamin Button retrata o desejo de juventude como fuga da realidade. Mesmo que essa não tenha sido a intenção consciente de seus autores, como muitas vezes não é no mundo da arte, o filme termina por expressar justamente a compulsão patológica pela juventude, a falsa afirmação da vida e a negação do pensamento e da morte que constituem o grosso da indústria cultural. A contradição do filme com a ideologia predominante na indústria é apenas aparente.

A vida de Benjamin Button transcorre ao longo de todo o “breve século XX” (Hobsbawm), um dos períodos mais conturbados da história, atravessado por revoluções, contra-revoluções, guerras mundiais, guerras de libertação, movimentos, idéias e ideologias que empolgaram milhões de pessoas, transformações sociais, culturais, comportamentais. Nenhum desses acontecimentos o afeta realmente. Ele participa da II Guerra, mas o faz sem opinião própria, apenas porque o capitão do navio em que trabalhava decidiu se engajar na marinha. Ele experimenta as perdas e o drama da guerra, mas permanece quase indiferente.

A História passa por Benjamin sem que ele se deixe afetar, sem que tome posição, sem que se comprometa com qualquer causa ou ideal, sem passar por uma sensação de vitória ou derrota. Benjamin é um ser a-histórico. Ele está tão deslocado do drama histórico da humanidade que resolve de modo também indiferente a questão mais básica para qualquer ser humano, a sobrevivência material. O adolescente/velhinho começa a trabalhar num barco apenas pelo prazer de realizar algo, mesmo que seja uma tarefa considerada degradante e rejeitada por todos os demais, como limpar o convés. O trabalho é uma atividade em si mesma gratificante, quando não realizado sob a compulsão da necessidade. Acontece que, nas atuais circunstâncias históricas, comprometidas pela divisão social do trabalho, ou seja, pela divisão de classes, o trabalho se concretiza como alienação, não como realização, para a quase totalidade dos seres humanos. Benjamin só pode se comportar assim em relação ao trabalho porque teve sua sobrevivência material convenientemente garantida no roteiro, seja pela Fundação filantrópica que mantém o asilo, seja pela herança da fábrica de botões.

Entretanto, Benjamin se relaciona de modo atípico não apenas com as condições sociais e históricas, mas também com a vida pessoal. Nunca fica claro o que o atraiu para a relação com a mulher do espião na Rússia, e por sua vez, o que o tornou atraente para ela. Sua relação com Daisy também transcorre como um casamento convencional. A não ser pelo fato de que também não fica suficientemente claro o motivo que o levou a se afastar da família que havia constituído com a mulher que fora o amor de sua vida.

No final das contas, a mensagem que se transmite não vai muito além daquela que se ouve em comerciais de TV ou livros de auto-ajuda: “nada dura pra sempre”, “viver um dia de cada vez”, “aproveitar cada minuto”. O filme fica nos devendo um personagem que tenha de fato aproveitado sua vida e que tenha algo a nos ensinar ao final de três preciosas horas do nosso tempo.

Daniel M. Delfino
08/02/2009


Ficha técnica:
Nome original: The Curious Case of Benjamin Button
Produção: Estados Unidos
Ano: 2008
Idiomas: Inglês
Diretor: David Fincher
Roteiro: Eric Roth
Elenco: Brad Pitt, Cate Blanchett, Julia Ormond, Jason Flemyng, Taraji P. Henson, Mahershalalhashbaz Ali, Elias Koteas
Gênero: drama, fantasia, mistério, romance
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/