Obama e a crise
A eleição de Obama responde a uma necessidade do imperialismo estadunidense de recuperar sua legitimidade política e reconstruir a coesão ideológica em torno da idéia da viabilidade do capitalismo, no momento mesmo em que o sistema é desafiado por uma de suas mais sérias crises. A função da “Obamamania” que tomou conta do mundo é prover um substituto ideológico para o neoliberalismo, cuja hegemonia nas últimas décadas produziu uma crise tão catastrófica que não há mistificação capaz de ocultar.
A eclosão inevitável das crises periódicas faz com que, nos momentos em que elas aparecem, como agora, a burguesia seja obrigada a admitir a crise. Não só isso, a burguesia precisa fazê-lo com grande estardalhaço, pois essa é a única maneira de fazer a classe trabalhadora aceitar o encargo de pagar a conta da crise. A classe trabalhadora precisa ser obrigada a aceitar passivamente as demissões, o rebaixamento de salários, a perda de direitos, o corte de serviços públicos, a proibição de todo protesto ou luta e até mesmo as guerras de extermínio. Todas essas medidas precisam ser apresentadas como inevitáveis, pois “não há outra alternativa”.
Por outro lado, ao admitir abertamente a existência da crise, a burguesia corre um sério risco de ver questionada a própria legitimidade do sistema capitalista. O discurso de que “não há outra alternativa” pode ser contestado. Nos momentos de crise, a classe trabalhadora tem a possibilidade de perceber que o sistema capitalista não funciona, que tudo que os patrões, políticos e intelectuais burgueses dizem é mentira, que tudo não passa de uma armadilha para fazer os trabalhadores aceitarem a exploração e a miséria. Em outras palavras, a crise abre a oportunidade para que os socialistas mostrem aos trabalhadores a necessidade de superar o capitalismo e construir um modo de produção socialista e racional voltado para o atendimento das necessidades humanas.
Abre-se então uma disputa ideológica, um confronto de alternativas para a humanidade. Os socialistas tem a seu favor a própria realidade dos fatos, que aponta para a necessidade de superar o capitalismo e evitar o aprofundamento da miséria, da barbárie e a própria destruição da humanidade. Por seu lado, a única arma da burguesia é a mistificação. A classe dominante precisa encontrar uma maneira de reciclar a crença na possibilidade do capitalismo continuar funcionando. Precisa encontrar uma maneira de dizer aos trabalhadores que não é preciso lutar, que não é preciso revolucionar a sociedade, que tudo pode se resolver por si mesmo. A principal maneira de dizer isso é através das eleições para o Estado burguês. Por meio da eleição de um novo governante, diz a burguesia, todos os problemas serão resolvidos.
É nesse contexto que acontece a eleição de Barack Hussein Obama para a presidência dos Estados Unidos, principal potência imperialista e epicentro da atual crise econômica. Obama é a alternativa interna do sistema. É o conto de fadas que será impingido aos trabalhadores para que todos acreditem que, se até mesmo um negro pode “chegar lá”, então ainda há esperança.
Obama e os negros
A escolha de um negro não é nada casual. Os negros sempre foram o setor mais explorado e marginalizado do proletariado. Sempre foram alvo de violência, preconceito e discriminação. A divisão dos trabalhadores em frações diferenciadas a partir do elemento da cor da pele sempre foi útil para que a burguesia impedisse a união da classe. A disputa entre um setor “privilegiado” e um setor “excluído” pelas vagas cada vez mais escassas no mercado de trabalho faz com que a burguesia possa reduzir o preço geral que paga pela força de trabalho.
Ao mesmo tempo, essa dupla condição de exploração em função da classe e opressão em função da cor da pele gera na população negra a demanda da aceitação e da igualdade. Essa demanda pode ser administrada pela burguesia sem que os fundamentos da divisão de classe sejam questionados. A burguesia pode conceder uma igualdade abstrata e formal aos negros para que estes se sintam representados. Pode até mesmo admitir um negro como presidente do principal país imperialista.
O negro Obama se tornou a esperança de milhões de negros no seu país e no mundo inteiro. Entrou em ação a todo vapor o mecanismo da mistificação pelo qual a classe trabalhadora do mundo inteiro, negra ou não, pode ser levada a acreditar nas virtudes do capitalismo e de seu regime político de democracia representativa. Ao invés de lutar contra a divisão da sociedade em classes, os trabalhadores passam a festejar a aceitação de “um dos seus” no lugar principal do palco.
Obama e o espetáculo
A democracia burguesa consegue assim fazer com que a política deixe de ser uma disputa substantiva entre alternativas societárias e passe a ser uma disputa vazia de imagens. Ao invés de lutar por um outro projeto de sociedade, os trabalhadores são induzidos a festejar uma outra imagem de governante. Ao invés de se discutir o conteúdo de classe da política (os interesses de qual classe social ela atende), passa-se a discutir a identidade do aplicador dessa política. O conteúdo da política permanece sempre o mesmo, mas a política não discute o conteúdo, apenas a aparência, reduzindo-se assim a um mero espetáculo, um jogo de cena. Obama virou um superstar, um “astro do rock”. Sua cerimônia de posse em 20/01/09 se transformou num circo para celebridades da indústria cultural glamourizarem o novo presidente com um verniz pop. Imagens da cerimônia circularam pelo mundo numa espécie de apoteose, como se o próprio Messias tivesse descido à Terra.
Espetáculos semelhantes tem se repetido também na América do Sul. O Chile elegeu uma mulher, a Bolívia elegeu um índio, o Paraguai elegeu um bispo e o Brasil elegeu um operário. Nada disso trouxe mudanças positivas substanciais na vida da classe trabalhadora desses países, pois o sistema sócio-econômico capitalista, baseado na apropriação privada do trabalho coletivo, continuou em vigor. Nenhuma dessas figuras tinha o propósito de abolir o capitalismo; ao contrário, funcionaram como instrumentos para preservar o sistema, manipulando as esperanças dos trabalhadores e impedindo a eclosão de lutas.
Obama terá o mesmo papel dessas figuras da política do espetáculo. Não é coincidência o fato dele ter usado em seu discurso de posse o mesmo bordão da campanha de Lula em 2002: “a esperança venceu o medo”. Obama será uma espécie de Lula global, o gestor do ataque aos trabalhadores revestido de imagem amigável. O Estado é o “comitê gestor dos negócios da burguesia” (na definição de Marx), e Obama, na qualidade de dirigente do principal Estado burguês do planeta, foi eleito para defender os interesses do imperialismo estadunidense.
Obama e a burguesia
O desgaste da imagem dos Estados Unidos ao longo da administração Bush e o crescimento de um sentimento “anti-Estados Unidos” no mundo inteiro obrigaram a burguesia a modificar sua tática. Um outro perfil de governante seria necessário para aplicar a mesma política. Para produzir essa ilusão de mudança sem mudar nada de fato, a burguesia tirou da cartola um político do Partido Democrata. Desde o início da corrida eleitoral, tornou-se evidente que o próximo presidente estadunidense sairia da disputa interna entre Obama e Hillary Clinton pela indicação do Partido Democrata. Não por acaso, essa disputa foi uma das mais acirradas em todos os tempos e foi acompanhada com grande interesse no mundo inteiro.
Uma vez eleito, Obama buscou construir um governo de unidade da burguesia. Para o cargo de Secretária de Estado (equivalente ao de ministro das relações exteriores), ele convocou nada menos do que sua rival na disputa épica de meses atrás, a própria Hillary Clinton. Convém lembrar que a política exterior da era Clinton foi marcada pela afirmação da supremacia imperial dos Estados Unidos, pelo “consenso de Washington”, pela imposição do neoliberalismo, pelos ataques aos direitos dos trabalhadores no mundo inteiro, pelas privatizações, pelos tratados de “livre comércio” que violaram a soberania de dezenas de países, pela escalada do poder das transnacionais, pela desregulamentação financeira internacional; e também pelas intervenções militares contra a Sérvia (então Iugoslávia), a Somália e os bombardeios e sanções que sangraram o Iraque à exaustão (tornando o país presa fácil para Bush poucos anos depois). Por último, convém lembrar que foi a administração Clinton que patrocinou os acordos de Oslo, pelos quais a OLP reconheceu o Estado de Israel e colocou o movimento de resistência nacional palestino no beco sem saída em que se encontra hoje.
As primeiras declarações de Obama e Hillary sobre política externa sinalizam a mudança do eixo da agressão imperialista em direção ao Irã. Diferentemente do Afeganistão, devastado por três décadas de conflito, e do Iraque, sucateado por mais de uma década de bombardeios e bloqueio econômico, o Irã é uma potência de médio porte, uma país populoso, coeso, fortemente centralizado por sua direção política, disposto a resistir e capaz de mobilizar amplos contingentes internacionais de combatentes para a guerra assimétrica contra o império. Na última oportunidade em que Bush ameaçou mais diretamente o Irã, cerca de 40 mil voluntários se alistaram para ser homens-bomba e explodir alvos de interesse do imperialismo pelo mundo. Não contente com o atual atoleiro em que se encontra no Iraque e no Afeganistão (dos quais aliás não vai haver tão cedo uma retirada, apesar dessa ter sido a principal promessa de campanha de Obama), o imperialismo prepara uma catástrofe ainda maior.
Para o cargo de Secretário do Tesouro, Obama convocou Timothy Geithner, que foi dirigente da seccional de Nova York do FED (Banco Central) na era Clinton, quando a desregulamentação financeira produziu a bolha especulativa das empresas “ponto-com”. Um dos principais assessores econômicos de Obama será Paul Volcker, veterano presidente do FED na era Reagan e responsável por uma violenta alta dos juros no início da década de 1980, a qual precipitou a crise da dívida externa na América Latina, arrastando vários países para a recessão e trazendo a miséria para dezenas de milhões de trabalhadores.
Como Secretário de Defesa, comandante do maior aparato militar da história, Obama manteve Robert Gates, nomeado por Bush em 2006 e entusiasta das invasões do Iraque e do Afeganistão. A manutenção de um Secretário de Defesa quando há mudança de partido na Casa Branca é um fato inédito na história política estadunidense.
Como se não bastasse, foi criado um cargo de “Chief Performance Officer”, para o qual foi indicada Nancy Killefer, ex-executiva da firma de consultoria McKinsey & Co. A função desta representante de Wall Street no governo será realizar os cortes no orçamento com os quais a nova administração tentará combater o déficit público total que já chega a US$ 10,7 trilhões. Os cortes não serão feitos no orçamento do Pentágono de Robert Gates, naturalmente, mas nos programas de saúde pública e bem-estar social já bastante precários que atendem as famílias pobres nos Estados Unidos, a maioria negros e latinos, justamente o grosso dos eleitores de Obama.
É importante destacar que Obama não está fazendo todas essas concessões por conta da força política do Partido Republicano. Ao contrário, além de ganhar a Casa Branca, o Partido Democrata tem folgada maioria no Senado e na Câmara dos Deputados, de modo que Obama teria condições de aprovar facilmente quaisquer mudanças que quisesse. Acontece que Obama não foi eleito para trazer “a mudança que precisamos”, como dizia seu slogan de campanha, mas para garantir a continuidade que o imperialismo precisa.
Como diz a célebre frase do personagem de Lampedusa, a burguesia optou por “mudar algo para que tudo permaneça o mesmo”.
Daniel M.
Delfino
Fevereiro 2009
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