3.12.09

Ser militante hoje

O gênero e a espécie

Digito a palavra “militante” na ferramenta de buscas “GOOGLE” e me aparecem 351.000 resultados. Entre os 20 primeiros resultados, que correspondem aos registros mais visitados, encontro 9 links* que correspondem a uma acepção bastante peculiar da palavra militante.

Trata-se de manchetes de jornal que dizem respeito à luta armada contra as invasões dos Estados Unidos ao Iraque, Afeganistão e Paquistão ou contra a invasão da Palestina por Israel. Nessas manchetes se diz que “militantes” da Al Qaeda, do Talibã, do Hamas ou do Hizbollah enfrentaram as tropas invasoras ou praticaram atentados contra a presença imperialista naqueles países.

O que há de extraordinário nessas notícias?

Ora, até bem pouco tempo atrás, os grupos que praticavam a luta armada contra o imperialismo eram chamados de “terroristas”. Agora, são chamados de “militantes”. Essa mudança configura uma importante manobra ideológica que se realiza através de uma inversão semântica do gênero pela espécie.

O indivíduo que pratica a luta armada, seja sob a forma de guerrilha ou de terrorismo, é certamente uma espécie de militante. Pode-se discordar politicamente do terrorismo como tática adequada a determinado momento histórico ou determinada situação da luta (a esmagadora maioria dos marxistas revolucionários, este autor incluído, discorda), mas é preciso conceder que se trata de um tipo de militância. Mas se todo terrorista é de certa forma um militante, nem todo militante é obrigatoriamente um terrorista. Aí está o “X” questão. É essa distinção que está sendo apagada pela operação semântica em andamento na mídia burguesa, com um objetivo ideológico bastante preciso.

O terrorismo é quase universalmente repudiado como tática de luta política, não apenas pela hoje restrita confraria dos marxistas revolucionários, mas por todas as frações da classe trabalhadora. Infelizmente, os trabalhadores em geral não repudiam o terrorismo por ter o mesmo entendimento que os marxistas revolucionários a respeito do que ele significa, ou seja, por ser uma tática contraproducente na luta contra o capital. O proletariado repudia o terrorismo porque a sua consciência, em quase todas as questões, da moral e da estética até a política, segue a ideologia burguesa. Entre as outras classes sociais, a burguesia evidentemente condena publicamente o terrorismo contra o capital, mas se omite quanto ao terrorismo de Estado praticado sistematicamente para reprimir as lutas contra a sua dominação. O terrorismo de Estado é chamado de “defesa da segurança nacional”, enquanto que o terrorismo contra o capital recebe todo o repúdio possível e imaginável.

É justamente esse repúdio que a mídia burguesa quer capitalizar. Assim, quando se chamam os combatentes terroristas de “militantes”, o objetivo é chamar os “militantes” de terroristas. E com isso, jogar o repúdio moral que acompanha a forma particular de ação que é o terrorismo sobre os militantes em geral, qualquer que seja a sua prática. A mídia burguesa quer associar a palavra “militante” à imagem do terrorista. O militante será visto pelo trabalhador com desconfiança, por causa dessa associação subliminar com o terrorismo. Quando um trabalhador ouvir a palavra “militante”, ele não vai pensar na figura do militante em geral, mas na figura particular do terrorista. E qualquer que seja a ação militante de que esteja se falando, a carga de repúdio que acompanha a figura do terrorista estará inconscientemente associada a essa ação.

A crítica das armas

Essa manobra ideológica recente da mídia burguesa é apenas mais um dos golpes na imagem já bastante desgastada dos militantes. A figura do militante tem estado com o prestígio bastante em baixa nos últimos tempos, por causa do descrédito em que caiu a luta contra o capital. Mas para esse descrédito contribuiu também uma série de práticas das próprias organizações políticas militantes que só tem contribuído para afastar os trabalhadores da luta contra o capital. Isso exige uma profunda revisão metodológica, teórica, moral, comportamental, discursiva e operacional por parte da esquerda para que o marxismo revolucionário volte a ser ouvido pelos trabalhadores e possa passar da “arma da crítica” à “crítica das armas”.

A respeito dessa revisão falaremos logo adiante. O que importa desenvolver aqui é a questão da crítica das armas. Há também uma distinção importante entre terrorismo e guerrilha ou insurreição, pois há tipos de luta armada que não necessariamente envolvem o terrorismo (e não necessariamente são condenados pelos marxistas revolucionários, este autor inclusive). Mas esta segunda distinção também é sistematicamente apagada pelo amálgama semântico característico da ação ideológica da mídia burguesa.

A luta contra o capital não dispensa o momento do enfrentamento físico contra o capital e o Estado burguês, ou seja, a crítica a ser exercida por meio das armas de que fala a célebre frase de Marx parafraseada acima. Isso está longe de significar que ser militante seja o mesmo que ser terrorista. A “crítica das armas” não é a ação isolada de indivíduos que matam indiscriminadamente e permitem com isso que a burguesia obtenha a legitimidade ideológica para as formas mais espúrias de repressão, como acabamos de presenciar por ocasião da resposta de Bush ao 11 de setembro. A “crítica das armas” é a ação política coletiva consciente e organizada do conjunto da classe trabalhadora contra o capital, que precisará envolver algum tipo de luta armada, mesmo porque a burguesia jamais vai abrir mão dos seus privilégios pacificamente, sem luta, e seu instrumento, o Estado burguês e seu aparato repressivo (forças armadas, polícia, órgãos de espionagem, etc.), não se dissolve sozinho.

Para chegar até essa verdadeira “crítica das armas”, até esse tipo de ação coletiva consciente e organizada da classe, a arma da crítica precisa ser radical, ou seja, “tomar as coisas pela raiz, e a raiz do homem é o próprio homem”, prossegue Marx. A esquerda marxista revolucionária não tem sido capaz de chegar a essa raiz do homem, ao entendimento do que é a condição do homem hoje.

Queimando o filme

Os militantes de esquerda vivem hoje numa condição social apartada da classe que dizem representar e que pretendem liderar. Vivem instalados em cargos no aparato do Estado, dos sindicatos, das universidades, das ONGs e dos partidos. E não são apenas as correntes reformistas (que negam a necessidade da revolução para abolir o capital), mas também os revolucionários, que adotam essa prática de afastar os seus melhores quadros e empregá-los vitaliciamente em atividades superestruturais. Quando não acontece a capitulação aberta, como no caso dos reformistas, que se transformam em co-gestores do capital ao lado da burguesia, há um processo objetivo de burocratização que desvincula esses militantes da realidade da classe.

No caso das correntes revolucionárias, onde não acontece a burocratização, vigora um sectarismo feroz, uma disputa autofágica e suicida pelo controle dos aparatos do movimento (sindicatos e demais entidades), que apenas resulta em asfixia do próprio movimento. Tendo como foco a disputa pelos aparatos, as organizações de esquerda adotam um discurso que fala apenas a quem já é militante, cada uma tentando parecer mais revolucionária que a outra. Esse discurso não diz nada aos trabalhadores de carne e osso, e as práticas de disputa não contribuem para trazê-los para a luta.

De um lado, a burguesia constrói um cenário ideológico em que o militante se torna sinônimo de terrorista, ou de criminoso, baderneiro, cão raivoso, lunático, etc. De outro lado, as práticas correntes na própria esquerda impõem aos militantes a desgastante tarefa de conviver com organizações que concebem a militância como disputa, uma disputa em que vale tudo, todos os tipos de golpes e manobras para desacreditar as organizações “rivais” perante o público. O público, que é o restante da classe trabalhadora nesse caso, está completamente alheio a esse patético e mesquinho espetáculo, que parece não lhe dizer respeito.

Além das dificuldades de se enfrentar a burguesia e todo seu gigantesco aparato de repressão e controle ideológico, composto pelo Estado, a mída, as igrejas, os burocratas, etc., os militantes ainda precisam enfrentar o obstáculo que é a postura das próprias organizações de esquerda. É um desafio imenso fazer parte de uma organização militante e participar da luta de classes sem se deixar absorver pela disputa de tipo fratricida em que estão mergulhadas as demais organizações.

Outro obstáculo consiste em vencer a desconfiança dos trabalhadores em relação às organizações de esquerda, cujos vícios sectários, rivalidades “futebolísticas”, apego aos cargos e aparatos e discursos “alienígenas” transparecem de maneira cristalina para qualquer trabalhador.

Colaborando para alimentar essa desconfiança, de resto bastante justificada, existe ainda o discurso de um setor dito “independente” que se recusa a participar das organizações políticas militantes porque não são democráticas, cerceiam a criatividade, reprimem a liberdade do indivíduo, etc. Esse discurso contém uma parcela de verdade, uma vez que a maior parte das organizações de esquerda são de fato autoritárias, têm um funcionamento interno burocrático, lideranças vitalícias, separação entre dirigentes que fazem o trabalho intelectual e deixam o trabalho braçal para os militantes, etc. Entretanto, a resposta contra isso, ao invés da postura independente, que leva à dispersão e ao imobilismo, deveria ser a busca por novas formas de organização, por novas experiências coletivas, novos métodos de ação, nos quais se pudesse empregar toda a criatividade, desejo de liberdade e vontade de se manifestar. Isso contribuiria enormemente para oxigenar e revitalizar a luta contra o capital.

Além disso, não há nada mais anti-democrático, autoritário, repressivo, tedioso, odioso, anti-humano, do que a própria sociedade burguesa. Deixar de lutar contra essa sociedade porque a esquerda atual é tosca, mambembe e anti-democrática é uma contradição. Para revolucionar a sociedade, é preciso revolucionar a própria esquerda. O contrário disso seria aceitar a alienação e a desumanização que a ordem do capital impõe.

Nadando contra a corrente

O militante é a pessoa que não aceita a alienação, apesar das dificuldades hoje envolvidas nas várias dimensões da luta contra o capital. Confrontado com essas dificuldades, o militante não tem outra alternativa a não ser militar. A recusa da ordem estabelecida não é um ato individual, nem tampouco uma simples opinião intelectual. Ser militante é tomar parte ativa e prática na luta coletiva, organizada e consciente contra o capital. É negar todos os tipos de exploração, opressão, repressão, dominação, manipulação, hierarquização, falsificação e mentira que caracterizam a sociedade burguesa. É questionar, recusar, discutir, pensar, criticar, propor, elaborar, inventar, participar, arregaçar as mangas, construir e se auto-construir. É tentar construir hoje o homem de amanhã: um indivíduo ativo, criativo, crítico, consciente, que estuda, debate, se expressa, não se cala, grita, chora e ri ao lado de seus irmãos de luta e de classe. É construir uma outra forma de vínculo humano, em que não há interesse material ou mercantil, um vínculo em que o indivíduo se realiza por meio do coletivo e vice-versa, uma relação de companheirismo, camaradagem, confiança, honestidade, verdade.

Ser militante é lutar contra a exploração econômica, o trabalho assalariado, a propriedade privada, o poder político, as instituições do Estado, as mentiras das igrejas, as armadilhas da ideologia dominante, os preconceitos, o racismo, o machismo, o patriarcado, o moralismo, a hipocrisia, a moda, os comportamentos fabricados, o tédio, a cultura enlatada, o estranhamento que impede os seres humanos de se olharem nos olhos uns dos outros e se verem no espelho. São milênos de alienação a serem combatidos, com a crítica da armas e as armas da crítica.

Daniel M Delfino, militante do Espaço Socialista (http://www.espacosocialista.org/)
15/11/2009

*Resultados da pesquisa no GOOGLE:

Folha Online - BBC Brasil - Militante promete se entregar e se ...
28 Ago 2009 ... O homem-bomba era um militante procurado pela polícia que tinha dito que queria se entregar pessoalmente ao príncipe, que é responsável pela ...
http://www1.folha.uol.com.br/folha/bbc/ult272u616089.shtml

Indonésia confirma que militante mais procurado do país continua ...
12 Ago 2009 ... Testes de DNA revelaram que homem morto no sábado não era Noordin Mohammed Top.
www.estadao.com.br/.../internacional,indonesia-confirma-que-militante-mais-procurado-do-pais-continua-vivo,417296,0.htm

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Although US ally Pakistan is battling militants in its northwest it officially objects to the US strikes by pilotless aircraft, saying they are a violation ...Reuters - artigos relacionados 582 »
http://www.reuters.com/article/latestCrisis/idUSISL484580

Kashmir Militant Extremists - Council on Foreign Relations - [ Traduzir esta página ]
A profile of militant extremist groups in the disputed Himalayan region of Kashmir.
http://www.cfr.org/publication/9135/

Indonesia believes top militant dead, thwarts attack Reuters - [ Traduzir esta página ]
8 Aug 2009 ... KEDU, Indonesia (Reuters) - Indonesian police shot dead a man suspected to be leading Islamic militant Noordin Mohammad Top after an 18-hour ...
http://www.reuters.com/article/topNews/idUSTRE57631P20090808

Al Qaeda's second-in-command called on Pakistanis to back Islamic militants in the country's tribal areas against what he called an ongoing assault by ...
http://www.cnn.com/2009/WORLD/asiapcf/08/28/pakistan.al.qaeda.video/index.html

Prince on call with militant during attack - Mideast/N. Africa ... - [ Traduzir esta página ]
1 Sep 2009 ... The Saudi militant who attacked the kingdom's anti-terror chief after pretending he wanted to surrender blew himself up while the official ...
http://www.msnbc.msn.com/id/32649250/ns/world_news-mideastn_africa/

OBS: pesquisa realizada em setembro de 2009.

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