A
comemoração de uma vitória que não houve
Em
novembro de 2014 foi realizada na Alemanha uma grande celebração
para comemorar os 25 anos da queda do muro de Berlim, com a presença
de vários chefes de Estado e grande destaque por parte da
mídia burguesa internacional. O discurso oficial é de
que a queda do muro representou uma vitória da causa da
“liberdade” contra a opressão. A cidade de Berlim se
localiza no meio do território da antiga Alemanha Oriental,
mas durante décadas foi cercada por um muro que a dividia
entre uma metade capitalista e uma metade dita “socialista”.
Parte de Berlim era uma “ilha” capitalista cercada pelo muro num
mar de países “socialistas”. Foi para isolar o
“socialismo” do contágio ocidental capitalista que parte
da cidade foi cercada pelo muro, que impedia a passagem de pessoas
que moravam numa metade para a outra.
A queda
do muro foi também a queda do regime “socialista” na
Alemanha Oriental e o grande passo para a reunificação
das duas Alemanhas, que se completou em 1990, quando Berlim voltou a
ser a capital da Alemanha reunificada. No mesmo momento, caíam
também os regimes “socialistas” em todo o leste europeu:
Polônia, Tchecoslováquia (que se separou em dois países,
República Tcheca e Eslováquia), Hungria, Romênia,
Bulgária, Iugoslávia (uma federação cujas
seis repúblicas componentes se separaram, inclusive com
guerras entre si) e Albânia. No ano seguinte, em 1991, caiu
finalmente a União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas - URSS, primeiro e maior dos países
“socialistas” (uma federação composta por 15
repúblicas, das quais a Rússia era a maior, que também
se separaram). A queda do muro de Berlim representa, portanto, o fim
dos regimes “socialistas” e a “vitória” do
capitalismo, por isso a burguesia faz questão de comemorá-la.
Trata-se de um acontecimento simbólico que os capitalistas e
seus ideólogos colocam no centro de sua narrativa da história,
para reafirmar a vitória do modo de produção e
da forma de sociedade que defendem.
Essa
comemoração da “vitória” do capitalismo
sobre o socialismo até parecia plausível em 1989-91,
mas 25 anos depois, agora em 2014, com o sistema capitalista mundial
sem conseguir sair da crise desde 2008, envolto em sérios
conflitos entre as grandes potências, que ameaçam
transbordar para o terreno militar, pressionado por protestos e lutas
populares em vários países, levando ao aumento da
miséria, desigualdade e catástrofes; essa comemoração
não passa de um imenso ato público de cinismo.
Entretanto, apesar dessa “vitória” do capitalismo estar
longe de ser definitiva, a crise que se abateu sobre o movimento
socialista com a queda daqueles regimes ainda não foi
superada, décadas depois, e isso merece uma análise
mais detida.
Não
consideramos a União Soviética e seus satélites
europeus (mas podemos também incluir os não europeus,
como China, Cuba, Vietnã e Coréia do Norte) como
realmente socialistas, por isso usamos aspas ao chamá-los de
“socialistas”. Mas apesar de não terem sido realmente
socialistas, o fim do regime que existia naqueles países
produziu um retrocesso na luta mundial pelo socialismo, e isso exige
uma explicação.
Uma vitória da qual ainda não nos recuperamos
A
Revolução Russa de 1917, que daria origem à
URSS, foi o acontecimento mais importante da história da
humanidade, pois através dela pela primeira vez foi dado um
passo para acabar com a sociedade de classes, a partir da tomada do
poder político por uma classe dominada, o proletariado, ao
lado dos camponeses, em um país inteiro e de grande
importância no cenário mundial. Essa vitória foi
tão gigantesca que os seus efeitos se estenderam por sete
décadas, até 1989-91, mesmo que em menos de duas
décadas, já por volta de 1930, os retrocessos tenham
anulado quase totalmente os efeitos de tal vitória no interior
da própria URSS. De certa forma, o socialismo foi derrotado na
URSS já na década de 1930, mas os efeitos dessa derrota
só foram notados na década de 1990. Durante esse
intervalo de várias décadas, o que sobreviveu na URSS
(e se espalhou pelos seus satélites) era uma espécie de
arremedo ou fantasmagoria do socialismo, que não tinha chances
reais de sobreviver nem de superar o capitalismo.
Mesmo
assim, essa fantasmagoria foi tomada como sendo realmente o
socialismo, tanto pelos seus adversários capitalistas (que
assim puderam difamá-lo enquanto existiu e depois comemorar a
sua queda, como fizeram na época e fazem até hoje em
2014, como acabamos de ver em Berlim, ou semanalmente na revista
Veja), como pelos defensores do socialismo no restante do mundo, o
que é muito mais grave. Considerar a URSS como socialista ou
como modelo trouxe prejuízos imensos na compreensão das
tarefas reais colocadas na luta pelo socialismo. A falta de uma
compreensão real do que era a URSS e de porque o socialismo
foi derrotado naquele país ainda impede a retomada de uma
ofensiva socialista, mesmo que o adversário capitalista esteja
em crise.
Sem ter
essa compreensão, o movimento socialista não consegue
oferecer uma alternativa aos milhões de trabalhadores e jovens
que estão em luta contra os efeitos do capitalismo no mundo
inteiro. As lutas se seguem, os protestos se multiplicam, contra a
violência policial nos Estados Unidos, contra a violência
do narco-estado do México, contra a violência às
mulheres na Índia, contra o genocídio dos palestinos
por Israel, etc.. Tudo isso tem levado milhões de pessoas às
ruas no mundo inteiro, mas se trata de lutas contra os efeitos do
capitalismo, e estes efeitos vão perdurar enquanto não
se destruir a causa dos problemas, o próprio capitalismo.
Essas lutas, por sua vez, jamais vão atacar as causas do
problema, ao invés de apenas os seus efeitos, como fazem hoje,
enquanto não tiverem uma alternativa real para colocar no seu
lugar. E essa alternativa não se coloca, entre outras coisas,
porque o socialismo ainda é confundido com o regime que
existia na URSS e seus satélites.
Muitos
percebem os problemas do capitalismo e até se colocam em luta
contra eles, mas não acham que seja possível a abolição
total desse sistema e a sua substituição por outro,
porque dizem que isso já foi tentado, mas “deu errado”. E
a prova de que essa tentativa deu errado são os exemplos de
“socialismo” do século XX. O senso comum dos trabalhadores
ainda chama as experiências do século XX de socialistas
(e é claro, os seus adversários também o fazem,
com o objetivo de desacreditar o socialismo), e o movimento
socialista ainda não conseguiu desfazer essa confusão.
Por isso dissemos que a Revolução Russa foi uma vitória
incontestável, mas da qual ainda não nos recuperamos. O
gigantismo da vitória de 1917 ainda se impõe sobre nós
como um desafio a ser superado, exigindo um passo adiante na
história, que continue de onde a Revolução Russa
foi derrotada.
Elementos para um debate necessário
O debate
sobre as experiências do século XX e porque não
levaram ao socialismo precisa ser feito em profundidade por todas as
organizações e militantes socialistas, pois sem isso a
crise da alternativa socialista jamais será superada.
Entretanto, de modo geral, as organizações socialistas
permanecem aferradas a concepções que vigoraram durante
todo o século XX como se fossem dogmas religiosos. O
conservadorismo teórico da imensa maioria das organizações
socialistas as impede de retomar o método marxista,
materialista e científico, para analisar a realidade e tirar
as políticas necessárias para a ação. Não
será porém este pequeno texto que irá trazer “a
resposta certa” onde tantos militantes honestos e abnegados estão
errando. Essa resposta somente será produzida por um imenso e
urgente esforço coletivo. Entretanto, não poderíamos
concluir o texto sem deixar de apresentar algumas hipóteses
que consideramos centrais para este debate coletivo. Tentamos
apresentar essas formulações da maneira mais resumida
possível, de modo que cada afirmação contida
abaixo necessita de precisões. Mas trata-se de um pontapé
inicial, portanto vamos aos tópicos:
a) socialismo e capitalismo
- o
socialismo não fracassou no século XX, ele apenas foi
iniciado, e tão logo foi iniciado em alguns países, foi
combatido mortalmente pelo capitalismo, até que aquelas
experiências iniciais, completamente deformadas e desfiguradas,
fossem enterradas várias décadas depois em 1989-91
(China, Cuba, Vietnã, Coréia do Norte, que já
nasceram desfiguradas, estão em processo, mais ou menos
completo em cada caso, de restauração capitalista);
- quem
fracassou foi o capitalismo, que depois de séculos de
existência submete a humanidade à fome, miséria,
doenças, violência, guerras, discriminações;
além da exploração cotidiana, que rouba nossa
força de trabalho em troca de um salário, que é
sempre menor do que o valor produzido pelo nosso trabalho, um salário
com o qual só temos acesso a um simulacro de vida, não
a uma vida autenticamente humana;
- o
capitalismo não tem mais nada a oferecer à humanidade a
não ser o aprofundamento da barbárie. O controle
capitalista sobre as forças produtivas, que impede o
intercâmbio e a cooperação da ciência e da
tecnologia, retido nas mãos das corporações e
governos, é um imenso atraso para a humanidade. Basta pensar
nos programas de computador e equipamentos eletrônicos que são
incompatíveis entre si e não se comunicam, simplesmente
porque são de fabricantes diferentes. A propriedade privada
dos meios de produção bloqueia o desenvolvimento das
forças produtivas da humanidade, e impede a redução
do tempo de trabalho e a multiplicação do tempo livre
para vivências autenticamente humanas;
- por
mais graves que sejam as crises, o capitalismo não vai cair
por si mesmo, ele precisa ser derrubado por uma ação
consciente, que deve ser feita em nome do projeto de uma nova
sociedade. Essa derrubada tem que ser feita por meio de uma
revolução, já que os detentores do poder, as
classes beneficiadas pelo capitalismo, não vão abrir
mão dos seus privilégios e vão reagir contra
qualquer tentativa de mudança usando a força contra
aqueles que querem mudar o sistema, mobilizando a violência do
Estado e outros meios que estiverem à sua disposição;
-
chamamos esse projeto de uma nova sociedade de socialismo, que não
é uma utopia, um plano ideal de sociedade desenhado na cabeça
de alguns gênios, ele é o resultado do processo real de
transformação, a partir de cada luta concreta pela
superação dos problemas da sociedade atualmente
existente;
-
suponhamos por exemplo uma região afetada pela falta d'água,
como a Grande São Paulo no momento. Uma solução
socialista seria a formação de comitês de
moradores de cada bairro para administrar a água existente,
socializando a empresa de distribuição, para garantir
que não falte água para consumo humano. E assim por
diante em relação ao transporte público,
hospitais, etc. Necessariamente, todos os ramos de produção,
indústrias, etc., teriam que ser socializados, isto é,
expropriados, e colocados sob controle dos trabalhadores. A reunião
de todos esses comitês e organismos de controle social em uma
única forma de poder político substituiria o Estado
como o conhecemos, o Estado capitalista representativo, pela
democracia direta dos trabalhadores.
- essa
substituição, repetimos, só é possível
pela via revolucionária. É preciso abolir o antigo
Estado, e todas as suas instituições (Executivo,
Legislativo, Judiciário, Forças Armadas, polícia,
etc.), e substituí-lo por novos organismos surgidos da luta
dos trabalhadores;
b) socialismo e revolução mundial
- a
revolução socialista deve ser feita em cada país,
abolindo as instituições de cada estado nacional
conforme exemplificamos acima, mas a construção do
socialismo propriamente dito só pode ser feita em escala
mundial, pois requer a socialização das forças
produtivas da humanidade inteira, de modo que os produtores da
riqueza, os trabalhadores, se apropriem da tecnologia, para produzir
mais e trabalhar menos, e possam assim desfrutar de tempo livre para
se humanizarem;
- isso
quer dizer que a revolução socialista tem que ser
pensada como uma revolução mundial, que deve acontecer
tanto nos países mais atrasados como nos países mais
avançados. A revolução socialista requer a
socialização da riqueza mundial, da ciência e da
tecnologia produzidas ao longo da história, para uso coletivo
da humanidade. O que tivemos no século XX com o nome de
socialismo foi infelizmente apenas a socialização da
miséria de alguns países pobres;
- quando
os trabalhadores tomaram o poder na Rússia em 1917, liderados
pelos revolucionários socialistas, estes não pensavam
em construir uma Revolução Russa, no sentido de
especificamente russa, mas viam a sua luta como uma parte dessa
Revolução Mundial em andamento, a ser desenvolvida no
espaço local. Eles estavam “cumprindo a sua parte no plano”
internacional da revolução. No restante do mundo é
que não aconteceu o mesmo e o “plano” não foi
cumprido;
- os
revolucionários tomaram o poder na Rússia, no curso de
uma grave crise econômica, social e política provocada
pela 1ª Guerra Mundial, que ainda estava em curso. Essa crise
provocou revoluções e quase revoluções em
vários países, não apenas na Rússia, onde
foi vitoriosa. Mas na Alemanha, Itália, Hungria, essas
revoluções foram derrotadas (quando se estuda essa
parte da história, as revoluções provocadas pela
I Guerra nos demais países para além da Rússia
são convenientemente esquecidas ou secundarizadas pelos
historiadores burgueses). Com isso, a Revolução
Socialista, ou seja, a Revolução Mundial, ficou isolada
e paralisada na Rússia, e se transformou em Revolução
Russa;
-
durante os primeiros anos após a Revolução os
revolucionários se mantiveram no poder na Rússia,
transformada em URSS, à espera da Revolução
Mundial, que não veio. Ao se manter no poder, eles acabaram
involuntariamente se transformando em “modelo” para a revolução
socialista internacional. E esse modelo tinha vários
problemas, pois a Rússia era um país imenso e
importante, mas ainda pobre, pouco urbanizado e industrializado, de
maioria camponesa e analfabeta;
- a URSS
não poderia ter chegado sozinha ao socialismo, não só
por causa dos seus limites materiais como um país atrasado,
mas porque o socialismo requer uma revolução mundial, é
sempre importante repetir. Mesmo um país imperialista
tecnologicamente avançado não poderia alcançar o
socialismo sozinho, sem o intercâmbio com o restante do mundo.
A URSS, além de partir de uma realidade de atraso e de ter
permanecido isolada, enfrentou uma série de outros problemas
na sua tentativa de transição ao socialismo. Um desses
problemas foi a burocratização, que não havia
sido prevista pelos revolucionários;
c) socialismo e burocracia
- os
capitalistas russos e internacionais não permitiram que os
revolucionários russos e os trabalhadores fizessem sua
“experiência” socialista em paz, eles formaram exércitos
contra revolucionários para destruir tal experiência,
com os métodos mais brutais, levando a uma guerra civil
duríssima. Essa guerra só terminou em 1921, deixando a
Rússia (que já tinha sofrido com a I Guerra) quase
destruída. Para que se tenha uma ideia, o PIB baixou a cerca
de 15% do que era antes da guerra;
- boa
parte dos operários que eram convictos do socialismo e lutaram
pela revolução foram mortos na guerra civil. Os que não
morreram se tornaram administradores mais ou menos improvisados da
nova sociedade, que teve que ser reconstruída quase do zero. A
socialização da miséria não foi uma
opção, mas o único caminho que restou aos
revolucionários, que permaneceram no poder à espera de
uma Revolução Mundial, que afinal não veio;
- mesmo
que não houvesse a guerra e a destruição, a
Rússia já não tinha as condições
materiais e humanas para desenvolver o socialismo, mas poderia
avançar para formas democráticas de gestão
social, formas proto socialistas ou pseudo socialistas, mais humanas
do que as que vigoram no capitalismo, à espera da revolução
mundial;
-
entretanto, no período da guerra civil, vigorou um estado de
emergência, que era justificado enquanto se esperava a
revolução em outros países. Nessa situação
de emergência, todo o controle passou para as mãos do
partido e de uma nova burocracia, composta das poucas pessoas
habilitadas às funções gerenciais. Essa
burocracia incluía em bom número uma vasta camada de
antigos e novos oportunistas, remanescentes do antigo estado czarista
russo e ex-militantes convertidos em burocratas;
- essa
burocracia era a única que tinha condições
intelectuais de administrar a produção e o Estado, mas
isso se transformou em fonte de privilégios sociais, e
posteriormente, de poder político. A centralização
de todos os poderes nas mãos do partido e da burocracia se
deveu a uma situação de emergência provocada pela
guerra civil. Mas com o fim da guerra civil, a situação
de emergência se prolongou, a centralização de
poderes jamais foi revertida, a democracia operária jamais
voltou. Ao invés de uma gestão social das forças
produtivas socializadas (que já não eram as mais
avançadas), tivemos uma gestão burocrática, o
que fez toda a diferença. A ditadura do proletariado (sobre a
burguesia) se converteu em ditadura (da burocracia) sobre o
proletariado;
- já
na década de 1930, consolida-se na URSS uma contra revolução
burocrática, em que a burocracia dos gestores assume
definitivamente o poder político. Stalin, representante
político da burocracia, já havia afastado do poder
Trotsky e os remanescentes do partido revolucionário, já
nos últimos anos da década de 1920. Aos poucos, são
liquidadas as conquistas sociais da revolução de 1917.
Acabam as assembleias dos soviets, acabam as várias
instituições e fóruns de controle social das
mais diversas atividades, acabam as associações livres
e democráticas das mulheres, dos jovens, dos artistas, etc.;
- com a
consolidação do stalinismo, aquela possibilidade de um
regime proto socialista, mais democrático e humano, se fechou.
Os trabalhadores já não retém mais qualquer
vestígio de poder, e estabelece-se um estado policial e
terrorista (repressão da KGB contra qualquer pensamento
divergente, campos de trabalho forçado, culto da pessoa de
Stalin, etc.), que não tinha nada a ver com o socialismo.
Tragicamente, foi essa caricatura que acabou levando o nome de
“socialismo” dali por diante, e ainda hoje;
d) socialismo e estatismo
- essa
exposição pode levar à conclusão de que
os revolucionários não deveriam ter tomado o poder na
Rússia, já que o país não tinha condições
materiais de chegar ao socialismo. Nada mais errado! Os
revolucionários fizeram o que deveriam fazer. Mesmo derrotada
ao final, a revolução foi um tremendo avanço
para a história russa e mundial. No mínimo, a
existência da URSS, ainda que gravemente deformada pela
burocratização, serviu como um contrapeso ao
capitalismo mundial, obrigando a burguesia a fazer concessões,
que resultaram em melhorias sociais para várias gerações
de trabalhadores no mundo inteiro, que ainda hoje nos beneficiam.
Essas melhorias servem como parâmetro de bem estar social ainda
hoje, e justamente por isso a burguesia está lutando para
revogá-las, agora com o caminho aberto pela ausência do
obstáculo socialista;
- os
limites materiais do atraso russo se impuseram ulteriormente, mas
esse curso não estava pré determinado. O resultado
poderia ter sido completamente inverso e bem sucedido. A revolução
poderia ter triunfado em outros países, e tirado a Rússia
do isolamento. Isso não era nenhum delírio, era na
verdade uma probabilidade bastante razoável no final da I
Guerra, e todos os que viviam o calor dos acontecimentos contavam
seriamente com ela. E a disputa política entre os
revolucionários e os burocratas no interior da própria
URSS, por sua vez, poderia ter influenciado os rumos da Revolução
Mundial, como veremos a seguir;
- a
expansão da revolução para outros países
não aconteceu, a transição ao socialismo estava
condenada pelos limites materiais da URSS atrasada, mas isso não
apareceu dessa forma por aqueles que vivenciavam o processo. Ao
contrário, a vitória da revolução
transformou a URSS numa potência, e foi isso que saltou aos
olhos do mundo a partir da década de 1930;
- mesmo
tendo passado pela destruição da 1ª Guerra
Mundial, pela guerra civil que destruiu o que restou do país,
pelas irracionalidades da gestão burocrática, pela
destruição da 2ª Guerra Mundial, processos esses
que custaram vidas humanas na escala de dezenas de milhões,
além dos prejuízos materiais incalculáveis, uma
sucessão de hecatombes como não houve em nenhum outro
país do mundo; mesmo com tudo isso, a Rússia saiu da
condição de país camponês e analfabeto em
1917 para condição de potência em poucas décadas,
chegando à liderança da corrida espacial, lançando
o primeiro satélite artificial, o Sputnik, em 1957 e o
primeiro astronauta em 1961;
- esse
salto gigantesco da antiga Rússia atrasada para a URSS
convertida em potência mundial (potência industrial,
militar, científica, cultural, esportiva, etc.) só foi
possível por conta da vitória da revolução,
que trouxe o fim da anarquia da produção capitalista,
centralizando a atividade econômica nas mãos do Estado.
A planificação estatal da economia foi o único
elemento positivo que sobreviveu da vitória da Revolução
de 1917, mas apenas ele foi o suficiente para dar uma sobrevida ao
regime durante as várias décadas do século XX;
- essa
sobrevida prolongou os efeitos da revolução até
a última década do século, juntamente com outros
elementos de ordem política. Entretanto, a economia estatizada
nas mãos da burocracia não poderia nem se manter por si
mesma eternamente, nem avançar para o socialismo, sem que uma
nova revolução política e social derrubasse a
burocracia e restabelecesse o controle social dos trabalhadores. Uma
vez que essa revolução dentro da URSS não
aconteceu, o curso natural foi a restauração do
capitalismo;
- o
controle socialista da produção não é o
mesmo que controle estatal. O estado na URSS não estava sob
controle dos trabalhadores e sim da burocracia. A socialização
é algo que vai muito além da expropriação,
que é apenas uma mudança jurídica na propriedade
das empresas. Uma empresa estatizada pode muito bem continuar sob
controle de gestores com interesses próprios, diferentes e
opostos aos dos trabalhadores. O socialismo não é o
mesmo que “estatismo”, ele exige que os trabalhadores exerçam
de fato e coletivamente o controle sobre a gestão de cada
atividade produtiva. E esse controle existiu somente nos primeiros
anos da Revolução Russa, sendo logo depois assumido
pela burocracia;
e) socialismo no pós-II Guerra
- ao
mesmo tempo em que a URSS dava esse salto para tornar-se uma potência
mundial, o capitalismo vivia a sua pior crise, a Grande Depressão
da década de 1930, que produziu o nazi fascismo e a 2ª
Guerra Mundial. Para todos os observadores, era o capitalismo que
estava morrendo e o socialismo prosperando na URSS. Nesse cenário,
não é acidental que a URSS tenha aparecido como modelo
para os trabalhadores do mundo inteiro que lutavam contra o
capitalismo. Trabalhadores e militantes socialistas do mundo inteiro
olhavam a URSS como exemplo e seguiam o Partido Comunista russo como
liderança mundial incontestável. Além disso,
trata-se de um mundo em que não existia internet, e a
informação era escassa, não se tinha
conhecimento dos graves problemas da deformação
burocrática, por isso era muito mais difícil,
praticamente heróico, que os socialistas do restante do mundo
não se tornassem “seguidores” da URSS stalinizada;
- essa
liderança foi ainda mais reafirmada quando a URSS arcou com o
maior peso em vidas humanas e sacrifícios materiais da luta
para derrotar o nazi-fascismo na 2ª Guerra, e emergiu como
superpotência mundial. O “socialismo” foi assim
“transplantado” para o leste europeu (Alemanha Oriental, Polônia,
Tchecoslováquia, Hungria, Romênia, Bulgária,
Iugoslávia e Albânia), não por meio de revoluções
autônomas dos povos desses países (que não
deixaram de ser ensaiadas, inclusive em países até mais
decisivos, como a própria França e a Itália, mas
foram também sufocadas), mas pela ocupação do
exército vermelho soviético, situação que
perdurou até 1989-91;
- ao
invés de usar essa liderança sobre o movimento
socialista para impulsionar a revolução internacional
(como era o “plano” original), a burocracia stalinista a usou
para submeter os partidos comunistas do mundo inteiro ao seu controle
férreo, já desde a década de 1920. Ao invés
de instrumentos da revolução internacional, os partidos
comunistas transformaram-se em instrumentos da política
externa da URSS e da busca de uma convivência pacífica
com o imperialismo capitalista mundial;
- Stalin
decretou que o socialismo já tinha sido atingido em um único
país, a URSS (uma aberração do ponto de vista do
marxismo, pois como dissemos acima, o socialismo tem que ser
mundial), e pouco depois, declarou que o país já era
comunista (uma aberração teórica ainda pior).
Muito da confusão até hoje reinante entre os conceitos
de socialismo e comunismo tem a ver com a propaganda enganosa do
regime burocrático stalinista. A conseqüência
política prática da teoria do “socialismo em um só
país” de Stalin é que não era mais necessário
lutar pelo socialismo e pela Revolução Mundial. O mundo
inteiro se tornaria socialista ao desejar imitar o exemplo do sucesso
da URSS. Na verdade, essa “teoria” era uma mera desculpa para que
a URSS abandonasse os esforços pela revolução
mundial. A III Internacional, ou Internacional Comunista, que reunia
os PCs do mundo inteiro, foi dissolvida por uma canetada de Stalin,
em 1943;
- com
isso, o stalinismo abriu mão da luta pela revolução
internacional para derrotar o capitalismo, mas os capitalistas não
abriram mão da luta para destruir a URSS e os socialistas, e o
fazem até hoje. Em nome dessa luta, instalaram ditaduras
brutais, como as que vigoraram na América Latina, reprimindo
os trabalhadores, garantindo a exploração cotidiana e a
opressão, assassinando, torturando e perseguindo milhares e
milhares de lideranças operárias, camponesas e
estudantis;
- do
outro lado, o movimento socialista internacional, submetido ao
stalinismo, adotou a estratégia da “revolução
por etapas”. Isso significava o apoio à “burguesia
progressista” nos países atrasados, para fazer primeiro a
revolução nacional e democrática (1ª
etapa), e depois a revolução socialista (2ª
etapa). Na verdade, essa estratégia nunca funcionou, pois
levou os partidos comunistas de matriz stalinista do mundo inteiro a
fazer aliança com os setores supostamente “progressistas”
da burguesia, alianças que nunca avançaram para a
revolução;
- essa
política levou à derrota as lutas dos trabalhadores no
mundo inteiro, durante as décadas de 1950, 60 e 70. Um dos
exemplos foi o do Brasil, em que o PCB apoiou o governo burguês
de Jango, ao invés de desenvolver uma política de
independência de classe e de luta pelo poder. Isso levou à
trágica derrota que foi o golpe civil e militar de 1964 e a
ditadura, da qual, de certa forma, ainda não nos recuperamos;
- essa
estratégia etapista divulgada no discurso público era o
disfarce nominal para a política real de convivência
pacífica entre a URSS e o imperialismo adotada ao fim da 2ª
Guerra. Onde a estratégia stalinista de aliança com a
burguesia não foi seguida e os trabalhadores avançaram
para a luta pelo poder, e conseguiram vitórias, (como na
China, Cuba, Vietnã, Coréia do Norte), essa luta também
não conduziu a revoluções socialistas, mas a
regimes burocráticos decalcados do stalinismo soviético.
Assim como nos países do leste europeu ocupados pelo exército
vermelho, nessas revoluções não houve um papel
protagônico da classe trabalhadora organizada (como tinha
acontecido no início da própria revolução
russa), e sim a ação de partidos-exército, que
substituíram os trabalhadores;
- e no
leste europeu, quando os trabalhadores quiseram se tornar
protagonistas do seu “socialismo”, foram esmagados pelos tanques
de Moscou. Isso aconteceu sucessivamente em Berlim em 1953, na
revolução dos conselhos na Hungria em 1956, na
primavera de Praga em 1968, no levante do Solidariedade na Polônia
em 1981;
f) socialismo e o trotskismo
- fora
do controle do stalinismo, a principal corrente do movimento
socialista foi o trotskismo, que foi sempre minoritário e
ainda assim se dividiu em inúmeras tendências (e
permanece assim até hoje) desde o assassinato de seu fundador
por um espião de Stalin em 1940. O trotskismo teve o mérito
de manter de pé os pontos fundamentais do marxismo
revolucionário, como o internacionalismo e a independência
de classe. Graças à persistência heróicas
das organizações trotskistas, sobrevivendo contra o
cerco do imperialismo e do stalinismo, a perspectiva do socialismo
revolucionário chegou ao século XXI. Se
hoje existe algum acúmulo de onde podemos partir para retomar
a luta pelo socialismo, é graças ao trotskismo, um
mérito histórico que tem que ficar registrado
;
- todas
as correntes trotskistas, porém partilham de um erro comum,
que tem origem no próprio Trotsky (cujo assassinato não
permitiu que reavaliasse sua posição), a definição
da URSS (estendida a seus satélites) como "estado
operário burocrático". Com base nessa definição,
o trotskismo atuou como se o problema da URSS e do socialismo fosse
apenas a ausência de uma direção revolucionária,
que retirasse a burocracia do poder através de uma revolução
politica, e recolocasse a construção do socialismo de
volta nos trilhos;
- essa
definição de "estado operário burocrático"
está errada por desconhecer a contra revolução
burocrática da década de 1930 e a liquidação
quase total das conquistas sociais da revolução de
1917. A URSS deixou de ser um estado operário, pois a classe
operária perdeu qualquer vestígio de poder, e passou a
ser um estado burocrático, ou um estado de transição
interrompida. Nesse caso, a tarefa não era apenas uma
revolução politica para retirar a burocracia do poder,
mas uma revolução social e politica, que recolocasse a
classe operária no controle da produção e do
estado;
- a
compreensão das tarefas como limitadas à construção
da direção revolucionária e à revolução
politica já estavam equivocadas quando existia a URSS e o
stalinismo como direção política do movimento
socialista. Persistir nesse erro hoje é ainda mais dramático.
Quando o stalinismo desmoronou, muitas correntes trotskistas
raciocinaram como se a liderança do movimento socialista fosse
“cair no seu colo” automaticamente. Ao invés disso, o
movimento retrocedeu e se dispersou. A história não
daria esse presente aos revolucionários. O movimento teria que
ser reconstruído praticamente do zero;
- para
que exista uma direção revolucionaria, é preciso
que haja um movimento revolucionário a ser dirigido, o que não
há. E a revolução a ser feita não é
apenas política (pois não há mais uma burocracia
stalinista a ser derrubada), mas a revolução como um
todo, social, política e ideológica. O obstaculo não
é apenas a direção burocrática stalinista
(que não existe mais), mas a burguesia e o imperialismo;
g) o fim do stalinismo
- depois
da II Guerra novas gerações de trabalhadores nasceram e
cresceram na URSS e nos países “socialistas” sem viver as
lutas históricas e os progressos das décadas de 1920,
30, 40 e 50. Ao contrário, viveram a estagnação
das décadas de 1960, 70 e 80. Para esses trabalhadores, o
regime dito “socialista” era tão explorador quanto o
capitalismo, com o agravante da opressão política da
ditadura do partido único da burocracia;
- esta
burocracia, por sua vez, não conseguia dar dinamismo à
produção interna. Sem o incentivo da competição
econômica capitalista, que obriga os trabalhadores a ter
emprego ou morrer de fome, a burocracia não conseguia criar um
incentivo político para que os trabalhadores continuassem
gerando mais valia para as empresas estatizadas. Não havia
também incentivo à inovação,
criatividade, proatividade, manutenção, prevenção
do desperdício, etc. Com essas características, a
economia soviética entrou em estagnação e não
conseguiu sustentar a competição com os países
capitalistas no mercado mundial. A competição foi
dramaticamente agravada pela corrida armamentista, que desviava
recursos vitais para a produção de armamentos;
- as
reformas de mercado que foram introduzidas na década de 1980
para tentar modernizar a economia da URSS tomaram uma dinâmica
própria, que levou às reivindicações de
democracia e ao fortalecimento da oposição popular. Uma
vez iniciado, o processo levou à queda dos regimes
burocráticos. O imperialismo apareceu de fora como
representante da “democracia” contra as ditaduras dos partidos
“socialistas”. O consumismo dos países capitalistas
apareceu para os trabalhadores do leste europeu como a promessa de
uma felicidade há tanto tempo negada;
- quando
os regimes ditos “socialistas” caíram pressionados pela
oposição interna e externa, os trabalhadores não
defenderam esses regimes, pois não eram efetivamente seus, não
eram estados operários. Ao contrário, aos milhões
os trabalhadores tomaram parte entusiasmadamente nos movimentos que
derrubaram os regimes “socialistas”, imaginando que o capitalismo
lhes daria a liberdade negada pela burocracia. Os ex-burocratas, por
sua vez, se converteram em burgueses, saqueando o patrimônio
dos antigos estados “socialistas” com métodos mafiosos, na
farra das privatizações;
- depois
de décadas de domínio da burocracia, nada restou da
consciência socialista entre os trabalhadores do bloco
soviético, apenas uma vaga lembrança de Lênin e
de Stalin como heróis da luta contra o czarismo e o
nazifascismo. No restante do mundo, como dissemos no início, a
queda dos estados “socialistas” foi apregoada como a vitória
do capitalismo e a prova da inevitabilidade desse sistema. Seria o
“fim da história”;
- os
antigos partidos comunistas e socialistas no restante do mundo, que
já haviam abandonado a luta pela revolução,
tiveram o álibi definitivo para abandonar qualquer luta contra
o capitalismo. Tornaram-se sócios e co gestores do sistema
(como o PT no Brasil). Ao abandonar a luta ofensiva para mudar o
sistema (luta que nunca haviam realizado de fato), essas organizações
abriram caminho para derrotas nas lutas defensivas. As décadas
de 1990 e 2000 presenciaram imensos retrocessos materiais e políticos
da classe trabalhadora mundial. Privatizações, abertura
comercial, desregulamentação, especulação
financeira, terceirizações, retirada dos direitos
trabalhistas, arrocho salarial, reestruturação
produtiva, demissões, deram a tônica dessas décadas.
Sem a perspectiva da superação do capitalismo, a
resistência contra esses ataques ficou desarmada;
h) o pós-stalinismo
- o fim
do stalinismo desbloqueou as forças da classe trabalhadora
mundial, libertando-a do imenso peso que eram os regimes
burocráticos. Mas essa vitória não apareceu como
vitória dos trabalhadores no primeiro momento, e sim como
vitória do capitalismo, apropriada pela burguesia. Na verdade,
foi o efeito retardado da derrota do socialismo revolucionário
na URSS na década de 1930, que só apareceu seis décadas
depois. Para que o fim do stalinismo tenha algum efeito positivo e
para que as forças da classe trabalhadora mundial se coloquem
novamente em movimento em direção ao socialismo, é
preciso superar os erros e aprender com as lições do
século XX;
- a
história não acabou, como dizem os defensores do
capitalismo. O sistema continua atravessado por suas contradições
e crises, que levam novas gerações de trabalhadores à
luta no mundo inteiro. Essas novas gerações não
tem o peso da derrota e da desorientação provocadas
pelo fim do “socialismo” na década de 1990. Mas também
não tem o acúmulo de experiência e organização
das antigas gerações;
-
estamos vivendo os momentos iniciais da reconstrução da
alternativa socialista. O mesmo trabalho hercúleo que foi
feito pelos revolucionários do final do século XIX e
início do XX para que o movimento dos trabalhadores assumisse
o projeto socialista, e que levou às revoluções
que foram realizadas no século passado, terá que ser
feito novamente;
- os
movimentos de luta que surgem hoje, que estão colocando
milhões de pessoas nas ruas, como citamos, não são
espontaneamente socialistas, são limitados a suas demandas
imediatas, e não se colocam como objetivo derrubar o
capitalismo. Os processos de luta que se levantam globalmente contra
os efeitos do capitalismo (e não contra o próprio
capitalismo) são a matéria prima para a construção
do movimento socialista, mas não são ainda o próprio
movimento socialista;
- para
que os movimentos de luta avancem rumo ao socialismo, é
preciso que os revolucionários travem uma batalha política
no interior desses movimentos para desenvolver a partir de dentro
deles a consciência da necessidade de superação
do capitalismo. É preciso que a classe operária se
coloque como sujeito capaz de reestruturar toda a vida social, e não
apenas tomar o poder político, e é preciso que construa
os seus organismos de luta e de poder, e não apenas o partido
revolucionário;
- a
tarefa dos socialistas revolucionários não é
apenas construir as suas organizações revolucionárias,
mas reconstruir os organismos de luta dos trabalhadores, os
sindicatos (ou oposições sindicais, onde estes
estiverem completamente burocratizados, como no Brasil), movimentos
associações, grêmios, coletivos, etc., como
organismos de independência de classe, anticapitalistas e
antigovernistas;
Daniel M.
Delfino
Dezembro
2014
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