O
programa “Mais Médicos” do governo federal, que traz
médicos estrangeiros, em boa parte cubanos, para atuar em
regiões do país em que faltam profissionais de saúde,
tem suscitado reações apaixonadas, contra e a favor. De
um lado, há um setor que defende o programa por conta do
benefício que fará a populações que nunca
receberam atendimento médico ou no máximo, tiveram
atendimento precário. De outro, há o setor que se
coloca contra o programa, por vários motivos, a maior parte
dos quais muito problemáticos, conforme veremos a seguir. Mas
entre os que são contra o programa, há pelo menos um
argumento que parece razoável, que precisa ser debatido, o
fato de que o programa representa uma forma de precarização
do trabalho dos médicos, empregando profissionais em condições
muito inferiores de trabalho e remuneração.
Ambas as
posições, tanto contra como a favor, consideram apenas
o programa em si, sem situá-lo no contexto da situação
política nacional e da luta pelos serviços públicos
desencadeada pelas manifestações de junho. O anúncio
da contratação de médicos estrangeiros veio como
uma das respostas do governo federal às manifestações.
Os manifestantes começaram exigindo a revogação
do aumento das passagens, mas acabaram expressando várias
reivindicações, como melhorias na saúde e na
educação. O tamanho das manifestações e a
abrangência dos temas obrigaram os governantes a tomar medidas
que a princípio não cogitavam, como a retirada da PEC
37 e da “cura gay”.
O
aumento das passagens foi revogado e na área da saúde,
o governo federal anunciou o programa Mais Médicos. Mas assim
como a revogação do aumento das passagens não
resolveu os problemas da mobilidade urbana (continua faltando
transporte público, os ônibus, trens e metrôs
seguem caros, lotados, lentos e atrasados, o trânsito segue
caótico, etc), a contratação de mais médicos
não resolve o problema da saúde. Longe disso, pois além
de trazer uma quantidade maior de médicos, seria preciso
garantir-lhes condições de trabalho para melhor atender
a população, começando pelos salários,
mas também investindo pesadamente em equipamentos, remédios,
hospitais, ambulâncias, paramédicos, enfermeiros, etc.
Para aumentar esse investimento, seria preciso multiplicar várias
vezes os gastos com a saúde (hoje em míseros 4,17% do
orçamento). E para isso, assim como para os investimentos
necessários em educação, transporte, moradia,
etc., seria preciso romper com a prioridade do governo federal, o
pagamento da dívida pública (uma dívida
fraudulenta, já paga várias vezes), que consome
absurdos 43,98% do orçamento público, ou cerca de R$
898 bilhões este ano (dados da Auditoria Cidadã -
http://www.auditoriacidada.org.br/).
Além
da dívida, o orçamento público é
direcionado para várias outras formas de ajuda aos
capitalistas, como obras de infraestrutura, empréstimos a
juros subsidiados, isenções fiscais, etc. Ou seja, para
termos os serviços públicos de qualidade, precisamos
questionar o conjunto dos gastos públicos. Essa era a questão
central, que poderia ter dado um direcionamento capaz de apontar para
a solução dos diversos problemas levantados pelos
movimentos de junho, mas que não foi discutida em tempo pelos
diversos movimentos de maneira a que pudessem ser vitoriosos. Ao
invés disso, as “soluções” dadas pelos
governos, como revogar o aumento das passagens e agora contratar mais
médicos são apenas paliativos. São apenas 20
centavos!
O
programa Mais Médicos é uma versão reciclada dos
programas sociais adotados pelo chavismo na Venezuela, responsáveis
pelas seguidas vitórias eleitorais de Hugo Chávez e
seus partidários. O chavismo não praticou nenhuma
ruptura importante no capitalismo venezuelano, como a estatização
total do petróleo ou o não pagamento da dívida,
apenas direcionou parte da renda petroleira para programas sociais,
como a vinda de médicos cubanos para as áreas pobres do
país, e de professores para alfabetizar a parcela da população
que não teve educação formal. Esses programas
não estão errados em si, mas são muitíssimo
limitados e acabam por legitimar um projeto que serve apenas para
desviar os trabalhadores e os pobres da luta por soluções
reais e radicais para os seus problemas, uma luta que os obrigaria a
se chocar com o capitalismo. Para um país em que apenas uma
restrita minoria tinha serviços públicos de qualidade,
esses programas paraceram “revolucionários”, mas não
passavam de tímidas reformas no capitalismo.
O
programa Mais Médicos no Brasil não tem nem sequer a
abrangência do seu original venezuelanno, é mais uma
jogada de marketing do que uma ofensiva real no sentido de atacar os
problemas da saúde pública. Não se pode portanto
ser simplesmente a favor do programa, sem apresentá-lo como
uma pseudo solução muito parcial, limitada, que visa
tão somente “limpar a barra” do governo federal, já
bastante desgastado. E não se pode também ser
simplesmente contra o programa, ignorando a necessidade real de
imensos setores da população que nunca tiveram
atendimento médico (e agora ao menos terão algum, ainda
que precário), mas de situá-lo no contexto da luta por
serviços públicos de qualidade, em que precisamos não
apenas de mais profissionais médicos, mas de profissionais em
muito maior quantidade, mais bem pagos, e mais equipamentos, mais
remédios, mais hospitais, etc.
Da mesma
forma que não precisamos apenas contratar muito mais
professores, mas aumentar em muito a atual remuneração
dos professores, melhorar muito as escolas, as condições
de trabalho, a liberdade de cátedra, etc. Em cada um dos
serviços públicos são necessários
investimentos gigantescos, que como já demonstramos acima, são
impossíveis enquanto não se romper com a prioridade
atual do orçamento público, que é desviar
dinheiro dos trabalhadores para os capitalistas. Da mesma forma que
os professores seriam contra a contratação de uma
subcategoria de profissionais da educação, com salários
muito menores, para dar aulas em condições precárias;
e da mesma forma que os bancários questionam o atendimento à
população por correspondentes bancários,
lotéricas, supermercados, etc., que recebem salários
menores, trabalham sem segurança, etc.; os médicos
questionam o programa por várias razões, e uma delas é
pelo fato de que rebaixa os salários da categoria.
Esse
argumento, como dissemos no início, parece razoável.
Entretanto, estamos falando de uma categoria que possui uma condição
difereciada no país. Os médicos, assim como advogados,
engenheiros, etc., vivem um processo de proletarização
e assalariamento, mas ainda enxergam a si mesmos como profissionais
liberais, como “classe média”, ou em termos marxistas, são
o que se chama de pequeno burgueses, em processo de proletarização.
Sua ambição é atender apenas clientes de alta
renda, em consultórios particulares. A realidade da maioria
dos médicos, no entanto, é a obrigação de
atender no serviço público e em convênios, em que
a demanda é enorme, há excesso de trabalho e a
remuneração é mais baixa. Ao invés de
lutar contra a precarização do trabalho médico,
a sua privatização pelos planos de saúde e
convênios privados, que querem reduzir o pagamento por
consultas (obrigando os médicos a atender mais pacientes com
menos qualidade), não querem autorizar os exames, tratamentos,
cirurgias, etc., os médicos reagem protestando contra a quebra
do “monopólio” do atendimento médico, que lhes
permite (a uma minoria da categoria) cobrar muito caro por consultas
particulares.
A visão
que os médicos tem do seu trabalho é individualista, e
da mesma forma a visão que tem dos problemas sociais, a
ideologia predominante na categoria, é em geral bastante
conservadora. E por isso, os argumentos que foram levantados contra o
programa Mais Médicos não tratam dos elementos que
apresentamos acima, que seriam necessários para atacar os
problemas da saúde pública. Pelo contrário, os
argumentos manifestaram os mais rebaixados preconceitos e concepções
reacionárias. Os médicos que se posicionaram contra o
programa, e a maior parte dos críticos que embarcaram na
campanha contra a chegada de médicos estrangeiros, em especial
os cubanos, não o fizeram porque estão preocupados com
o atendimento à população, mas por uma mistura
de posições todas problemáticas. Os médicos
e os demais opositores do Mais Médicos manifestaram o mais
repugnante ódio de classe, ódio aos pobres, ódio
aos trabalhadores. Não suportam a idéia de que os
pobres possam ter algum atendimento, um serviço que pela
lógica atual “deveria” estar reservado apenas aos que
podem pagar muito bem.
O
elitismo e o corporativismo da categoria médica, que não
se somam aos demais trabalhadores e suas demandas, se mistura com um
anticomunismo decrépito, reciclado dos tempos da Guerra Fria,
para vociferar contra a vinda de médicos cubanos. Os setores
mais reacionários vomitam seu ódio ao “comunismo”
por não poderem aceitar que o pequeno e paupérrimo país
caribenho seja capaz não só de oferecer serviços
públicos de qualidade para sua população, como
esteja exportando esses serviços para um gigante que disputa o
posto de 6ª ou 7ª economia do mundo. Infelizmente, a vinda
dos profissionais cubanos não se dá num contexto de
consolidação das conquistas sociais da revolução
cubana, mas de retrocesso e restauração do capitalismo
na ilha pelas mãos da burocracia castrista.
Cuba não
chegou ao comunismo, nem muito menos ao socialismo (nem o fizeram a
União Soviética e demais países que seguiram o
seu “modelo”, pois não houve uma transferência real
do poder econômico e político diretamente para os
trabalhadores, e sim a usurpação desse poder por uma
burocracia) e nem poderia, na condição de um país
pequeno e isolado, lutando sozinha contra o centro do imperialismo
mundial, os Estados Unidos. Ainda assim, o simples fato de haver
expropriado a burguesia há mais de 50 anos, ainda lhe dá
a capacidade de servir de padrão de qualidade em atendimento
médico, e esse exemplo é algo que ainda transtorna os
reacionários de plantão. Da mesma forma, os
reacionários médicos e de outros setores não
suportam o fato de que a maioria dos médicos cubanos são
negros. Negros atendendo negros! Onde já se viu?! O ódio
de classe em geral também vem acompanhado de ódio
racial.
Contra
esse amálgama de preconceitos e concepções
reacionárias, precisamos dizer:
- Bem
vindos os médicos cubanos!
-
Trabalhador é trabalhador em qualquer lugar do mundo!
- Que os
trabalhadores médicos cubanos não sejam considerados de
segunda classe. Que possam trazer suas famílias e requerer
residência permanente se quiser!
- Vagas
para trabalhadores índios, negros, e pobres nos cursos de
medicina!
- Pela
valorização dos diversos profissionais envolvidos na
assistência à vida. Socorristas, técnicos e
enfermeiros!
Mas
contra o oportunismo do governo federal e suas pseudo soluções,
precisamos dizer também:
-
Estatização dos planos de saúde, sob controle
dos trabalhadores!
- Não
pagamento da dívida pública interna e externa e
investimento desse dinheiro num programa de obras e serviços
públicos, sobre controle dos trabalhadores, para atender as
necessidades da população em saúde, educação,
moradia, transporte, lazer, etc.
Daniel M.
Delfino
Setembro
2013
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