3.11.15

Mais médicos são R$ 0,20 centavos: queremos mais saúde, mais serviços públicos de qualidade e menos dívida


O programa “Mais Médicos” do governo federal, que traz médicos estrangeiros, em boa parte cubanos, para atuar em regiões do país em que faltam profissionais de saúde, tem suscitado reações apaixonadas, contra e a favor. De um lado, há um setor que defende o programa por conta do benefício que fará a populações que nunca receberam atendimento médico ou no máximo, tiveram atendimento precário. De outro, há o setor que se coloca contra o programa, por vários motivos, a maior parte dos quais muito problemáticos, conforme veremos a seguir. Mas entre os que são contra o programa, há pelo menos um argumento que parece razoável, que precisa ser debatido, o fato de que o programa representa uma forma de precarização do trabalho dos médicos, empregando profissionais em condições muito inferiores de trabalho e remuneração.
Ambas as posições, tanto contra como a favor, consideram apenas o programa em si, sem situá-lo no contexto da situação política nacional e da luta pelos serviços públicos desencadeada pelas manifestações de junho. O anúncio da contratação de médicos estrangeiros veio como uma das respostas do governo federal às manifestações. Os manifestantes começaram exigindo a revogação do aumento das passagens, mas acabaram expressando várias reivindicações, como melhorias na saúde e na educação. O tamanho das manifestações e a abrangência dos temas obrigaram os governantes a tomar medidas que a princípio não cogitavam, como a retirada da PEC 37 e da “cura gay”.
O aumento das passagens foi revogado e na área da saúde, o governo federal anunciou o programa Mais Médicos. Mas assim como a revogação do aumento das passagens não resolveu os problemas da mobilidade urbana (continua faltando transporte público, os ônibus, trens e metrôs seguem caros, lotados, lentos e atrasados, o trânsito segue caótico, etc), a contratação de mais médicos não resolve o problema da saúde. Longe disso, pois além de trazer uma quantidade maior de médicos, seria preciso garantir-lhes condições de trabalho para melhor atender a população, começando pelos salários, mas também investindo pesadamente em equipamentos, remédios, hospitais, ambulâncias, paramédicos, enfermeiros, etc. Para aumentar esse investimento, seria preciso multiplicar várias vezes os gastos com a saúde (hoje em míseros 4,17% do orçamento). E para isso, assim como para os investimentos necessários em educação, transporte, moradia, etc., seria preciso romper com a prioridade do governo federal, o pagamento da dívida pública (uma dívida fraudulenta, já paga várias vezes), que consome absurdos 43,98% do orçamento público, ou cerca de R$ 898 bilhões este ano (dados da Auditoria Cidadã - http://www.auditoriacidada.org.br/).
Além da dívida, o orçamento público é direcionado para várias outras formas de ajuda aos capitalistas, como obras de infraestrutura, empréstimos a juros subsidiados, isenções fiscais, etc. Ou seja, para termos os serviços públicos de qualidade, precisamos questionar o conjunto dos gastos públicos. Essa era a questão central, que poderia ter dado um direcionamento capaz de apontar para a solução dos diversos problemas levantados pelos movimentos de junho, mas que não foi discutida em tempo pelos diversos movimentos de maneira a que pudessem ser vitoriosos. Ao invés disso, as “soluções” dadas pelos governos, como revogar o aumento das passagens e agora contratar mais médicos são apenas paliativos. São apenas 20 centavos!
O programa Mais Médicos é uma versão reciclada dos programas sociais adotados pelo chavismo na Venezuela, responsáveis pelas seguidas vitórias eleitorais de Hugo Chávez e seus partidários. O chavismo não praticou nenhuma ruptura importante no capitalismo venezuelano, como a estatização total do petróleo ou o não pagamento da dívida, apenas direcionou parte da renda petroleira para programas sociais, como a vinda de médicos cubanos para as áreas pobres do país, e de professores para alfabetizar a parcela da população que não teve educação formal. Esses programas não estão errados em si, mas são muitíssimo limitados e acabam por legitimar um projeto que serve apenas para desviar os trabalhadores e os pobres da luta por soluções reais e radicais para os seus problemas, uma luta que os obrigaria a se chocar com o capitalismo. Para um país em que apenas uma restrita minoria tinha serviços públicos de qualidade, esses programas paraceram “revolucionários”, mas não passavam de tímidas reformas no capitalismo.
O programa Mais Médicos no Brasil não tem nem sequer a abrangência do seu original venezuelanno, é mais uma jogada de marketing do que uma ofensiva real no sentido de atacar os problemas da saúde pública. Não se pode portanto ser simplesmente a favor do programa, sem apresentá-lo como uma pseudo solução muito parcial, limitada, que visa tão somente “limpar a barra” do governo federal, já bastante desgastado. E não se pode também ser simplesmente contra o programa, ignorando a necessidade real de imensos setores da população que nunca tiveram atendimento médico (e agora ao menos terão algum, ainda que precário), mas de situá-lo no contexto da luta por serviços públicos de qualidade, em que precisamos não apenas de mais profissionais médicos, mas de profissionais em muito maior quantidade, mais bem pagos, e mais equipamentos, mais remédios, mais hospitais, etc.
Da mesma forma que não precisamos apenas contratar muito mais professores, mas aumentar em muito a atual remuneração dos professores, melhorar muito as escolas, as condições de trabalho, a liberdade de cátedra, etc. Em cada um dos serviços públicos são necessários investimentos gigantescos, que como já demonstramos acima, são impossíveis enquanto não se romper com a prioridade atual do orçamento público, que é desviar dinheiro dos trabalhadores para os capitalistas. Da mesma forma que os professores seriam contra a contratação de uma subcategoria de profissionais da educação, com salários muito menores, para dar aulas em condições precárias; e da mesma forma que os bancários questionam o atendimento à população por correspondentes bancários, lotéricas, supermercados, etc., que recebem salários menores, trabalham sem segurança, etc.; os médicos questionam o programa por várias razões, e uma delas é pelo fato de que rebaixa os salários da categoria.
Esse argumento, como dissemos no início, parece razoável. Entretanto, estamos falando de uma categoria que possui uma condição difereciada no país. Os médicos, assim como advogados, engenheiros, etc., vivem um processo de proletarização e assalariamento, mas ainda enxergam a si mesmos como profissionais liberais, como “classe média”, ou em termos marxistas, são o que se chama de pequeno burgueses, em processo de proletarização. Sua ambição é atender apenas clientes de alta renda, em consultórios particulares. A realidade da maioria dos médicos, no entanto, é a obrigação de atender no serviço público e em convênios, em que a demanda é enorme, há excesso de trabalho e a remuneração é mais baixa. Ao invés de lutar contra a precarização do trabalho médico, a sua privatização pelos planos de saúde e convênios privados, que querem reduzir o pagamento por consultas (obrigando os médicos a atender mais pacientes com menos qualidade), não querem autorizar os exames, tratamentos, cirurgias, etc., os médicos reagem protestando contra a quebra do “monopólio” do atendimento médico, que lhes permite (a uma minoria da categoria) cobrar muito caro por consultas particulares.
A visão que os médicos tem do seu trabalho é individualista, e da mesma forma a visão que tem dos problemas sociais, a ideologia predominante na categoria, é em geral bastante conservadora. E por isso, os argumentos que foram levantados contra o programa Mais Médicos não tratam dos elementos que apresentamos acima, que seriam necessários para atacar os problemas da saúde pública. Pelo contrário, os argumentos manifestaram os mais rebaixados preconceitos e concepções reacionárias. Os médicos que se posicionaram contra o programa, e a maior parte dos críticos que embarcaram na campanha contra a chegada de médicos estrangeiros, em especial os cubanos, não o fizeram porque estão preocupados com o atendimento à população, mas por uma mistura de posições todas problemáticas. Os médicos e os demais opositores do Mais Médicos manifestaram o mais repugnante ódio de classe, ódio aos pobres, ódio aos trabalhadores. Não suportam a idéia de que os pobres possam ter algum atendimento, um serviço que pela lógica atual “deveria” estar reservado apenas aos que podem pagar muito bem.
O elitismo e o corporativismo da categoria médica, que não se somam aos demais trabalhadores e suas demandas, se mistura com um anticomunismo decrépito, reciclado dos tempos da Guerra Fria, para vociferar contra a vinda de médicos cubanos. Os setores mais reacionários vomitam seu ódio ao “comunismo” por não poderem aceitar que o pequeno e paupérrimo país caribenho seja capaz não só de oferecer serviços públicos de qualidade para sua população, como esteja exportando esses serviços para um gigante que disputa o posto de 6ª ou 7ª economia do mundo. Infelizmente, a vinda dos profissionais cubanos não se dá num contexto de consolidação das conquistas sociais da revolução cubana, mas de retrocesso e restauração do capitalismo na ilha pelas mãos da burocracia castrista.
Cuba não chegou ao comunismo, nem muito menos ao socialismo (nem o fizeram a União Soviética e demais países que seguiram o seu “modelo”, pois não houve uma transferência real do poder econômico e político diretamente para os trabalhadores, e sim a usurpação desse poder por uma burocracia) e nem poderia, na condição de um país pequeno e isolado, lutando sozinha contra o centro do imperialismo mundial, os Estados Unidos. Ainda assim, o simples fato de haver expropriado a burguesia há mais de 50 anos, ainda lhe dá a capacidade de servir de padrão de qualidade em atendimento médico, e esse exemplo é algo que ainda transtorna os reacionários de plantão. Da mesma forma, os reacionários médicos e de outros setores não suportam o fato de que a maioria dos médicos cubanos são negros. Negros atendendo negros! Onde já se viu?! O ódio de classe em geral também vem acompanhado de ódio racial.
Contra esse amálgama de preconceitos e concepções reacionárias, precisamos dizer:
- Bem vindos os médicos cubanos!
- Trabalhador é trabalhador em qualquer lugar do mundo!
- Que os trabalhadores médicos cubanos não sejam considerados de segunda classe. Que possam trazer suas famílias e requerer residência permanente se quiser!
- Vagas para trabalhadores índios, negros, e pobres nos cursos de medicina!
- Pela valorização dos diversos profissionais envolvidos na assistência à vida. Socorristas, técnicos e enfermeiros!
Mas contra o oportunismo do governo federal e suas pseudo soluções, precisamos dizer também:
- Estatização dos planos de saúde, sob controle dos trabalhadores!
- Não pagamento da dívida pública interna e externa e investimento desse dinheiro num programa de obras e serviços públicos, sobre controle dos trabalhadores, para atender as necessidades da população em saúde, educação, moradia, transporte, lazer, etc.

Daniel M. Delfino
Setembro 2013


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