A
trilogia “Mad Max” antiga se compõe de um bom primeiro
episódio, um segundo filme que se converteu em um verdadeiro
clássico e um terceiro em que absolutamente nada se aproveita.
O que fez do segundo episódio (que tem o subtítulo “The
road warrior” no original e “A caçada continua” em
português) um clássico foi o fato de que alterou
completamente o cenário e o contexto do primeiro filme e
situou o protagonista num mundo pós-apocalíptico. Um
mundo em que as pessoas guerreiam por gasolina, matam, roubam e
enganam sem qualquer escrúpulo, e o herói do filme não
é diferente.
Mad Max
2 causou impacto quando do seu lançamento, em 1981, como um
filme pós-apocalíptico num mundo ainda
pré-apocalíptico. Hoje vivemos num mundo pós
queda do Muro de Berlim e pós “fim da história”, um
mundo em que se proclamou a barbárie neoliberal como a forma
definitiva de sociedade humana. Nesse mundo já portanto
pós-apocalíptico em que vivemos, mais um filme
pós-apocalíptico como o novo episódio de Mad
Max, que tem o subtítulo de “A estrada da fúria”,
já não causa mais o mesmo impacto. Já estamos
habituados à violência e amoralidade, que não
causam mais o pavor e a angústia que causavam na época
do segundo episódio.
É
claro que o diretor, o mesmo George Miller da trilogia original,
tentou causar impacto, e usou todos os recursos do cinema de hoje
para produzir um filme ainda mais violento, megalomaníaco,
grotesco e vertiginoso que o original. Para quem tem o senso de humor
apropriado para este tipo de produção (é o caso
deste autor), trata-se de uma excelente pedida. De resto, a receita
do cinema para qualquer continuação é mesmo
aumentar a dosagem dos elementos que fizeram sucesso no filme
anterior, e isso vale também para uma continuação
produzida décadas depois.
Mais do
que uma simples continuação turbinada, “A estrada da
fúria” parece se inscrever numa espécie de tendência
de reciclagem de clássicos que está na moda do cinema
atual. Recentemente, George Lucas filmou uma segunda trilogia “Star
Wars”, com décadas de intervalo em relação à
primeira, contando (e estragando) a origem do vilão Darth
Vader, convertido em um garoto mimado. Spielberg filmou um novo
episódio de “Indiana Jones”, muito aquém do encanto
os três primeiros. Também foi contada num filme medíocre
a origem de Hannibal Lecter, clássico vilão do
“Silêncio dos Inocentes”. A série “Alien”, cujos
dois primeiros episódios são igualmente clássicos
e excepcionais, também teve uma releitura sem nenhuma
imaginação em “Prometheus”. E “O Exterminador do
futuro”, outro clássico apocalíptico dos anos 1980,
também segue tendo novos episódios, com alguma
periodicidade.
Em todos
esses casos, há uma tentativa de explorar a aura e o apelo de
personagens e cenários clássicos, mas sem a mesma
criatividade que gerou esses clássicos, o que resulta em
banalidades que profanam e mancham a fortuna crítica dos
filmes originais. Na maior parte dos casos, é melhor ignorar e
rejeitar essas tentativas de recriar filmes e histórias
clássicas e ficar com a boa memória dos originais. Numa
sociedade que perdeu a capacidade de imaginar o futuro, a indústria
cultural está condenada a reciclar o passado.
Mas isso
apenas parece ser o caso de “A estrada da fúria”, pois há
um elemento que tornou este filme digno de comentário, a
suposta presença de uma propaganda feminista. E quem detectou
o indício de feminismo foram ativistas estadunidenses
defensores do machismo. Num site chamado “Return of the kings” (O
retorno dos reis), um apedeuta chamado Aron Clarey (que também
responde pela alcunha de “capitão capitalismo”, que já
dá uma ideia do tipo de sistema social e ideologia que
defende) conclamou os “homens de verdade” a não assistirem
o filme. Segundo este gênio da estupidez patriarcal e
neoliberal, o novo Mad Max é uma armadilha que seduz os homens
com cenas de tiroteios e explosões, mas na verdade entrega um
roteiro em que a personagem de Charlize Theron se sobressai em
relação ao protagonista Max. Portanto, cuidado homens!
Sua masculinidade está ameaçada!
Além
de conseguir seus imerecidos 15 minutos de fama e de merecidamente se
tornar motivo de deboche e escárnio por conta do ridículo
das posições que defende, o blog machista conseguiu
evidentemente o efeito contrário, pois o marketing do filme
foi alavancado pela polêmica, conforme veículos de mídia
burgueses, mas também setores do jornalismo e da crítica
cultural mais próximos da esquerda, entraram na brincadeira e
trataram de promover o novo Mad Max por conta justamente dos seus
méritos feministas.
Apesar
do aspecto anedótico e hilariante dessa polêmica, não
podemos deixar de alertar para o perigo de sites como “Return of
the kings”. Não se trata apenas de um site, mas de um
movimento de defesa dos “direitos dos homens”, e não dos
direitos humanos no sentido a que estamos acostumados, mas do “homem”
no sentido sexual, oposto às mulheres. Os ativistas desse
movimento defendem que homens e mulheres são biologicamente
diferentes e portanto os seus papéis sociais também tem
que ser diferentes, condenando a homossexualidade, a
transsexualidade, o divórcio, a escolha de não ter
filhos, o direito das mulheres exercerem as mesmas profissões,
etc. O site “Return of the kings” diz besteiras como essa: “o
socialismo, o feminismo, o marxismo cultural e o combate por justiça
social pretendem destruir a unidade familiar, decrescer a taxa de
fertilidade e empobrecer o Estado por meio de benefícios
sociais”.
Esse
movimento dos “direitos dos homens” ardilosamente usa a mesma
linguagem e os códigos do feminismo hoje predominante para
combater o próprio feminismo. Segundo o movimento, os homens
brancos heterossexuais estão sendo supostamente demonizados
pelas mulheres, negros e LGBTs, e portanto precisam se defender à
altura. As bases teóricas do feminismo e dos demais movimentos
de minorias hoje predominantes criaram essa armadilha. O feminismo, o
movimento negro, movimentos indígenas, LGBTs, etc., tem
baseado suas reivindicações no direito de serem
reconhecidos em suas identidades. Essa política de identidades
se alicerça numa ideologia liberal funcional ao capitalismo,
que reconhece plenamente os direitos das minorias, desde que não
se coloquem como classe oposta ao sistema do capital.
O
conteúdo essencialmente liberal dos movimentos de minorias, a
sua falta de alicerces históricos, classistas e
anticapitalistas, se volta contra eles, pois, nos termos em que se
fundamentam, o movimento de “direitos dos homens” é um
produto legítimo da mesma fonte. Se cada grupo social tem o
direito de defender sua identidade, os homens brancos heterossexuais
também o tem. Se o problema dos conflitos sociais é a
identidade étnica, sexual, religiosa, etc., dos grupos em que
se subdivide a população de cada país, então
o grupo dos homens brancos heterossexuais também se qualifica
como um grupo com uma identidade do mesmo caráter.
Para
refutar o movimento de “direito dos homens”, é preciso ir
além da política que se baseia em “identidades”
(com sua fundamentação liberal, pós moderna,
irracionalista e relativista) e buscar argumentos históricos,
classistas e anticapitalistas. Os homens brancos heterossexuais não
têm direitos enquanto grupo, têm privilégios. São
formados com a ideia de que é natural que as mulheres façam
as tarefas domésticas, cuidem das crianças, idosos e
doentes, estejam em postos de trabalho subalternos, sejam vistas e
tratadas como objetos sexuais para o prazer do homem, etc. Tudo isso
é naturalizado na formação do homem, o que faz
com que se comportem de maneira inevitavelmente machista. É
preciso muita luta para remover essa formação
opressiva.
A
opressão das mulheres é real e as feministas têm
todo o direito de reivindicar a igualdade. As diferenças entre
homens e mulheres se originaram em bases biológicas, mas isso
aconteceu na pré-história. Hoje já não
somos trogloditas (com exceção dos autores do “Return
of the kings”), e vivemos milênios de opressão das
mulheres que foram historicamente construídos. Há todo
um aparato de práticas e ideias de dominação,
acrescentados pelas diversas sociedades de classes, que há
milênios oprimem as mulheres. Essas formas de dominação
precisam ser superadas, e para isso é preciso superar a
própria sociedade de classes.
O que os
defensores dos “direitos dos homens” subentendem como essência
da masculinidade, e que julgam necessário defender contra o
feminismo, é a pura força bruta. Para eles, não
haveria nada de errado em Mad Max se fossem apenas tiroteios,
explosões, pancadaria. Se não houvesse a personagem de
Charlize Theron e sua tribo de guerreiras, portadoras da esperança
de um futuro menos bárbaro, estaria tudo certo. O homem
“oprimido pelo feminismo” (!!!) poderia festejar no cinema o
macho em estado puro, ou seja, o individualismo, a competitividade e
a violência!
Ao
adotar essa posição, os ativistas dos “direito dos
homens” estão justamente bloqueando qualquer possibilidade
de melhorar a vida dos homens reais. Afinal, o machismo é um
sistema historicamente construído e reforçado de
opressão sobre as mulheres, mas que tem como subproduto uma
opressão suplementar sobre os próprios homens, que são
também, de certa forma, vítimas (claro que num grau
muito menor do que as mulheres). Os homens são “vítimas”
do machismo no sentido de que, para se qualificar para exercer o
papel de “homem”, no sentido de “macho”, os indivíduos
do sexo masculino são obrigados a mutilar a si mesmos,
reprimir emoções e sentimentos, tornar-se agressivos,
individualistas, competitivos e brutos.
O
conjunto dos caracteres “masculinos” exigidos para que o
indivíduo se qualifique como homem, e assim adquira o
“direito”, que é na verdade o privilégio, de
oprimir as mulheres, pesa também sobre os homens. O sistema de
dominação patriarcal cria uma separação
entre indivíduos de ambos os sexos, impedindo que compartilhem
características psicológicas, emocionais e intelectuais
comuns, empobrecendo a ambos. Numa sociedade emancipada, as
características que são tratadas hoje como atributos
exclusivos de um ou de outro gênero, separadas em pares opostos
como razão e emoção, inteligência e
sensibilidade, reflexão e impulsividade, desejo e amor, etc.,
poderão ser desenvolvidas livremente por indivíduos de
qualquer sexo e na proporção em que escolherem, sem que
sejam socialmente forçados a optar por um pólo em
oposição ao outro.
Não
é isso que reivindicam os ativistas dos “direitos dos
homens”. O que querem é continuar sendo seres emocionalmente
e humanamente empobrecidos, para seguir oprimindo as mulheres, em
nome da família, da propriedade privada e do Estado. Portando,
abaixo o “Return of the kings”, bem vindo Mad Max e viva a
Imperatriz Furiosa!
Daniel M.
Delfino
Maio 2015
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