O
contexto do Golpe
Em 31 de
março de 2013 se completam 49 anos do golpe militar de 1964. O
golpe estabeleceu uma ditadura militar que durou até 1985 e
deixou seqüelas que até hoje marcam a vida do país.
No contexto da Guerra Fria, a disputa política e militar entre
os blocos do imperialismo estadunidense e o dos Estados burocráticos
liderados pela URSS, o golpe militar no Brasil foi parte de uma onda
de ditaduras que tomaram conta da América Latina, com eventos
semelhantes na Argentina (1955 a 1969 e 1976-1986), Chile
(1973-1989), Uruguai (1973-1985), Paraguai (1954-1989), entre outros.
As ditaduras foram a resposta do imperialismo estadunidense às
lutas por independência nacional em continentes antes
colonizados como a África, a Ásia e a própria
América Latina, que poderiam inclinar essas regiões na
direção do bloco soviético. Particularmente na
América Latina, o exemplo da revolução cubana de
1959, que estabeleceu um regime independente, que mais tarde se
voltaria para o “modelo” da URSS, era um pesadelo para os
estrategistas estadunidenses.
No
início da década de 1960 o Brasil vivia um momento de
profundas mudanças. Milhões de pessoas se mudavam para
as cidades, as fábricas se multiplicavam, milhões de
crianças e jovens entravam para a escola, o que não
havia acontecido com a geração de seus pais. A auto
imagem do país estava em alta e difundia-se o mito do “país
do futuro”. Eram os anos da inauguração da nova
capital, Brasília (1960), do cinema novo, da bossa nova, do
bicampeonato mundial de futebol (1958 e 1962).
Era
também um momento de intensificação da luta de
classes, com grandes mobilizações operárias,
camponesas e estudantis. Uma greve geral em 1962 apresentou diversas
reivindicações sociais e políticas e conquistou
o 13º salário, que se mantém até hoje. As
ligas camponesas no nordeste organizavam os trabalhadores rurais na
luta pela reforma agrária e contra os abusos seculares dos
latifundiários. Os Centros Populares de Cultura (CPCs) da UNE
levavam teatro e cinema engajado à população, na
tentativa de influenciar politicamente os trabalhadores por meio da
cultura.
As
facções da classe dominante
No campo
da burguesia, estava em curso uma disputa entre dois setores. De um
lado, o setor liderado pelo então presidente João
Goulart (cujo apelido era Jango), herdeiro político de Getúlio
Vargas, praticava uma política nacional-desenvolvimentista,
que procurava levar o Brasil a ser uma potência capitalista,
com algum grau de independência em relação ao
imperialismo, impulsionando a indústria nacional. O projeto
nacional-desenvolvimentista incluía concessões aos
trabalhadores, aumentos salariais, direitos sociais, na crença
de que isso ajudaria a dinamizar a economia. O slogan do governo e
dos movimentos sociais na época eram as “reformas de base”,
que incluíam a reforma agrária, a regulamentação
das remessas de lucro das transnacionais, reforma urbana, etc.
De outro
lado, havia o setor conservador e abertamente pró-imperialista
da burguesia, composto por latifundiários e empresários
diretamente associados ao capital estrangeiro, hostis a qualquer
concessão aos trabalhadores. Sua política era de manter
o Brasil como país subdesenvolvido, fornecedor de produtos
primários e servil às transnacionais, que seguiriam
extraindo lucros exorbitantes do país e enviando
tranquilamente suas remessas para as matrizes. O discurso dos
conservadores era de contenção da “ameaça
comunista”. A luta popular pelas reformas de base era tratada como
parte do “perigo vermelho”, como se o governo estivesse tomado
por conspiradores e ateus demoníacos.
A maior
parte da imprensa, os principais jornais, como o Globo, faziam
oposição ao governo e atacavam as lutas populares como
sinal de “caos” e “baderna”. O grupo Globo seria recompensado
pelos serviços prestados ao golpe com a concessão de
uma emissora de TV, que seria fiel aliada da ditadura. A igreja
católica também se somou à campanha contra o
governo e as lutas populares, organizando as “marchas da família
com Deus pela liberdade”, com milhares de donas de casa da classe
média e beatos em geral indo às ruas das capitais
contra o governo e os comunistas.
O
golpe e os primeiros anos da ditadura
O
governo Jango foi instável desde o início. Como vice de
Jânio Quadros, que havia renunciado ainda no primeiro ano de
governo, Jango só conseguiu tomar posse depois de passar por
um ano e meio de parlamentarismo, que limitava seus poderes, pois a
direita não aceitava a volta do programa getulista. Depois de
um plebiscito e da volta do presidencialismo em 1963, o crescimento
das mobilizações populares levou o governo João
Goulart mais à esquerda. O presidente pronunciou um comício
na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em 13 de março de
1964, que foi tomado como um claro sinal de radicalização.
Diante disso, aceleraram-se os preparativos para o golpe.
Em 31 de
março a cúpula das forças armadas mobilizou as
tropas e as ruas das capitais amanheceram tomadas por tanques de
guerra. Não houve resistência ao golpe. Jango deixou
Brasília e voltou para sua terra natal, o Rio Grande do Sul. O
presidente da Câmara pronunciou um discurso declarando vago o
cargo de presidente da república, sendo que Jango ainda estava
em território nacional. Leonel Brizola, governador do RS e
partidário de Jango, defendia a resistência, mas Jango
decidiu não resistir, aceitou a tomada do poder pelos
militares e partiu para o exílio. A ditadura cassou mandatos
parlamentares, fechou sindicatos, prendeu militantes, aposentou
intelectuais, exilou artistas. Apenas a UNE continuou funcionando por
algum tempo, até 1968.
Os
primeiros anos do governo militar mantiveram uma expectativa de volta
da democracia, com novas eleições, em que os expoentes
da direita e adversários de Jango esperavam voltar ao poder
pela via das eleições. No entanto, os generais se
sucederam no cargo de presidente, o que fariam até 1985,
quando tomou posse um presidente civil, eleito pela via indireta. O
período de maior endurecimento da ditadura aconteceu a partir
de 1968, quando foi promulgado o ato institucional nº5, uma
emenda constitucional que fechava o Congresso, suspendia as garantias
constitucionais, o direito de ir e vir, o habeas corpus, a liberdade
de expressão, e dava poder ao aparato repressivo para prender
suspeitos sem mandato judicial.
A
derrota da luta armada e o “milagre brasileiro”
Com o
fim das mobilizações populares, parte das organizações
de esquerda optou pela luta armada, a partir de 1968. Sem apoio da
população, as guerrilhas rurais e urbanas foram
derrotadas, apesar do heroísmo de figuras como Lamarca e
Marighella. O ato mais espetacular da luta armada foi o sequestro do
embaixador estadunidense, em 1969, trocado pela liberdade de dezenas
de presos políticos Na perseguição aos
opositores, a ditadura matou, prendeu e torturou milhares de pessoas,
estivessem ou não envolvidos na luta armada. Muitos opositores
estão até hoje desaparecidos. A repressão foi
financiada por empresários, que ajudaram a montar esquadrões
da morte para perseguir militantes. Os crimes da repressão
estão sem julgamento até hoje. Ao contrário dos
demais países da América Latina, que julgaram e
condenaram os agentes da ditadura, no Brasil os monstros continuam
impunes. A Comissão da Verdade, montada pelo governo Dilma,
não terá a função de levar à
punição dos agentes da ditadura. A própria
Dilma, que participou da luta armada contra os militares, é
hoje uma agente da burguesia, como outros integrantes de seu partido,
José Dirceu e José Genoíno.
Sob o
governo militar, o Brasil viveu um período de grande
crescimento econômico, os anos do chamado “milagre
brasileiro”, principalmente entre 1968 e 1973, marcado por um
aumento da produção de automóveis e
eletrodomésticos (aos quais, no entanto, a maioria da
população não tinha acesso), bens de consumo
duráveis voltados para a burguesia e a classe média.
Também foram características da ditadura as chamadas
“obras faraônicas”, como a rodovia transamazônica, a
hidrelétrica de Itaipu e a usina nuclear de Angra dos Reis,
propagandeados como símbolos do “Brasil potência”.
No entanto, esse modelo de desenvolvimento, pela estreiteza do
mercado consumidor interno e pelo aumento da dívida do Estado
(começou aí um surto explosivo de endividamento, que
atingiu níveis absurdos), não era sustentável e
se esvaziou ao longo da década de 1970, o que levaria ao fim
da ditadura na década seguinte.
A
maioria da população não viu os frutos desse
“milagre”. Nas palavras de um dos generais-presidentes, “a
economia vai bem, mas o povo vai mal”. A explicação
do “czar” da economia, o ministro Delfim Neto (ainda hoje um
“guru” dos governos do PT) era de que “primeiro era preciso
esperar o bolo crescer para depois dividir”. Na verdade, o bolo
nunca foi dividido. O Brasil continuou e continua sendo um país
de maioria pobre, com muita desigualdade e muita riqueza sendo
desviada para os mais ricos e para o capital estrangeiro. A ditadura
militar foi portanto uma grande derrota das forças populares
que lutavam pelas reformas de base e por melhorias em geral.
A
importância da estratégia e da independência dos
trabalhadores
Parte da
responsabilidade dessa derrota cabe à principal organização
política dos trabalhadores, o Partido Comunista Brasileiro
(PCB), que tinha grande influência nos sindicatos e dirigia a
UNE. A estratégia do PCB era de apoiar a fração
nacionalista da burguesia nacional, contra o setor mais reacionário
e o imperialismo. O pressuposto dessa estratégia era de que o
Brasil ainda precisaria passar por uma revolução
burguesa, antes de se pensar em transição ao
socialismo. Em função desse apoio, não havia a
preocupação com a independência política
dos trabalhadores. Não foram desenvolvidos organismos capazes
de lutar pelo poder, pois a suposição é de que
essa não era uma tarefa dos trabalhadores.
Desde o
início do século XX, Trotsky já havia
demonstrado, na teoria da Revolução Permanente, que a
burguesia dos países periféricos é incapaz de
realizar as tarefas da revolução burguesa (como a
reforma agrária e outras) e essa tarefa caberia ao
proletariado. Na luta para concretizar essas tarefas, o proletariado
precisaria impulsionar medidas de ruptura com o capitalismo, como
nacionalizações e expropriações, sendo
seguido pelas classes populares, avançando para uma revolução
socialista. Sendo assim, a tarefa dos socialistas seria desenvolver a
consciência dos trabalhadores para a luta pelo poder, com total
independência em relação a líderes
burgueses e pequenos burgueses. Ao contrário disso, o
principal líder do PCB na época do golpe, Luís
Carlos Prestes, acreditava que o “dispositivo militar” de Jango,
composto por militares supostamente leais à constituição,
iria deter o golpe, ao invés de preparar os trabalhadores para
a resistência.
As
lições da derrota dos trabalhadores no golpe de 1964
são vitais para a construção de uma estratégia
revolucionária no século XXI. Não se pode
confiar em lideranças burguesas e burocráticas, cujos
exemplos nos dias de hoje são figuras como Hugo Chávez,
pois essas lideranças, por mais radical que seja o seu
discurso, nos momentos decisivos, abandonam a luta e deixam o poder
livre para a burguesia e o imperialismo. E as vítimas são
os trabalhadores, massacrados pela repressão. Não há
outro atalho para a revolução que dispense os
socialistas da tarefa indispensável de organizar os
trabalhadores de forma independente e desenvolver sua consciência
num rumo anticapitalista e socialista.
A
repressão e os saudosistas da ditadura
Conforme
dissemos, o Brasil é o único país que não
julgou e condenou os autores dos crimes da ditadura, as mortes e
torturas de opositores. O fim do regime militar se deu por meio de um
acordo, que manteve o Estado sob controle dos mesmos setores da
burguesia que se beneficiaram da ditadura. Além de não
condenar a cúpula do aparato militar, foi mantida uma cultura
repressiva e conservadora no judiciário e na polícia. O
Brasil é um dos poucos países do mundo que tem uma
polícia militar, a PM, uma polícia aquartelada, sob
comando dos governos estaduais, criada na própria ditadura,
como uma espécie de exército para combater um inimigo
interno, o próprio povo.
Os
métodos desenvolvidos na época da ditadura para
perseguir opositores políticos, os esquadrões da morte
e a tortura, são hoje aplicados diariamente pela polícia
(militar e civil) para se apropriar de uma parte da renda dos
negócios criminosos. Sob o pretexto de reprimir o crime, a
polícia que atua nos bairros periféricos mata e tortura
impunemente, especialmente quando as vítimas são
negros. A atuação dessa polícia violenta e
corrupta é legitimada pelo discurso da mídia, que cria
um clima de medo e paranóia entre a população,
nos programas de TV mundo cão.
Essa
polícia que se associa ao crime e age de forma criminosa
também tem outra função, reprimir grevistas e
manifestantes. Em todos os governos pós-ditadura, e também
nos do PT, as lutas sociais são tratadas como caso de polícia.
Militantes são mortos, presos, torturados, no campo e na
cidade, com a conivência do judiciário, que por sua vez
proíbe greves, aplica multas aos sindicatos, inocenta os
patrões e condena os trabalhadores. Nos últimos anos,
com a crise mundial do capitalismo rondando o Brasil, o governo do PT
e os governos locais dos demais partidos estão todos
determinados a empurrar os efeitos da crise para debaixo do tapete.
Não é permitido discordar do discurso que vem de todos
os lados, do governo, da mídia, das burocracias sindicais,
etc., de que o país está progredindo. Quem ousa
discordar, e fazer alguma coisa a respeito, fazer greves, ocupações,
manifestações, críticas, mostrando que apesar de
todo o discurso “o povo vai mal”, como no tempo da ditadura,
precisa ser tratado como uma ameaça à segurança
nacional.
Em
outras palavras, os governos do PT aplicam os mesmos métodos
repressivos da ditadura, em plena “democracia”. Vivemos uma
ditadura do capital, dos bancos, do agronegócio, das grandes
indústrias, que contam com o PT para silenciar as lutas. É
preciso denunciar essa ditadura disfarçada e também
aqueles que, de maneira cada vez menos disfarçada, se atrevem
a defender o golpe de 1964 (que foi chamado de “revolução”
pelos seus autores), defender os crimes dos militares, defender a
volta da ditadura, defender os métodos autoritários da
repressão. A volta de idéias fascistas e de
ultra-direita é um sintoma da gravidade da crise e do perigo
que se aproxima. Antes que essas idéias se tornem uma força
material, antes que a ameaça de um golpe se aproxima, é
preciso urgentemente lutar por uma outra idéia: a emancipação
dos trabalhadores, por obra dos próprios trabalhadores!
Daniel M.
Delfino
Março
2013
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