4.11.15

Manifestações, Black Blocks e os métodos de luta dos trabalhadores


Desde junho de 2013 o Brasil vive um novo momento da luta de classes. Um processo de manifestações que começou com a luta contra o aumento das passagens nas capitais se alastrou para uma onda de protestos em centenas de cidades, envolvendo milhões de pessoas em todo o país, trazendo à tona uma profunda e generalizada insatisfação com o modo de vida, além de reivindicações concretas de melhorias na saúde, educação, transporte, contra os gastos com a Copa, contra a corrupção, etc. O aumento foi revogado e foram feitas algumas pequenas concessões, mas desde então o país passa por manifestações praticamente diárias.
Essas manifestações são hoje bem menores do que as que houveram no pico do processo, em junho, e nem naquele momento nem agora conseguiram constituir um movimento ou organização unitários, que tivesse um programa definido que fosse além de uma reivindicação pontual como a de revogação do aumento (um programa que contivesse por exemplo, a luta pelo controle do orçamento público, contra o pagamento da dívida pública e as concessões às empresas, pelo emprego desse dinheiro para melhorar a educação, saúde, transporte, etc.). O que praticamente se manteve no foco desde o início foi o debate sobre os métodos de luta, a partir da ação de grupos que ficaram conhecidos como Black Blocks.
Não se trata de uma organização, com um projeto definido, mas de uma tática de luta, em que grupos de manifestantes se destacam dos protestos pelo emprego da ação direta, bloqueando ruas, reagindo contra a violência policial e atacando símbolos do sistema, como bancos, corporações, prédios públicos, etc. Esse método dos Black Blocks acabou sendo um dos principais temas associados às manifestações, pois a partir daí o Estado e a imprensa burguesa passaram a fazer críticas sistemáticas, associando as manifestações à violência, como uma forma de jogar a opinião pública novamente contra as lutas sociais. A partir dessa “constatação” de que as coisas “passsaram dos limites”, cresce o discurso de que se deve “reestabelecer a ordem”, o que significa retomar a repressão violenta contra qualquer contestação, ou mesmo abrir caminho para que grupos fascistas se enfrentem com o movimento.
É preciso defender incondicionalmente os lutadores!
Nesse contexto de contraofensiva da repressão, causou muito mal estar a crítica do PSTU aos Black Blocks, pois ainda que traga elementos teóricos válidos, acabou fazendo unidade com a crítica da imprensa burguesa, somando-se ao coro “chega de Black Blocks”. A crítica partiu de uma organização que apresenta crescentes sinais de adaptação à democracia burguesa, de distanciamento dos métodos de luta radicalizados, de afastamento de um projeto de ruptura revolucionário, de aproximação com correntes governistas e burocráticas (CUT pode mais, etc.). Com isso, o PSTU mostrou os seus limites pacifistas, ainda que proteste reafirmando a defesa da revolução.
A crítica aos Black Blocks acabou ficando em primeiro plano, num momento em que o fundamental era a unidade contra a repressão. O aparato repressivo do Estado, PM, polícia federal, serviços de inteligência, etc., saiu à caça dos Black Blocks, com o apoio da mídia. Ao invés de fazer coro com a repressão, o momento é de fazer unidade na luta. Os Black Blocks devem ser defendidos incondicionalmente, como parte do movimento. Os sindicatos, partidos e demais organizações da classe devem defendê-los jurídica e politicamente. A defesa incondicional não significa abrir mão das críticas, que devem ser feitas para apontar os limites da tática Black Block, para que o conjunto da classe avance política e organizativamente.
O resgate das formas de luta independentes
De certa forma, os Black Blocks lembram a fase do movimento ludista, entre fins do século XVIII e início do XIX, quando trabalhadores que perdiam seus empregos se reuniam em grupos para quebrar as máquinas, antes de entender que deveriam lutar contra o sistema capitalista e o Estado, antes de criar organizações como partidos e sindicatos. O que há em comum entre os Black Blocks e os ludistas é que quebrar as coisas por si só não muda o sistema. Atacar os símbolos do capitalismo como bancos e prédios governamentais não derruba o capitalismo, conforme discutiremos adiante.
Ainda assim, os Black Blocks apresentam um desafio direto ao controle do Estado sobre as lutas sociais. No movimento sindical, por exemplo, o Estado reconhece o direito de greve, mas ao mesmo tempo obriga as organizações dos trabalhadores a seguirem um “ritual”, como a notificação da patronal com antecedência, a negociação por meio de sindicatos institucionalizados, etc., sob pena da greve ser declarada ilegal. O direito de greve é um avanço, mas ao mesmo tempo, se a organização dos trabalhadores não consegue ir além das instituições, torna-se uma prisão, já que limita o alcance da luta ao que está estabelecido na lei. Os Black Blocks tentam ir além desse limite, negando ao Estado a prerrogativa de dizer até onde a luta pode ir, o que de certa forma representa a retomada de formas de luta independentes do controle do Estado.
O uso da ação direta contra a violência policial representa também uma iniciativa para retomar o direito à autodefesa. Na luta contra o capitalismo os defensores do sistema, sejam a polícia, forças armadas ou bandos fascistas, usam de violência contra os trabalhadores e suas organizações. É ilusão achar que as classes dominantes aceitarão a contestação ao seu poder e vão entregar pacificamente o controle sobre a sociedade; pelo contrário, sempre usaram, continuam usando e usarão de violência, desobedecendo as próprias leis do Estado burguês. Portanto, o movimento dos trabalhadores precisa sim discutir o emprego de métodos para defender a vida e a integridade física dos ativistas que se envolvem na luta.
A composição social dos Black Blocks, com forte presença de jovens trabalhadores da perifeira, explica também o porquê do ódio à polícia e da vontade de enfrentá-la, já que esse setor da juventude trabalhadora sofre abusos constantes dos policiais. Os fenômenos de explosão espontânea nas periferias, em que se bloqueiam ruas, incendeiam ônibus, enfrentam a polícia, em protesto contra a violência policial ou outros motivos, já eram comuns antes de junho, mas a partir de agora podem tomar uma outra proporção, pois podem se tornar parte de um movimento maior.

A necessidade de construir espaços de decisão coletiva
Com essa atitude de independência radical, os Black Blocks acabaram ocupando o espaço político que deveria caber à esquerda revolucionária. Na falta de um projeto político, encabeçado por partidos, centrais sindicais, movimentos sociais, com um programa de ruptura radical com o capitalismo, os Black Blocks acabam se apresentando como o que há de mais oposto ao sistema, e com isso acabam atraindo a simpatia de um amplo setor de jovens trabalhadores insatisfeitos. Os Black Blocks fazem tudo o que as pessoas tem vontade de fazer em seus momentos de revolta, eles quebram símbolos de exploração, opressão e repressão que se abatem sobre todos. Com isso, ajudam a tornar evidente que existem dois lados na sociedade, o dos dominadores e o de nós dominados.
O fato de um método de luta ter se tornado assim uma referência política mostra a defasagem que há entre a insatisfação social e as formas de organização necessárias para a luta. Ainda não há espaços de organização e de deliberação unitários capazes de definir coletivamente os objetivos e métodos de luta dos trabalhadores. Ainda não há fóruns, assembleias, comitês unitários, espaços de frente única, onde todas as correntes do movimento e lutadores independentes apresentem suas propostas e definam coletivamente os rumos da ação, os métodos de luta, etc. Enquanto não se constituem esses espaços, cada grupo age isoladamente e de acordo com suas concepções.
A escolha de uma única tática como ponto de partida dificulta a construção da unidade. Justamente pelo fato de que a exploração, opressão e repressão atacam a todos, o conjunto dos trabalhadores é que deve decidir sobre os métodos de luta. Todos os setores devem ser ouvidos, socialistas, anarquistas, independentes, etc. O fenômeno Black Block torna nítido a urgência de se construir espaços de organização por meio dos quais o conjunto da classe possa se colocar como sujeito histórico. Os fóruns, plenárias, comitês unitários fortalecem o movimento, legitimam as decisões e as táticas, permitem que os ativistas e militantes se conheçam e criem laços de confiança, e dificultam a infiltração de provocadores policiais e de lúmpens. Tais espaços são fundamentais para que a classe faça o seu aprendizado político e organizativo para enfrentar o capitalismo e seus agentes. Deve ser feito um chamado à construção de espaços unitários de luta, sem a presença de setores governistas.
Os riscos do isolamento
A tática do enfrentamento e da ação direta não pode ser estabelecida como ponto de partida, ou seja, não pode ser definida a priori, tem que ser decidida pelo conjunto do movimento. Não se pode fazer da tática uma estratégia permanente. A atitude de colocar de antemão uma determinada tática (ação direta ou outra) como ponto de partida dificulta o processo de decisão coletiva. Os Black Blocks não só expressam essa escolha tática a priori, como se colocam às vezes contra outros setores, hostilizando por exemplo militantes do PSTU e do PSOL, como nos atos do dia do professor em 15 de outubro. Todos os que participam da construção coletiva da luta devem ser aceitos, com suas ideias e bandeiras. Com todos os problemas dos partidos, essas organizações são parte do movimento e não se pode aceitar que sejam agredidos ou ameaçados, bem como qualquer outro setor ou corrente. O que também não pode ser aceito é que essas organizações, ou qualquer outra, se coloquem artificialmente como direção, se colocando fisicamente na frente das manifestações, como se assim as dirigissem politicamente, ignorando a necessidade e os ritmos do processo de deliberação coletiva.
Na época da ditadura militar houve grupos que optaram pela luta armada e acabaram se isolando do restante do movimento, tornando-se alvo para uma repressão brutal, que acabou atacando o conjunto da vanguarda e dizimando boa parte da militância. Os Black Blocks podem reproduzir a mesma dinâmica e levar a que um setor de vanguarda, movido pela vontade de lutar, acabe se afastando do restante da classe, o que torna mais fácil legitimar o ataque da repressão. Setores da direita já falam em aprovar leis antiterror, que vão se abater sobre quem estiver na luta, Black Blocks ou não.

Os limites da tática e a necessidade de uma estratégia socialista revolucionária
O surgimento fenômeno Black Block demonstra que há uma imensa insatisfação, especialmente entre a juventude trabalhadora. Os empregos são precarizados, terceirizados, superexplorados, com baixos salários, sem direitos, etc.; as faculdades são de baixa qualidade, os serviços públicos não funcionam, o consumo só é possível por meio do endividamento que aprisiona para o resto da vida, não há acesso à cultura, quando há protesto é duramente reprimido, etc. Aceite esse modo de vida humanamente miserável, contente-se com essa esmola, e cale-se, ou vai apanhar da polícia! Há uma sensação difusa de que tudo isso não presta, os jovens trabalhadores rejeitam essa vida que está sendo traçada para eles, buscam experiências autênticas.
Os Black Blocks acabam fornecendo esse tipo de experiência, mas o fazem de maneira distorcida. A atitude de partir para a luta e a ação direta é um avanço em relação à postura tipicamente pós moderna de ficar apenas diante do computador, criticando o mundo via internet. Entretanto, de certa forma, a tática Black Block também expressa um limite da mentalidade pós moderna, já que se trata de um método individualista. Um grupo de pessoas se reúne para “fazer o que quiser”, ao invés de buscar discutir coletivamente com as demais organizações para elaborar juntos os métodos de ação para mudar a sociedade. É uma forma de “consumir” a participação política como mercadoria, uma forma que nas suas bases ideológicas mais profundas, ainda é burguesa, capitalista, mesmo que na sua superfície se choque com símbolos do capitalismo. O método da ação direta como única forma de luta deixa em segundo plano a teoria, o pensamento, a reflexão, por isso está longe de resolver o gigantesco problema de como mudar a sociedade. É preciso ter organização, objetivos definidos, ou seja, programa, conhecimento da realidade, elaboração teórica.
O capitalismo não vai ser derrubado apenas por pedras nas vidraças dos bancos. É preciso muito mais do que destruir o capitalismo, seus símbolos e suas instituições. É preciso construir um outro modo de vida, que reestruture a sociedade de cima a baixo, e isso só pode ser feito coletivamente, de maneira organizada e consciente. É preciso reorganizar a produção e a distribuição, de maneira que atenda racionalmente as necessidades humanas, definidas coletivamente, de maneira que todos trabalhem muito menos, e tenham tempo para se apropriar das conquistas da humanidade. É isso que denominamos de socialismo!

Daniel M. Delfino
Novembro 2013


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