Desde
junho de 2013 o Brasil vive um novo momento da luta de classes. Um
processo de manifestações que começou com a luta
contra o aumento das passagens nas capitais se alastrou para uma onda
de protestos em centenas de cidades, envolvendo milhões de
pessoas em todo o país, trazendo à tona uma profunda e
generalizada insatisfação com o modo de vida, além
de reivindicações concretas de melhorias na saúde,
educação, transporte, contra os gastos com a Copa,
contra a corrupção, etc. O aumento foi revogado e foram
feitas algumas pequenas concessões, mas desde então o
país passa por manifestações praticamente
diárias.
Essas
manifestações são hoje bem menores do que as que
houveram no pico do processo, em junho, e nem naquele momento nem
agora conseguiram constituir um movimento ou organização
unitários, que tivesse um programa definido que fosse além
de uma reivindicação pontual como a de revogação
do aumento (um programa que contivesse por exemplo, a luta pelo
controle do orçamento público, contra o pagamento da
dívida pública e as concessões às
empresas, pelo emprego desse dinheiro para melhorar a educação,
saúde, transporte, etc.). O que praticamente se manteve no
foco desde o início foi o debate sobre os métodos de
luta, a partir da ação de grupos que ficaram conhecidos
como Black Blocks.
Não
se trata de uma organização, com um projeto definido,
mas de uma tática de luta, em que grupos de manifestantes se
destacam dos protestos pelo emprego da ação direta,
bloqueando ruas, reagindo contra a violência policial e
atacando símbolos do sistema, como bancos, corporações,
prédios públicos, etc. Esse método dos Black
Blocks acabou sendo um dos principais temas associados às
manifestações, pois a partir daí o Estado e a
imprensa burguesa passaram a fazer críticas sistemáticas,
associando as manifestações à violência,
como uma forma de jogar a opinião pública novamente
contra as lutas sociais. A partir dessa “constatação”
de que as coisas “passsaram dos limites”, cresce o discurso de
que se deve “reestabelecer a ordem”, o que significa retomar a
repressão violenta contra qualquer contestação,
ou mesmo abrir caminho para que grupos fascistas se enfrentem com o
movimento.
É
preciso defender incondicionalmente os lutadores!
Nesse
contexto de contraofensiva da repressão, causou muito mal
estar a crítica do PSTU aos Black Blocks, pois ainda que traga
elementos teóricos válidos, acabou fazendo unidade com
a crítica da imprensa burguesa, somando-se ao coro “chega de
Black Blocks”. A crítica partiu de uma organização
que apresenta crescentes sinais de adaptação à
democracia burguesa, de distanciamento dos métodos de luta
radicalizados, de afastamento de um projeto de ruptura
revolucionário, de aproximação com correntes
governistas e burocráticas (CUT pode mais, etc.). Com isso, o
PSTU mostrou os seus limites pacifistas, ainda que proteste
reafirmando a defesa da revolução.
A
crítica aos Black Blocks acabou ficando em primeiro plano, num
momento em que o fundamental era a unidade contra a repressão.
O aparato repressivo do Estado, PM, polícia federal, serviços
de inteligência, etc., saiu à caça dos Black
Blocks, com o apoio da mídia. Ao invés de fazer coro
com a repressão, o momento é de fazer unidade na luta.
Os Black Blocks devem ser defendidos incondicionalmente, como parte
do movimento. Os sindicatos, partidos e demais organizações
da classe devem defendê-los jurídica e politicamente. A
defesa incondicional não significa abrir mão das
críticas, que devem ser feitas para apontar os limites da
tática Black Block, para que o conjunto da classe avance
política e organizativamente.
O
resgate das formas de luta independentes
De
certa forma, os Black Blocks lembram a fase do movimento ludista,
entre fins do século XVIII e início do XIX, quando
trabalhadores que perdiam seus empregos se reuniam em grupos para
quebrar as máquinas, antes de entender que deveriam lutar
contra o sistema capitalista e o Estado, antes de criar organizações
como partidos e sindicatos. O que há em comum entre os Black
Blocks e os ludistas é que quebrar as coisas por si só
não muda o sistema. Atacar os símbolos do capitalismo
como bancos e prédios governamentais não derruba o
capitalismo, conforme discutiremos adiante.
Ainda
assim, os Black Blocks apresentam um desafio direto ao controle do
Estado sobre as lutas sociais. No movimento sindical, por exemplo, o
Estado reconhece o direito de greve, mas ao mesmo tempo obriga as
organizações dos trabalhadores a seguirem um “ritual”,
como a notificação da patronal com antecedência,
a negociação por meio de sindicatos
institucionalizados, etc., sob pena da greve ser declarada ilegal. O
direito de greve é um avanço, mas ao mesmo tempo, se a
organização dos trabalhadores não consegue ir
além das instituições, torna-se uma prisão,
já que limita o alcance da luta ao que está
estabelecido na lei. Os Black Blocks tentam ir além desse
limite, negando ao Estado a prerrogativa de dizer até onde a
luta pode ir, o que de certa forma representa a retomada de formas de
luta independentes do controle do Estado.
O
uso da ação direta contra a violência policial
representa também uma iniciativa para retomar o direito à
autodefesa. Na luta contra o capitalismo os defensores do sistema,
sejam a polícia, forças armadas ou bandos fascistas,
usam de violência contra os trabalhadores e suas organizações.
É ilusão achar que as classes dominantes aceitarão
a contestação ao seu poder e vão entregar
pacificamente o controle sobre a sociedade; pelo contrário,
sempre usaram, continuam usando e usarão de violência,
desobedecendo as próprias leis do Estado burguês.
Portanto, o movimento dos trabalhadores precisa sim discutir o
emprego de métodos para defender a vida e a integridade física
dos ativistas que se envolvem na luta.
A
composição social dos Black Blocks, com forte presença
de jovens trabalhadores da perifeira, explica também o porquê
do ódio à polícia e da vontade de enfrentá-la,
já que esse setor da juventude trabalhadora sofre abusos
constantes dos policiais. Os fenômenos de explosão
espontânea nas periferias, em que se bloqueiam ruas, incendeiam
ônibus, enfrentam a polícia, em protesto contra a
violência policial ou outros motivos, já eram comuns
antes de junho, mas a partir de agora podem tomar uma outra
proporção, pois podem se tornar parte de um movimento
maior.
A
necessidade de construir espaços de decisão coletiva
Com
essa atitude de independência radical, os Black Blocks acabaram
ocupando o espaço político que deveria caber à
esquerda revolucionária. Na falta de um projeto político,
encabeçado por partidos, centrais sindicais, movimentos
sociais, com um programa de ruptura radical com o capitalismo, os
Black Blocks acabam se apresentando como o que há de mais
oposto ao sistema, e com isso acabam atraindo a simpatia de um amplo
setor de jovens trabalhadores insatisfeitos. Os Black Blocks fazem
tudo o que as pessoas tem vontade de fazer em seus momentos de
revolta, eles quebram símbolos de exploração,
opressão e repressão que se abatem sobre todos. Com
isso, ajudam a tornar evidente que existem dois lados na sociedade, o
dos dominadores e o de nós dominados.
O
fato de um método de luta ter se tornado assim uma referência
política mostra a defasagem que há entre a insatisfação
social e as formas de organização necessárias
para a luta. Ainda não há espaços de organização
e de deliberação unitários capazes de definir
coletivamente os objetivos e métodos de luta dos
trabalhadores. Ainda não há fóruns, assembleias,
comitês unitários, espaços de frente única,
onde todas as correntes do movimento e lutadores independentes
apresentem suas propostas e definam coletivamente os rumos da ação,
os métodos de luta, etc. Enquanto não se constituem
esses espaços, cada grupo age isoladamente e de acordo com
suas concepções.
A
escolha de uma única tática como ponto de partida
dificulta a construção da unidade. Justamente pelo fato
de que a exploração, opressão e repressão
atacam a todos, o conjunto dos trabalhadores é que deve
decidir sobre os métodos de luta. Todos os setores devem ser
ouvidos, socialistas, anarquistas, independentes, etc. O fenômeno
Black Block torna nítido a urgência de se construir
espaços de organização por meio dos quais o
conjunto da classe possa se colocar como sujeito histórico. Os
fóruns, plenárias, comitês unitários
fortalecem o movimento, legitimam as decisões e as táticas,
permitem que os ativistas e militantes se conheçam e criem
laços de confiança, e dificultam a infiltração
de provocadores policiais e de lúmpens. Tais espaços
são fundamentais para que a classe faça o seu
aprendizado político e organizativo para enfrentar o
capitalismo e seus agentes. Deve ser feito um chamado à
construção de espaços unitários de luta,
sem a presença de setores governistas.
Os
riscos do isolamento
A
tática do enfrentamento e da ação direta não
pode ser estabelecida como ponto de partida, ou seja, não pode
ser definida a priori, tem que ser decidida pelo conjunto do
movimento. Não se pode fazer da tática uma estratégia
permanente. A atitude de colocar de antemão uma determinada
tática (ação direta ou outra) como ponto de
partida dificulta o processo de decisão coletiva. Os Black
Blocks não só expressam essa escolha tática a
priori, como se colocam às vezes contra outros setores,
hostilizando por exemplo militantes do PSTU e do PSOL, como nos atos
do dia do professor em 15 de outubro. Todos os que participam da
construção coletiva da luta devem ser aceitos, com suas
ideias e bandeiras. Com todos os problemas dos partidos, essas
organizações são parte do movimento e não
se pode aceitar que sejam agredidos ou ameaçados, bem como
qualquer outro setor ou corrente. O que também não pode
ser aceito é que essas organizações, ou qualquer
outra, se coloquem artificialmente como direção, se
colocando fisicamente na frente das manifestações, como
se assim as dirigissem politicamente, ignorando a necessidade e os
ritmos do processo de deliberação coletiva.
Na
época da ditadura militar houve grupos que optaram pela luta
armada e acabaram se isolando do restante do movimento, tornando-se
alvo para uma repressão brutal, que acabou atacando o conjunto
da vanguarda e dizimando boa parte da militância. Os Black
Blocks podem reproduzir a mesma dinâmica e levar a que um setor
de vanguarda, movido pela vontade de lutar, acabe se afastando do
restante da classe, o que torna mais fácil legitimar o ataque
da repressão. Setores da direita já falam em aprovar
leis antiterror, que vão se abater sobre quem estiver na luta,
Black Blocks ou não.
Os
limites da tática e a necessidade de uma estratégia
socialista revolucionária
O
surgimento fenômeno Black Block demonstra que há uma
imensa insatisfação, especialmente entre a juventude
trabalhadora. Os empregos são precarizados, terceirizados,
superexplorados, com baixos salários, sem direitos, etc.; as
faculdades são de baixa qualidade, os serviços públicos
não funcionam, o consumo só é possível
por meio do endividamento que aprisiona para o resto da vida, não
há acesso à cultura, quando há protesto é
duramente reprimido, etc. Aceite esse modo de vida humanamente
miserável, contente-se com essa esmola, e cale-se, ou vai
apanhar da polícia! Há uma sensação
difusa de que tudo isso não presta, os jovens trabalhadores
rejeitam essa vida que está sendo traçada para eles,
buscam experiências autênticas.
Os
Black Blocks acabam fornecendo esse tipo de experiência, mas o
fazem de maneira distorcida. A atitude de partir para a luta e a ação
direta é um avanço em relação à
postura tipicamente pós moderna de ficar apenas diante do
computador, criticando o mundo via internet. Entretanto, de certa
forma, a tática Black Block também expressa um limite
da mentalidade pós moderna, já que se trata de um
método individualista. Um grupo de pessoas se reúne
para “fazer o que quiser”, ao invés de buscar discutir
coletivamente com as demais organizações para elaborar
juntos os métodos de ação para mudar a
sociedade. É uma forma de “consumir” a participação
política como mercadoria, uma forma que nas suas bases
ideológicas mais profundas, ainda é burguesa,
capitalista, mesmo que na sua superfície se choque com
símbolos do capitalismo. O método da ação
direta como única forma de luta deixa em segundo plano a
teoria, o pensamento, a reflexão, por isso está longe
de resolver o gigantesco problema de como mudar a sociedade. É
preciso ter organização, objetivos definidos, ou seja,
programa, conhecimento da realidade, elaboração
teórica.
O
capitalismo não vai ser derrubado apenas por pedras nas
vidraças dos bancos. É preciso muito mais do que
destruir o capitalismo, seus símbolos e suas instituições.
É preciso construir um outro modo de vida, que reestruture a
sociedade de cima a baixo, e isso só pode ser feito
coletivamente, de maneira organizada e consciente. É preciso
reorganizar a produção e a distribuição,
de maneira que atenda racionalmente as necessidades humanas,
definidas coletivamente, de maneira que todos trabalhem muito menos,
e tenham tempo para se apropriar das conquistas da humanidade. É
isso que denominamos de socialismo!
Daniel
M. Delfino
Novembro
2013
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