Nos
últimos tempos temos visto um aumento da influência de
políticos que querem impor à sociedade suas visões
religiosas. A bancada evangélica vetou a distribuição
do kit anti-homofobia para as escolas, e quis autorizar psicólogos
da sua religião a oferecer a "cura gay". Essa mesma
bancada (contando também com religiosos de outras seitas)
também impede qualquer avanço no reconhecimento dos
direitos de casais do mesmo sexo, no direito das mulheres de decidir
sobre o próprio corpo e praticar aborto em condições
seguras, na descriminalização do uso de drogas, etc.
Esses fatos colocaram em primeiro plano a discussão sobre a
questão do "Estado laico".
O Estado
não pode ter religião, ou seja, não pode impor
aos seus cidadãos determinados comportamentos, obrigações,
proibições, baseado no que uma determinada religião
considera moral ou imoral. Essa é a definiçao de Estado
laico, mas não é o que temos visto, de acordo com os
exemplos acima. Vejamos porque isso acontece. Vamos começar
definindo o que é Estado, qual o seu papel nas diversas
sociedades e porque é tão difícil termos um
Estado laico.
A
sociedade de classes, o Estado e a religião
O Estado
é a expressão da divisão da sociedade em
classes. Desde que a humanidade saiu da idade da pedra e começou
a produzir mais do que era necessário para a sobrevivência
dos grupos humanos, surgiu a possibilidade de que os grupos se
dividissem em duas partes: uma que produz para o sustento de todos,
outra que vive do que é produzido pelos primeiros. É o
que chamamos de “divisão social do trabalho”, ou “divisão
da sociedade em classes”. As primeiras classes sociais foram a dos
escravos e dos proprietários. Depois, tivemos vários
sistemas em que os proprietários eram donos não de
pessoas (escravos), e sim das terras, mas os trabalhadores (servos)
eram obrigados a trabalhar nas terras do proprietário.
Os
trabalhadores (escravos e servos) muitas vezes se revoltavam contra a
imposição de trabalhar para sustentar os outros. Mas
para evitar que essas revoltas inviabilizassem a vida das sociedades
divididas em classes, as classes dominantes usaram vários
instrumentos ao longo da história. Um dos principais é
o Estado, em suas diversas formas, desde a época dos reis e
imperadores, até a dos governos ditos "democráticos"
de hoje. O Estado tem a função de criar a ilusão
de que a divisão de classes não existe, como se todos
fossem parte da mesma sociedade, da nação, do reino,
etc. Quando essa ilusão falha, o Estado possui o controle das
forças armadas, exércitos, policias, presídios,
etc., não só para fazer a guerra contra outros Estados,
mas principalmente, para manter as classes trabalhadoras sob
controle.
Outro
instrumento das classes dominantes para reforçar sua dominação
são as ideologias, entre elas a religião. A religião
faz com que os trabalhadores suportem a exploração e as
injustiças nesta vida, com a promessa de que serão
recompensados na vida após a morte. Algumas religiões,
especialmente no mundo cristão, caso da Igreja Católica,
tinham tanto poder que mandavam mais que os reis e governantes. A
Igreja possuía o monopólio da educação e
da escrita. Ninguém aprendia a ler se não fosse
clérigo. A Igreja controlava a vida das pessoas com rituais de
batizado, casamento, extrema unção, etc. Os bispos,
cardeais e papas possuíam terras, cobravam impostos, viviam no
luxo, juntamente com a classe dos proprietários.
A
dominação dos trabalhadores no capitalismo
O Estado
laico surge quando essa forma de dominação, baseada na
pura força bruta dos exércitos e na pura embromação
da religião, não é mais suficiente. Surge no
capitalismo, quando se torna necessário criar um tipo de
embromação muito mais sofisticado. No capitalismo, a
dominação não é direta, como no caso da
escravidão e da servidão. O trabalhador não é
obrigado a trabalhar pelo chicote da classe dominante, ele recebe em
troca do que produz um salário. Mas o salário é
sempre um valor menor do que a riqueza que o trabalhador produz para
os seus patrões. Por mais que os salários sejam altos
em alguns casos, o lucro dos patrões é sempre muito
maior.
Esse
sistema tem a vantagem de que o trabalhador pensa que não é
escravo. No sistema capitalista, o trabalhador pensa que todos tem
oportunidades iguais. Ele acredita piamente que, se trabalhar duro,
pode ficar rico igual aos patrões. Ou seja, o trabalhador
acredita que os ricos são ricos porque trabalharam muito, e os
pobres são pobres porque não trabalham.
O
trabalhador não conhece sua própria história,
não sabe que a origem da riqueza dos ricos está na
violência. Não sabe que povos inteiros, como os nativos
americanos, foram quase exterminados para que fosse roubado o ouro, a
prata, etc. das suas terras. Não sabe que continentes
inteiros, como a África foram invadidos e seus povos
escravizados durante séculos. Os trabalhadores imaginam que,
se houve alguma violência, ela ficou lá no passado, como
se não fosse uma violência cotidiana o roubo diário
que é o trabalho assalariado, que rouba o dia quase inteiro, a
vida quase inteira do trabalhador. O trabalhador acredita, enfim, no
mito da meritocracia, de que se se esforçar muito pode "chegar
lá", e de que seu inimigo é o outro trabalhador, e
não os patroes.
A
origem do Estado laico
Esse
mito das oportunidades iguais é a ideologia mais poderosa que
existe hoje, substituindo a importância que tinha a religião
do passado. Mas para implantar esse mito, a classe dos empresários
capitalistas, que nós chamamos de burguesia, teve que lutar
muito. Durante a implantação do capitalismo, a
burguesia teve que lutar contra as antigas classes dominantes, os
nobres e o clero. As classes dominantes do passado baseavam sua
dominação na crença de que eram naturalmente
superiores, escolhidos por deus, etc. Para implantar seu sistema, a
burguesia, que era também uma minoria da sociedade, teve que
contar com o apoio da maioria, os trabalhadores. Para conquistar o
apoio dos trabalhadores, a burguesia desenvolveu a ideia de que todos
os homens são iguais.
Essa
ideia era muito revolucionária, e levou os trabalhadores a
lutar para derrubar as antigas classes dominantes. São as
chamadas “revoluções burguesas”, das quais o maior
exemplo foi a Revoluçao Francesa de 1789. Os trabalhadores, ao
lado da burguesia, derrubaram o antigo Estado baseado no poder dos
nobres pelo nascimento e no poder da Igreja por meio da religião,
e criaram um novo tipo de Estado, o Estado moderno propriamente dito,
o Estado tal como o conhecemos, que nós chamamos de “Estado
burgues”. Esse Estado, na sua certidão de nascimento, que é
a Constituição, tem a declaração de que
todos são iguais perante a lei. É preciso registrar que
essa igualdade perante a lei é um avanço gigantesco na
história da humanidade.
Depois
de milênios em que os homens acreditaram que alguns eram
superiores e inferiores por nascimento, ou por vontade dos deuses, ou
por vontade do deus único, essa crença foi substituída
pela ideia de igualdade. Essa igualdade perante a lei é também
uma igualdade independente da religião. Ou seja, esse Estado
burguês é também o que nós chamamos de
Estado laico, e nós repetimos, isso é um avanço
gigantesco na história da humanidade. Essas revoluções
burguesas, que implantaram o Estado laico, tiveram que usar a
violência contra a antiga classe dominante. Muitos nobres e
clérigos foram decapitados na guilhotina para que se
implantasse a ideia de que todos são iguais perante a lei.
Então é preciso reconhecer que a burguesia foi muito
revolucionária numa certa epoca.
A
burguesia se torna conservadora
Mas
então, depois que se implanta o Estado burguês, laico,
baseado na igualdade perante a lei, e se implanta o sistema
capitalista em sua forma completa, acontece uma coisa muito curiosa:
a burguesia se torna conservadora. Desde o século XIX, a
burguesia não quer mais ouvir falar em revolução,
em igualdade, em direitos humanos. Isso acontece porque a classe
trabalhadora, que foi à luta pela ideia de igualdade, percebe
que não conquistou a igualdade. Percebe que, por mais que não
existam mais reis e nobres (ou até existem, como a rainha da
Inglaterra), eles nao mandam mais em nada. Mas mesmo assim, a grande
maioria dos trabalhadores continua pobre.
É
preciso continuar lutando pela igualdade. E não mais a
igualdade formal, a igualdade apenas no papel, a igualdade perante a
lei. É preciso uma igualdade real, uma igualdade econômica.
E não apenas uma igualdade na distribuição da
renda, e sim no controle da produção, sem proprietários
dos bens de produçao, sem patrões e empregados, sem
exploradores e explorados, sem trabalho assalariado, mas com trabalho
repartido igualmente para todos, e tempo livre também para que
todos desfrutem das conquistas da humanidade. É preciso,
enfim, uma igualdade socialista. É nessa luta que nós
estamos hoje.
E um dos
obstáculos dessa luta é justamente o Estado. Como
dissemos no início, o Estado existe para que a população
não perceba que existe uma divisão da sociedade em
classes, entre dominadores e dominados, exploradores e explorados,
empresários capitalistas e assalariados. A população
pensa que o Estado é de todos, que o governo representa a
todos, que administra para o conjunto da sociedade. É nisso
que todos acreditam, mas ao contrário, o Estado, em todas as
suas formas, é sempre o Estado das classes dominantes. Era o
Estado dos proprietários de escravos no passado, o Estado dos
proprietários de terras e do clero depois, e o Estado dos
capitalistas hoje.
A
religião socorrendo o capitalismo em crise
Mas nós
não dissemos que esse Estado burguês, que reconhece a
igualdade de todos perante a lei, inclusive independente de religiao
(ou seja, o Estado laico) era um grande avanço para a
humanidade? Sim, essa forma de Estado é um avanço. Mas
depois de conquistar o Estado, dissemos também que a burguesia
se tornou conservadora. A burguesia não quer mais ouvir falar
em revolução, em igualdade, e muito menos em
socialismo. Então, para impedir que as ideias socialistas
convençam os trabalhadores a lutar por uma outra sociedade, a
burguesia precisa desenvolver outras ideias. Precisa criar novas
ideologias, ou reciclar as antigas. O mito da igualdade de
oportunidade, de que todo podem chegar lá, etc., às
vezes não basta. A força da repressão do Estado
também pode não ser suficiente. É preciso usar
outras ideias reacionárias para reforçar a dominação,
entre elas a religião.
Isso
explica o fato de que, nas épocas em que o capitalismo
enfrenta crises graves e os trabalhadores, especialmente os mais
jovens, estão indo à luta em maior número (é
o que está acontecendo hoje em escala mundial), as religiões
conservadoras avançam. Essas religiões conservadoras
são úteis para a burguesia porque ajudam a dividir
ainda mais os trabalhadores. A classe trabalhadora já se
encontra dividida na competição por vagas e na luta
pelo "sucesso", mas, como não há vagas para
ficar rico, e muitos trabalhadores podem perceber isso, a burguesia
precisa criar outras formas de divisão. E para isso usa os
mitos de que as mulheres são inferiores aos homens, os negros
são inferiores aos brancos, a população LGBT é
imoral, etc. Esses mitos são difundidos pelas religiões.
Pastores evangélicos e também certos ramos da Igreja
Católica usam uma interpretação literal da
Bíblia para impor uma moral vinda de milênios atras.
Usam a
Biblia para defender sexo somente dentro do casamento, somente com
fins reprodutivos, somente entre pessoas do mesmo sexo, proibiçao
do aborto, etc. A sexualidade, de acordo com a religião e
convenientemente para as classes dominantes, deve existir para
reproduzir a familia patriarcal e a propriedade privada. As religiões
cristãs e monoteístas em geral sempre foram hostis à
sexualidade e ao prazer, porque tiram o olhar do homem do além
e o trazem para a terra, para o seu próximo. O sexo deve ser
reprimido e controlado. Por isso, querem proibir que a populaçao
LGBT exerça a sua sexualidade, que não serve para a
familia patriarcal, não serve para reproduzir a força
de trabalho, não serve para manter a dominação
ideológica sobre os trabalhadores, não serve para
perpetuar a propriedade privada.
Esses
setores religiosos crescem em influência especialmente entre a
população mais pobre e mais carente de alternativa.
Crescem em poder econômico, ideológico e politico.
Multiplicam templos e suas franquias em todos os bairros, como se
fossem padarias. Controlam televisões, rádios e
jornais. Elegem politicos em número cada vez maior.
Discriminam quem não é da sua religião e querem
controlar a vida de todos. Atribuem a culpa de todos os males, todos
os poblemas, desemprego, violência, drogas, doenças,
catástrofes naturais, etc., à influência
sobrenatural e demoníaca. E para expulsar o mal do mundo,
querem expulsar os seguidores do demônio, especialmente aqueles
que não seguem a sua moral.
Lutar
por igualdade real! Lutar pelo socialismo!
Para
combater a influência da religião na política e
lutar por uma sociedade onde todos sejam iguais, independentemente da
sua religião e independentemente da sua sexualidade,
devemos:
- lutar pelo caráter laico do Estado, em todas as suas instituições, contra os símbolos de determinadas religiões nos espaços publicos;
- lutar pelo caráter laico do Estado, em todas as suas instituições, contra os símbolos de determinadas religiões nos espaços publicos;
- contra
os privilégios para as igrejas, que todas paguem impostos como
qualquer empresa;
- contra
a difusão de ideias religiosas e em defesa da ciência na
educação pública;
- contra
o ensino religioso e do criacionismo, em defesa da teoria da evolução
e da biologia científica;
- contra a perseguição e demonização de qualquer religiao, em especial as de matriz africana, contra a perseguição aos terreiros de umbanda e candomblé;
- contra a perseguição e demonização de qualquer religiao, em especial as de matriz africana, contra a perseguição aos terreiros de umbanda e candomblé;
- pelos
direitos civis para casais do mesmo sexo: casamento, adoção,
herança, pensões, etc., pelo uso do nome social por
pessoas transgêneros e transexuais, etc., nenhuma restrição
de direitos em função da sexualidade;
Essa
luta deve ser levada a todos os espaços de organização
dos trabalhadores, sindicatos, associações, movimento
estudantil, etc. Somente na perspectiva da unidade da classe
trabalhadora, contra o sistema capitalista e seus representantes
políticos e ideológicos, é que podemos ir além
da igualdade formal do Estado laico (que é só no papel)
e lutar por igualdade real.
Daniel M.
Delfino
Agosto
2014
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