3.11.15

Muito mais do que R$ 0,20 centavos, muito menos do que precisamos



Nos últimos anos, e até algumas semanas atrás, dizia-se que o Brasil estava fora da crise mundial do capitalismo, ou “descolado” dela. A propaganda do governo, das burocracias sindicais governistas e da mídia era de que o Brasil havia alcançado o crescimento sustentável, tornando-se a 6ª economia do mundo, e ao mesmo tempo caminhando em direção à “justiça social”, com “melhor distribuição de renda”, ascensão de uma “nova classe C” (seja lá o que for isso), etc., e que o fato de sediarmos os megaeventos esportivos seria a prova do nosso ingresso no clube das potências mundiais.
De repente, em pouco mais de duas semanas, tudo isso veio abaixo. No início de junho alguns milhares de manifestantes protestavam em São Paulo contra o aumento das passagens do transporte público, muito acima da inflação (esses aumentos e os protestos contra eles já haviam acontecido em outros locais, como no ABC, no início do ano), e foram brutalmente reprimidos pela polícia. A repressão gerou uma indignação tão grande que, na semana seguinte, dezenas de milhares de pessoas foram às ruas, não só em São Paulo, mas em centenas de cidades do país. Toda uma insatisfação latente e longamente represada, que não se podia mensurar, veio à tona e se expressou numa imensa onda de manifestações. Os reajustes das tarifas de transportes foram revogados, mas somente depois da população redescobrir que pode fazer o que há décadas não se fazia no país, ou seja, manifestações de rua.
Ao mesmo tempo, para evitar que essas manifestações tomassem rumos imprevistos, a mesma mídia que semanas atrás condenava os manifestantes como vândalos e baderneiros começou a se somar à convocação dos atos e a festejar a “cidadania”. Com isso, o tema do aumento das passagens ficou para trás e surgiram vários outros pontos de reivindicação. A corrupção, a precariedade da educação e dos serviços públicos em geral, os altos custos da Copa, etc., tudo isso apareceu nas manifestações. Veio também o repúdio aos partidos e a ação organizada de grupos de direita para expulsar os partidos de esquerda das manifestações.
O fenômeno das manifestações tomou uma tal proporção que se tornou não apenas assunto nacional, mas mundial, colocando o Brasil nos noticiários internacionais, que questionam a capacidade do governo de controlar a situação. A conjuntura nacional foi completamente alterada pelo retorno das manifestações de massas, o que nos obriga a fazer uma análise detalhada.

Democracia burguesa, muito prazer!

Enquanto aceitamos ganhar pouco, andarmos de ônibus lotado e caro, não termos espaço para lazer, ficarmos confinados na periferia, pagarmos altas mensalidades ou não termos acesso às universidades, ou seja, mantermos tudo dentro “da mais perfeita ordem” (tudo funcionando normalmente) o sistema trata a todos como cidadãos.
Para esse controle há todo um aparato político e ideológico que, desde cedo, nos “educa” como quer a classe dominante. O controle ideológico e social é tão forte e eficaz que, muitas vezes, vários de nós nos utilizamos de palavras que são próprias dos dominadores, como é o caso de chamar manifestantes de baderneiros, vândalos e outros adjetivos. Isso nada mais é do que a reprodução das matérias de jornais e da televisão ou a repetição daquilo que representantes do governo disseram.
Mas, quando levantamos a cabeça e dizemos não, o Estado mostra a sua verdadeira face: o controle de uma classe sobre outra. Quando a forma tradicional e normal de dominação falha, entra em cena imediatamente a outra: o controle pela violência. Como o Estado mantém o monopólio das armas, nesse conflito há claramente uma disputa desigual. Um lado está fortemente armado, tem as leis legitimando o uso da força. De outro a consciência e a disposição de seguir adiante. Por isso que nas revoluções uma das primeiras tarefas é a apropriação do armamento para que esta disputa se equilibre.
Os episódios do levante da Juventude pelo país recolocaram, entre muitos, um tema que para nós, marxistas, é muito caro: mostrar o caráter ditatorial da democracia burguesa. As cenas de repressão (e o papel da mídia) policial que se espalharam pelo país trouxeram à tona o verdadeiro caráter de classe da democracia burguesa.
As prisões, as acusações infundadas, como a de formação de quadrilha, as bombas e as balas contra a população não são coisas exclusivas da ditadura militar, mas da própria essência da democracia burguesa, que consideramos como ditadura da classe burguesa contra os trabalhadores. A democracia burguesa é isso mesmo: repressão aos trabalhadores e aos que lutam. Esse é o seu conteúdo. A forma, a depender da correlação de forças, pode mudar. Têm as eleições, as reuniões são permitidas, há mais liberdade de expressão, há partidos de esquerda legalizados, há mais espaço para manifestações. Claro, devem estar dentro dos limites estabelecidos pelas leis, pela polícia, etc. Nos regimes diretamente totalitários não há essa possibilidade.
Ao não se compreender o papel reacionário da democracia burguesa o movimento pode desarmar-se naquilo que é essencial: enfrentarmos o prefeito, o governador, a presidente. E a luta não pode estar separada da luta contra a própria lógica de dominação. Entendermos que os governos passam e a dominação também precisa passar é fundamental.

Governos reagem ao movimento com mais polícia e repressão
Os governos do PT, do PSDB e do PMDB estão de acordo e aplicam o mesmo projeto econômico no país. Não é por acaso que o aumento das passagens e outras medidas econômicas são feitas em comum acordo e ao mesmo tempo. E o tratamento dado ao movimento contra o aumento foi o mesmo que já vinha sendo dado aos movimentos sociais.
A repressão têm sido intensa por parte das polícias estaduais (São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Brasília). Mas, governo Dilma (dos mensaleiros, condenados e não presos), através do Ministro da Justiça, além de oferecer “ajuda”, coloca a Polícia Federal para monitorar o movimento. Essa é a mesma polícia que assassinou o índio terena Oziel na desocupação de terras indígenas no Mato Grosso do Sul. Também já havia enviado a Força Nacional de Segurança para proteger empreiteiras e reprimir operários da construção civil de Belo Monte. E ainda infiltrado agentes da ABIN para monitorar os movimentos sociais.
Essa é uma tendência geral na ação do Estado para tentar intimidar os movimentos sociais. É um processo de criminalização do movimento social que tem se demonstrado há algum tempo como no processo aos estudantes da USP, nas desocupações de terras e reintegrações de posse como no Pinheirinho em São José dos Campos, na demissão e perseguição aos militantes e ativistas sindicais, nas prisões dos estudantes da UNIFESP Guarulhos, na perseguição e assassinatos aos sem terra, etc. Também está em curso no Congresso Nacional o Projeto de Lei que equipara as ações do movimento social ao crime de terrorismo.
Precisamos enfrentar a repressão e a criminalização dos movimentos sociais. É fundamental incorporarmos, como umas das principais bandeiras do movimento, a luta pelo fim dos processos e o fim da criminalização dos movimentos sociais. Essa é uma bandeira democrática essencial para o prosseguimento dessas e de outras lutas sociais. Seja qual for o rumo a ser tomado pelas manifestações, a denúncia da repressão deve continuar, com a luta pela libertação dos presos, retirada dos processos, condenação dos abusos dos repressores, etc.
A reconquista das ruas

Depois que a repressão chegou ao auge, que a violência policial foi denunciada em todas as mídia possíveis, que a presidente Dilma foi vaiada em plena abertura da Copa das Confederações, que milhares de pessoas anunciaram seu apoio às manifestações nas redes sociais, e não só virtualmente, mas comparecendo às ruas nos dias seguintes, depois da generalização das manifestações, por mais que ainda haja repressão e conflitos com as tropas de choque, a população voltou definitivamente às ruas.
Um só grito ecoa pelo país: O Brasil acordou! Somos milhares de pessoas, sobretudo jovens, que saímos às ruas e gritamos que não aguentamos mais essa situação. Somos trabalhadores e estudantes de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Maceió e de tantos outros lugares. Somos também os movimentos populares contra as desapropriações para construções de estádios para a Copa. Somos uma população que não suporta mais a preacriedade da educação, da saúde, dos serviços públicos em geral. Somos uma população que não aceita mais ver o dinheiro público sendo desviado para obras superfaturadas para eventos esportivos, enquanto o país sofre com muitas outras carências.
Depois de duas semanas de lutas em São Paulo, conquistamos muito mais do que R$ 0,20 na passagem. Conquistamos as ruas. Conquistamos o direito de lutar. Conquistamos o direito de nos manifestar, de nos expressar. Conquistamos o direito de ir e vir, que já está na Constituição, mas que como tudo no Estado burguês, não vale para todos e somente para alguns. Os direitos só valem para a classe que controla o poder econômico e social. Foi a serviço dessa classe que a polícia agiu com extrema violência, na batalha da quinta-feira dia 13 de junho em São Paulo.
A polícia agiu com tamanho despreparo e estupidez que agrediu os jornalistas que estavam acompanhando a manifestação. Os jornalistas estavam lá a serviço dos meios de comunicação, da Globo, da Folha, da Veja, para fabricar uma versão pronta da história, a versão de que os manifestantes são vândalos, baderneiros, etc. Não foi isso que as câmeras e celulares mostraram, mas o contrário, a barbárie provocada pela polícia. Diante do que foi testemunhado e divulgado naquela quinta-feira, não havia como fabricar outra história. O aparato repressivo do Estado mostrou a sua cara e todos puderam ver como age o Estado burguês quando se contestam os interesses capitalistas, seja esse estado ditatorial ou democrático. A brutalidade policial inspirou as pessoas a irem às ruas em todo o país. Houve manifestações em mais de cem cidades. Os números são difíceis de precisar, mas algo em torno de um milhão de pessoas esteve participando das manifestações.

Muito mais que 0,20 centavos

A mobilização da Juventude é nacional. Conta com o apoio dos demais trabalhadores e com manifestações de apoio fora do país. Além disso, não é mais uma luta só contra o aumento das passagens. Esse foi apenas o estopim. A luta é “contra todo um sistema falho”, como diz uma das convocantes do ato de apoio às mobilizações e de repúdio à ação policial que será realizado na Irlanda. Brasileiros em vários países do mundo se manifestaram em repúdio à repressão e em apoio aos protestos em sua terra natal.
Os milhares de jovens (ainda que não seja algo consciente) encontram nas ruas o espaço para protestar contra a repressão, contra o confinamento a que estão submetidos, contra a falta de condições mínimas de existência, a falta de lazer, de espaços culturais, contra a vigilância que o Estado exerce pelas redes sociais (nunca se pôde falar tanto e ser tão vigiado), contra o desemprego e o trabalho precário, por salário decente e principalmente contra a falta de futuro. O sistema capitalista, em crise estrutural, não pode oferecer aos jovens qualquer perspectiva de vida digna. A necessidade de aumentar a exploração para garantir, minimamente, a manutenção da taxa de lucro faz com que o capital reserve para a Juventude condições de trabalho e de salário bem piores.
Essas são as causas das rebeliões da juventude também no Oriente Médio, no Norte da África, em vários países da Europa, no Chile e agora no Brasil. Mesmo considerando em específico a questão do transporte, por trás do aumento das passagens há a relação político-econômica com as empresas de ônibus (em que mortes buscam resolver as disputas pelo controle do transporte coletivo em várias cidades), os contratos com ampla desvantagem para o poder público, um sistema de concessão em que prevalecem as péssimas condições do transporte e do itinerário para os bairros mais distantes da cidade.
Também tem o apoio financeiro dos empresários (caixa-dois) às candidaturas dos partidos da ordem. Por isso, em São Paulo, prefeito e governador diziam que não podiam recuar em relação ao aumento, pois significaria fechar uma torneira pela qual passa milhões de reais para as campanhas políticas. Como o sistema não pode atender o que, de fato, a Juventude procura, sem colocar em xeque a lucratividade dos empresários do setor e do próprio capital, tentou-se conter a sua força com a utilização da violência. É necessário para os governos derrotar o movimento antes que avance para reivindicações que questionem de fato o sistema.
Essa luta, por ser uma luta social, enfrenta a política econômica que privilegia os bancos e as grandes empresas, questiona a unidade da burguesia e dos principais partidos (PT, PSDB, PMDB) em torno do projeto em curso no país, enfim, enfrenta um projeto de poder.

Muito menos do que precisamos

A luta contra o aumento das passagens obteve uma vitória parcial, que foi a revogação do aumento anunciada em conjunto pelo governador Alkmin e pelo prefeito Haddad na quarta-feira dia 19. Mas naquele momento, um dique já havia sido rompido e a inundação das manifestações se espalhava pela cidade e pelo país. Ficou claro que o aumento das passagens foi apenas a gota d'água que fez transbordar a revolta. O aumento das passagens, muito acima da inflação, penaliza amplos setores da população trabalhadora que depende de transporte público. Um transporte que é precário, insuficiente, desconfortável, em que se tem que esperar horas por um ônibus ou trem, e se viaja esmagado durante horas, para ir de casa ao trabalho ou vice versa.
Essa preacriedade do transporte público é a mesma dos hospitais, em que se tem que esperar longas horas na fila para ser atendido, longos meses para marcar um exame ou conseguir um tratamento (cirurgia, então, é um sonho), é a mesma da educação, em que os jovens saem do ensino médio sem saber ler e interpretar um texto, é a mesma da moradia de milhões que ainda vivem empilhados em favelas, do saneamento básico que não alcança as periferias das cidades, e um longo etc. Tudo isso é confrontado com os gastos exorbitantes com as obras da Copa. Gastos dos quais já se sabe que uma parte vai direto para o bolso dos políticos corruptos, que dividem parte do bolo de dinheiro entregue às empreiteiras. Políticos que sempre roubaram dinheiro público e saíram impunes.
Foi a insatisfação com tudo isso e mais um pouco que veio à tona nas manifestações. Pois a chamada “classe C” criada nos governos do PT, os trabalhadores que tiveram acesso ao consumo, está enforcada pelas dívidas, com as prestações de imóveis, automóveis, eletrodomésticos, carnês de financiamento, prestações de lojas, cartões de crédito, cheque especial. Isso porque, apesar de ter tido acesso ao crédito nos bancos, desde os últimos anos do segundo mandato de Lula, essa população não teve aumento real da sua renda. Apesar da burocracia sindical governista festejar aumentos salariais “acima da inflação” em várias categorias, trata-se de porcentagens ínfimas e aumento, que não repõem as perdas acumuladas os índices de inflação são sempre manipulados para não incluir os gastos que trazem mais impacto para a população trabalhadora, como por exemplo, alimentação ou transporte.
Além de não ter tido aumento real da sua renda, os trabalhadores tiveram aumento de serviço. Uma das receitas para contornar a crise mundial do capitalismo e manter a taxa de lucro no país foi justamente aumentar a exploração, por meio da intensificação do trabalho. Isso significa colocar uma carga maior de serviço sobre cada trabalhador, por meio da cobrança de metas, do autoritarismo das chefias, do assédio moral.
Essa situação material concreta foi a base para as manifestações que explodiram nas últimas semanas. Alguns sinais de insatisfação com essa situação concreta dos trabalhadores já haviam se manifestado, como por exemplo, nas revoltas dos operários das obras do PAC, como em Jirau-RO, Belo Monte ou outras. Pequenos focos de rebelião da juventude universitária, tratados com um monumental aparato repressivo, também já eram indícios dessa insatisfação. Tudo isso estava latente, e era impossível de prever o momento exato em que viria à tona. Mas agora que a insatisfação se manifestou, está em disputa o rumo dos processos.
O perigo de retrocesso

Como dissemos, para evitar que as manifestações se generalizassem e disputar os rumos do processo, a mídia passou a convocar a população para os protestos. Se nos primeiros protestos estava em marcha uma juventude universitária, politizada, com tendências de esquerda (mesmo que não organizada em partido), liderando jovens da periferia, punks, etc., a partir da generalização dos protestos começou a comparecer uma população de classe média, moradores dos bairros centrais, que começou a dar o tom dos protestos, especialmente na avenida paulista. De repente, o que era um movimento de luta se transformou numa festa em verde amarelo, num apelo à nacionalidade, ao patriotismo. A mídia passou a divulgar esse tipo de manifestação “pacífica”, para se contrapor aos protestos radicalizados que ainda aconteciam em outras áreas da cidade e em outras regiões do país. Ao contrário da “micareta” da avenida paulista, nos demais protestos havia ataque aos prédios públicos, às prefeituras, palácios do governo, câmaras legislativas, aos símbolos do estado e de suas instituições. A mídia começa a criar uma distinção entre as manifestações “democráticas” e “pacíficas” (as da classe média na avenida paulista) e as manifestações violentas, de “vândalos” e “grupos radicais minoritários”, que são todas as demais em que se ataca os símbolos do poder.
Ao mesmo tempo, a mídia introduz também o tema da corrupção, com bastante força. Depois de 10 anos de governo, o PT está identificado como um partido de demagogos e corruptos (o que em boa parte não deixa de ser verdade). A corrupção é inerente ao sistema capitalista. Qualquer governante eleito para esse Estado governa para a classe dominante e recebe dinheiro dessa classe em troca dos serviços que presta para viabilizar os negócios dos corruptores. É assim que o sistema funciona em qualquer país e desde que o capitalismo existe. Mas a direita se aproveita desse tema quando quer atacar algum governante que a desagrada. O PT não é mais corrupto do que qualquer governo do PSDB ou de qualquer partido, e encaminha os interesses dos bancos, dos latifundiários, dos industriais, dos capitalistas em geral, como qualquer partido. Mas o controle do Estado, aparelhado pela burocracia petista, ainda desagrada setores arqui reacionários como a revista Veja. Por isso, a mídia se aproveita do movimento de manifestações para transformá-lo num movimento contra o PT, ao qual a classe média da avenida paulista aderiu em massa.
O repúdio ao PT, na consciência atrasada das massas, se transforma em repúdio aos partidos. A população aplaudiu quando os partidos de esquerda, PSTU, PCO, PCB, foram expulsos das manifestações na avenida paulista, na manifestação da quinta-feira dia 20. Foram expulsos pela ação direta de elementos de extrema direita, claramente identificados como fascistas. Esses elementos se aproveitam do que há de mais atrasado na consciência das massas, o repúdio aos partidos, para atacar especificamente os partidos de esquerda, e distorcer os rumos de um movimento, que no geral ainda apresenta um sentido progressivo, ainda que seus rumos estejam claramente em disputa.
Nesse momento se faz sentir a fragilidade da esquerda organizada, o seu grau de distanciamento e falta de inserção entre a população, a ponto de não conseguir se manter numa manifestação de um movimento que, a princípio, se colocou como antigovernista, ou seja, com bandeiras de esquerda. A falta de trabalho ideológico da esquerda abre caminho para aqueles que nunca deixaram de fazer sua propaganda, como a direita organizada nos veículos de mídia. Mas o repúdio aos partidos tem a ver com uma série de problemas, que merecem uma discussão em separado.

A esquerda paga o preço dos seus erros

No caso em questão, o movimento contra o aumento das passagens começou sendo convocado pelo Movimento Passe Livre (MPL), de orientação majoritariamente anarquista. Mesmo em seu início, o movimento já atraía milhares de manifestantes, muito mais do que nos anos anteriores. Militantes de diversas tendências se somaram. Integrantes do PSTU, do PSOL, e mesmo da Esquerda Marxista, corrente interna do PT, se somaram. Mas seguindo um vício que praticam nas frentes em que tem atuação, nos sindicatos ou em outros movimentos sociais, essas correntes querem se colocar como dirigentes, querem conduzir as manifestações, se colocar na dianteira, monopolizar a palavra, sem ter participado da construção dos processos de luta. É o que se chama de aparelhar o movimento. Naquele primeiro momento, os partidos foram rejeitados pelos próprios participantes do movimento, que estavam desde o seu início, por terem tentado aparelhar o movimento, de maneira oportunista.
O aparelhismo e o oportunismo das organizações deve ser criticado e combatido no interior do movimento, com os métodos do movimento, por meio do debate político, da disputa de idéias e de argumentos, jamais por meio da violência. Os militantes devem ter o direito de se organizar em grupos de acordo com as idéias em comum que defendem e devem ter o direito de expressar essas idéias e seus símbolos em suas faixas, cartazes e bandeiras. Mas esse direito não pode se colocar acima das necessidades de construção e unidade do movimento. Ao invés de disputar o controle da direção do movimento, é preciso disputar a consciência daqueles que estão no movimento e dos que estão fora contra a ideologia burguesa, contra os diversos tipos de filosofias pós-modernas e irracionalistas, para que avancem em direção a uma consciência anticapitalista.
Por ter abandonado esse tipo de disputa, os partidos de esquerda perderam inserção e base social. Enquanto organizações como PSTU, PCO, PCB, e outras menores se perdem em disputas superestruturais e estéreis pelo controle de aparatos sindicais e estudantis, a verdadeira disputa, a disputa pela consciência da classe contra a ideologia burguesa, deixa de ser feita. As milhares de pessoas que comparecem às ruas o fazem com uma consciência dominada pela propaganda dos defensores do capitalismo, pela Rede Globo, Folha, Veja. Seria muita ingenuidade esperar que essas milhares de pessoas que despertam para a vida política o façam com uma consciência de esquerda. O que essas pessoas conhecem como esquerda e como bandeira vermelha é o PT. E para elas, o PT, com o nome de Partido dos Trabalhadores, é símbolo de demagogia e corrupção.
Para nós o PT não é de esquerda, é um partido burguês composto de burocratas, que se sustentam com a ocupação de cargos no Estado, a corrupção, o controle de sindicatos, ONGs e movimentos sociais. Esse partido governa o país há 10 anos atendendo os interesses do conjunto do capital que opera no Brasil, bancos, agronegócio, empreiteiras, transnacionais, etc. Os setores populares e ativistas dos movimentos sociais que ainda são de luta não têm mais qualquer influência nos rumos do partido. Essa trajetória do PT, de um partido identificado com as lutas sociais, para um partido de corruptos que administra o capitalismo, “contamina” a percepção que as pessoas têm de todos os partidos de trabalhadores que usam a cor vermelha.
As pessoas repudiam a presença dos partidos de esquerda, como PSTU, PCO, PCB nas manifestações, não porque tenham ampla consciência do que são essas organizações, mas porque são partidos, porque têm o “P” no seu nome. O P de partido significa que disputam eleições, e se disputam eleições é para obter cargos, e se querem obter cargos é para roubar. É isso que as pessoas pensam hoje dos partidos, sejam eles de direita ou de esquerda. Essas mesmas pessoas toleram os anarquistas, não porque concordem com o anarquismo em seu conteúdo, mas porque o nome dessa ideologia deixa imediatamente claro que os seus adeptos não querem cargos no Estado. Os partidos de esquerda não deixam claro que querem abolir o capitalismo e com ele o Estado, por isso são repudiados.
Quando ingressam na vida política, as massas refletem o atraso ideológico dos últimos anos ou décadas. Por isso, quando grupos fascistas e neonazistas se infiltram nas manifestações, as pessoas aplaudem a expulsão dos militantes de esquerda. Os fascistas e neonazistas sabem muito bem o que são o PSTU, o PSOL, o PCB e as outras organizações da esquerda. Ao contráio da maioria da população, a extrema direita organizada sabe o que representam essas organizações, conhecem o programa e as idéias que defendem, e querem evitar que a população tenha acesso a elas. Por isso, aproveitam o desconhecimento da população em relação à esquerda e o repúdio ao PT para isolar fisicamente a esquerda das manifestações, por meio da violência.
Desse episódio ficam importantes lições. Uma delas, a necessidade da unidade das organizações da esquerda, acima dos interesses pontuais de qualquer corrente. O que está em jogo é o próprio rumo do processo de mobilização, o perigo de que a pauta do movimento seja ditada pela direita organizada e pela mídia. É preciso construir uma plataforma unitária, que represente os interesses dos trabalhadores, para ser apresentada nas manifestações, contra os projetos da direita e do PT. A outra é a necessidade urgente de uma disputa ideológica a fundo, contra o capitalismo e o Estado, que mostre aos milhares manifestantes que as suas demandas não poderão ser atendidas por esse sistema.
Por uma jornada nacional de lutas e mobilizações

A lição fundamental a ser deixada por esse movimento, com todas as suas contradições, é de que lutando se conquista. As pessoas perceberam que podem enfrentar o Estado e seus planos a serviço do capital. Podem se rebelar e dizer não. Em comum, a descrença nas promessas e ilusões oferecidas e a certeza da força que temos quando estamos mobilizados, nas ruas. As pessoas não falam em outro assunto. A política está em discussão por toda parte, desde as mesas de bar até as donas de casa, as salas de aula, as filas de banco. O impacto dessas mobilizações marca uma nova situação política no país e coloca, depois de muito tempo, a possibilidade de se construir um processo de lutas com reivindicações políticas e sociais aos governos federal, estadual e municipal.
Desde a marcha nacional à Brasília em abril – em conjunto com o Bloco Classista, Anticapitalista e de Base, que atua no interior da CSP-Conlutas – defendemos a necessidade de organizarmos uma jornada nacional de mobilizações. Os recentes acontecimentos (movimento popular e da juventude), as greves e as campanhas salariais demonstram que fez falta uma ação coordenada da central. Perdemos, mais uma vez, a oportunidade de a Central ser, de fato, uma alternativa de direção para a atual situação política do país.
Mas ainda há tempo. As manifestações vão continuar e as campanhas salariais das principais categorias estão começando. O fortalecimento e a unificação desses processos é condição fundamental para vencer a dureza do governo e da patronal. Estamos diante de um ascenso Juvenil e Popular com traços de rebelião popular, com possibilidades de expandir para classe trabalhadora. A vanguarda é a juventude que não vê perspectivas, com boa formação e trabalhos precários, etc. Os aspectos contraditórios expressam um recomeço e a presença de diversas tendências da realidade.
Manifesta-se ainda a crise de alternativas socialistas, a ausência de um projeto de sociedade alternativo ao capitalismo que as pessoas se disponham a construir e pelo qual queiram lutar. As pessoas querem lutar, mas ainda em nome de bandeiras limitadas, que expressam um desejo de melhoria, mas com a ilusão de que essas melhorias possam ser obtidas dentro do sistema em que vivemos. O papel dos socialistas revolucionários é mostrar que essas demandas precisam ser atendidas, por meio da luta, de uma forma tal que essa luta leve a um enfrentamento com elementos centrais do sistema, colocando em cheque a própria vigência do capitalismo.
No caso brasileiro atual, várias demandas que expressam necessidades sociais urgentes já se manifestaram com bastante força em todos os protestos. Os manifestantes querem melhorias na educação, na saúde, sem falar na própria questão do transporte público, que foi o detonador de todo o processo. Para atender essas demandas, é preciso entrar na disputa pelo orçamento público. Praticamente metade da arrecadação estatal está direcionada para o pagamento da dívida pública.
Uma ampla campanha pelo não pagamento da dívida pública poderia mostrar que essa dívida é abusiva, ela já foi paga várias vezes, e é ilegítima, porque foi contraída pelos governos sem nos consultar, através de mecanismos espúrios, em queos credores estabelecem os juros e as condições, sem falar que o dinheiro assim emprestado nunca foi usado pela população. Trata-se de uma imensa extorsão que o capitalismo realiza sobre os trabalhadores, que precisa ser sustada. Essa é a única maneira de termos educação, saúde, transporte, serviços públicos de qualidade. Uma luta pelo não pagamento da dívida e o uso desse dinheiro para atender as necessidades da população tem o potencial de colocar em cheque os pilares do capitalismo.

Daniel M. Delfino
Julho 2013


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