Assim
como o Brasil, a Argentina passa por um momento de questionamento de
sua presidente. No Brasil, o questionamento tem sido levantado por
conta das denúncias de corrupção na Petrobrás,
que originaram uma campanha pelo impeachment de Dilma. Ainda que não
tenha tomado as proporções de uma ofensiva real com o
propósito de derrubar imediatamente o governo burguês de
plantão, essa campanha segue vicejando nos meios virtuais, na
mídia e nos bastidores como uma espécie de carta na
manga ou plano B da burguesia.
Na
Argentina o questionamento é bem mais profundo. A presidente
Cristina Kirchner foi acusada pelo procurador Alberto Nisman de
encobrir os culpados dos atentados de 1994 em Buenos Aires contra uma
instituição judaica. Quatro dias depois da denúncia,
em 18 de janeiro, o procurador é encontrado morto em sua casa.
Não há provas conclusivas sobre as hipóteses de
suicídio ou assassinato. A oposição burguesa, a
mídia e setores do judiciário não perderam tempo
e imediatamente colocaram a culpa da morte do procurador na
presidente. O governo, por sua vez, denunciou o procurador por suas
ligações com os Estados Unidos e Israel.
A guerra
de acusações entre o governo e a oposição
prossegue e já está enojando a população,
ao expor as entranhas do aparato do Estado e a putrefação
que reina nessas altas esferas. O certo é que não há
nenhum inocente na disputa. A motivação politica da
acusação do procurador Nisman tem a ver com a situação
atual da Argentina, a deterioração da economia e a
disputa pela sucessão de Cristina Kirchner, nas eleições
de outubro. Mas para entender a trama dos acontecimentos é
preciso retomar o fio da meada até os próprios
atentados.
Os
atentados de 1992/1994 e o pântano judicial
Na linha
do tempo dos acontecimentos relevantes para o caso, o primeiro ponto
se situa em 1991, ano em que governava Carlos Menem, equivalente
portenho ao que foram os governos Collor e FHC no Brasil, aplicadores
ferozes do neoliberalismo e entusiastas da globalização.
Neste ano, Menem envia navios para a 1ª. Guerra do Golfo, como
parte da coalizão que os Estados Unidos montaram contra o
Iraque. Essa aliança militar simbolizava aquilo que o próprio
Menem denominou de "relações carnais" com os
Estados Unidos, ou seja, submissão completa ao imperialismo.
A
resposta a essa adulação servil do imperialismo não
veio do nacionalismo latino americano, mas de um atentado em frente à
embaixada de Israel em Buenos Aires, em 17/03/1992, que deixou quase
30 mortos. A investigação do atentado foi conduzida
pela própria Suprema Corte argentina, por se tratar de um alvo
ligado a um Estado estrangeiro, e se concluiu em 1994, sem conseguir
apontar os culpados. No mesmo mês da conclusão judicial,
no dia 18/07, acontece outro atentado, dessa vez contra a Associação
Mutual Israelita Argentina - AMIA, que deixou 85 mortos e mais de 300
feridos.
A
investigação desse segundo atentado deu origem a um
novo e gigantesco inquérito, cujo julgamento aconteceu entre
2001 e 2004. Esse julgamento se debruçou sobre três
possíveis pistas, que incriminavam setores da comunidade
islâmica radicados na Argentina e supostamente relacionados ao
Líbano, Síria ou Irã. Mas o único
condenado no julgamento foi o próprio juiz do caso, flagrado
em vídeo recebendo uma propina milionária de um
policial implicado em uma das linhas de investigação. O
fracasso do julgamento levou o processo de volta à estaca
zero. Houve então a substituição da equipe
encarregada da investigação por um novo grupo, chefiado
pelo procurador Alberto Nisman, recém falecido.
A
reconstrução da governabilidade burguesa na era K
Acontece
que esse novo ciclo de investigação dos atentados a
AMIA se dá no marco de uma nova conjuntura nacional, a
estabilização do país sob os governos de Nestor
Kirchner e sua viúva e sucessora Cristina, a partir de 2003. O
casal K, como são chamados os Kirchner na Argentina, assumiu a
tarefa de reconstruir as instituições do país e
salvaguardar a continuidade do capitalismo, depois do contundente
clamor das ruas para "que se vayan todos", que marcou a
revolta popular do "Argentinazo" de 2001. A reconstrução
das instituições do regime se deu com uma ampla
reciclagem do pessoal que ocupava o aparato do Estado, substituído
por figuras do escalão inferior, menos conhecidas e menos
rejeitadas pelo povo. Mas ainda assim, foi uma continuidade, que se
deu em todos os níveis, desde o executivo ao judiciário.
O procurador Nisman fazia parte da equipe do juiz anterior do caso
AMIA.
A era K,
como os governos do PT no Brasil, garantiu a governabilidade
capitalista de um país que havia sido pesadamente atingido
pela crise mundial anterior (2000/2001), que resultou numa rejeição
massiva ao modelo neoliberal. Essa tarefa foi facilitada pela
conjuntura favorável de retomada do crescimento econômico
mundial em meados da década, que resultou numa alta dos preços
das “commodities” em que se especializaram os países
latino-americanos (carne e trigo, no caso da Argentina). Esse momento
favorável da economia na década passada permitiu a
esses governos garantir os lucros da burguesia e do imperialismo e ao
mesmo tempo fazer limitadas concessões às massas.
O
esgotamento do modelo, a partir da crise de 2008, leva a dificuldades
crescentes para o governo K na Argentina, culminando em derrota nas
eleições parlamentares de outubro de 2013 para os
partidos da oposição burguesa (ressalve-se que os
partidos da esquerda classista, agrupados numa coligação
eleitoral chamada FIT, também obtiveram uma boa votação).
É nesse contexto de possível derrota eleitoral da
presidente e fim da era K que se deu a acusação do
procurador Nisman. A burguesia argentina e o imperialismo parecem
dispostos a substituir o kirchnerismo por um governo burguês
"normal", sem qualquer tipo de fachada “progressista”
ou concessões aos trabalhadores.
A
conspiração do imperialismo e da oposição
A
oposição interna e externa conseguiu cooptar o
procurador Nisman (que havia sido apontado para a função
de investigar o caso AMIA pelo próprio Nestor Kirchner) e
orientá-lo para que acusasse a presidente Cristina. Foi
adotada a pista iraniana, com base em depoimentos pouco críveis
de dissidentes iranianos hostis ao governo daquele país. Ou
seja, a incriminação de supostos agentes iranianos foi
feito por pessoas declaradamente hostis ao governo daquele país,
que teriam todos os motivos para faltar com a verdade e inventar
insinuações.
Essas
insinuações foram transformadas em prova judicial com a
mediação do imperialismo estadunidense. Quando foram
publicados no site Wikileaks em janeiro de 2011 os documentos das
embaixadas estadunidenses e as ações de espionagem que
elas encobrem pelo mundo inteiro, havia um capítulo argentino,
que tratava exatamente do caso AMIA. Nesses documentos expunha-se o
fato escandaloso de que o procurador Nisman submetia as peças
jurídicas que redigia na investigação aos
funcionários da embaixada, e somente depois das devidas
correções da inteligência estadunidense elas eram
publicadas como oficiais. Esse procedimento criminoso e servil foi
denunciado amplamente nos livros “Argenleaks” de 2011 e
“Politileaks” de 2014, do jornalista Santiago O'Donell. Apesar
disso, Nisman foi mantido no cargo de procurador e na investigação
do caso AMIA, como se nada tivesse acontecido!
Da mesma
forma seguiram intocados os agentes do SIDE (Serviço de
Inteligencia do Estado, herdado da ditadura militar argentina –
1977-1983), formalmente subordinados ao poder executivo e empregados
por Nisman na investigação, muitos dos quais
remanescentes da ditadura, uma das mais assassinas do continente.
Ressalve-se que uma das frentes do marketing “progressista” dos
governos K foi a punição de alguns dos agentes da
ditadura, em especial nas Forças Armadas. As punições,
entretanto, deixaram intocados os agentes da inteligência.
Esses
serviços secretos, como em todos os países, acabam
desenvolvendo interesses próprios, sem nenhuma lealdade aos
governantes de plantão a quem estão formalmente
subordinados, nem a alguma ideologia ou projeto politico. Formam um
cisto no interior do Estado, protegido pelo caráter secreto de
suas atividades, sem que se saiba sequer o nome real dos seus
integrantes, o que fazem na prática, seu orçamento,
etc. Na realidade, os serviços secretos servem apenas para
realizar o trabalho sujo da burguesia, aquele que as instituições
"normais" de policia e Forças Armadas não
podem desempenhar (pelo menos não em tempos de democracia
burguesa formal): espionagem, intimidação, tortura,
desaparição, assassinato de opositores, especialmente
de organizações dos trabalhadores.
Nenhum
governo burguês pode prescindir de agentes para esse tipo de
serviço sujo, mas ao mesmo tempo nenhum governo tem controle
total sobre o que fazem, sendo forçado a tolerar os abusos que
cometem em interesse próprio. De tempos em tempos os abusos
vêm à tona e os serviços são formalmente
reformados, mas sua essência permanece a mesma.
A
geopolítica de uma acusação forjada
O
resultado dessa conspiração foi a denúncia
contra Cristina Kirchner, redigida em co autoria com a inteligencia
estadunidense e assinada por Nisman. Em tal denúncia constava
a acusação sobre a presidente e seu chanceler (ministro
das relações exteriores) de negociar com o governo
iraniano a retirada de pedidos de busca, formalizados na Interpol,
contra agentes iranianos que teriam participado dos atentados,
segundo a pista preferencial adotada pelo procurador. Em troca,
seriam reabertas as negociações comerciais com o Irã
(país isolado por sanções comerciais do
imperialismo), visando sobretudo o fornecimento de petróleo
iraniano à Argentina (que como o Brasil, vive uma crise
energética).
Recentemente,
o próprio governo Obama iniciou uma reaproximação
com o regime dos aiatolás, notório integrante do "eixo
do mal" desde a revolução de 1979, que foi
materializada no “plano de ação conjunta” de
novembro de 2013 sobre o programa nuclear daquele país.
Aparentemente, o governo argentino, através do chanceler de
Cristina, havia interpretado essa reaproximação como
uma espécie de "autorização" informal
do imperialismo para também normalizar suas próprias
relações com o Irã. O imperialismo então
usou o procurador Nisman para colocar a Argentina de volta no seu
devido lugar, ou seja, o de uma semicolônia, que não
pode dar nenhum passo em suas relações internacionais
sem a aprovação de seus amos imperiais.
Que na
denúncia apresentada pelo procurador não haja provas
concretas não importa (as negociações entre
Argentina e Irã de fato aconteceram, mas não foram
suficientes para que a Interpol retirasse os pedidos de busca). O que
importava era causar problemas para a presidente Cristina, em ano
eleitoral, e desgastar seu projeto. A morte de Nisman, em
circunstâncias ainda não esclarecidas (e que
provavelmente nunca serão, assim como os próprios
atentados) elevou a temperatura da situação.
As
lições da crise
A
população argentina está sendo bombardeada
diariamente pela mídia com as idas e vindas do caso Nisman,
com a acusação de assassinato sobre a presidente e de
outro lado a denúncia da relação de Nisman e
agentes de inteligência a seu serviço com os Estados
Unidos. O governo contra atacou dissolvendo o SIDE, substituindo-o
por outro órgão com as mesmas funções. No
dia 18/02 aconteceu uma marcha convocada pela oposição
pedindo justiça para o procurador Nisman. Segundo a imprensa
burguesa internacional, sintonizada com o imperialismo, a marcha
contou com 400 mil pessoas. Fontes da esquerda argentina, entretanto,
independentes em relação ao governo e também à
oposição burguesa, calculam o efetivo da marcha em 100
mil pessoas (ver por exemplo
http://www.socialismo-o-barbarie.org/?p=4313).
O certo é que a maioria da classe trabalhadora ignorou a
convocação da marcha e não compareceu nem lhe
deu muita atenção. Os participantes limitaram-se à
hierarquia do judiciário, políticos burgueses e a
classe média. Na vida real, que não passa na TV, a
população trabalhadora está se cansando do
escândalo e mais preocupada com os problemas da economia,
inflação, desemprego, etc.
Desse
processo em andamento no país vizinho nos ficam algumas
lições:
- o
papel subordinado e semicolonial dos países periféricos,
como a Argentina e o Brasil, a sua completa falta de soberania real e
a ação permanente de monitoração e
controle da politica desses países pela rede de
embaixadas/espionagem estadunidenses;
- o
papel nefasto dos serviços de inteligência, o seu
caráter de instituições intrinsecamente
antidemocráticas e antipopulares;
- a
necessidade da dissolução de todos os resquícios
das ditaduras militares, seus serviços de inteligência e
demais órgãos de repressão, todos ainda repletos
de torturadores e assassinos, que por sua vez devem ser todos
julgados e condenados, estejam na ativa ou já retirados;
- a
necessidade da publicação de todos os documentos e
negociações internacionais, que são tratados às
escondidas pelos burocratas do Estado, como se fossem assuntos que
não dizem respeito ao conjunto da população;
- a
necessidade de investigações independentes, sem a
presença de agentes suspeitos do Estado, sejam do judiciário
ou do executivo, para esclarecer acontecimentos como os atentados à
AMIA e o próprio assassinato do procurador. Essa investigação
teria que ser assumida pelas organizações dos
trabalhadores;
Pela sua
profundidade, a crise na argentina afeta não apenas o governo
burguês K, mas seus opositores burgueses, e boa parte das
instituições, o judiciário, serviços de
inteligencia, etc. Trata-se portanto de uma crise do regime. A saída
dessa crise pode ser dada pela burguesia por meio da eleição
de opositores do kirchnerismo. Isso, entretanto, não
resolveria os problemas concretos do país, a crise energética
que foi pivô do caso, a inflação, o desemprego,
etc. Esses problemas só podem ser resolvidos com uma
mobilização popular.
Em
relação ao caso AMIA e Nisman, é preciso
denunciar o caráter das instituições do Estado
burguês, o seu papel de órgão a serviço da
classe dominante e da exploração e opressão dos
trabalhadores, colocando como palavra de ordem a mais radical das
demandas democráticas, a de uma Assembleia Constituinte. Uma
Constituinte arrancada pela mobilização popular traria
a oportunidade de, entre outras questões, discutir as
instituições de alto a baixo (o que traria a
oportunidade de, dependendo do grau de mobilização, por
abaixo o próprio Estado capitalista e substituí-lo por
um poder dos trabalhadores, que encaminhe uma transformação
revolucionária) e colocar em prática os ensinamentos
listados acima.
Daniel M.
Delfino
Março
2015
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