A
ideologia do policiamento
Nas
últimas semanas de outubro e início de novembro as
manchetes foram tomadas por notícias de uma “onda de
violência” na periferia de São Paulo, com o
assassinato de policiais, de baixa e alta patente, e mortes também
de alegados criminosos em supostos confrontos com a polícia.
As mortes chegaram a algumas dezenas por semana, e estabeleceu-se o
temor de que se repetisse algo semelhante ao que aconteceu em 2006
(quando confrontos do mesmo tipo numa escala muito maior paralisaram
a maior cidade do país na época do dia das mães),
inclusive com toque de recolher em alguns bairros da periferia e
regiões da Grande São Paulo. O governo federal e o
estadual estabeleceram um acordo de cooperação para
debelar a onda de violência, incluindo a presença do
exército nas ruas e a transferência de líderes da
facção PCC para presídios federais em outros
estados. No entanto, há quase um mês as mortes
continuam.
A
primeira consideração a se fazer é que nenhuma
onda de violência e atividade criminosa, nem esta em
particular, poderão ser refreadas apenas com o recurso a mais
policiamento, mais confronto, mais militarização. As
razões para o estado de guerra que vigora na periferia de São
Paulo e de outras grandes cidades do país são complexas
e profundas, e da mesma forma devem ser as soluções. O
discurso que resume tudo a falhas específicas na política
de segurança pública ou na competência de seus
gestores apenas arranham a superfície do problema. Esse
discurso simplista sobre assunto tão complexo não é
politicamente inocente, pois existe para justificar um projeto
determinado, justamente o projeto de colocar mais policiais nas ruas,
com maior liberdade para agir. Busca-se legitimar perante o conjunto
da população a prática policial já
corrente de atirar primeiro e perguntar depois. Até os
paralelepípedos das ruas da periferia sabem que a polícia
de São Paulo mata indiscriminadamente, de preferência se
o suspeito for negro, e monta “autos de resistência”
forjados, colocando armas nas mãos dos mortos para legitimar
as execuções.
O
reforço do policiamento, e especificamente esse tipo de
policiamento ultraviolento, são feitos mediante um processo de
convencimento junto à população e aos
trabalhadores, no sentido de que a “guerra ao crime” é a
única solução para “o problema da violência”.
Esse convencimento é permanente, por meio de programas
televisivos estilo “mundo cão”, que se popularizaram
enormemente na última década, com o método
sensacionalista e oportunista de ignorar os problemas sociais
profundos e prometer soluções simplistas: mais polícia
e mais mortes. A população é levada a apoiar
essa polícia que atira primeiro e pergunta depois, que mata
indiscriminadamente, que dispensa o devido processo judicial e age
simultaneamente como investigador, juiz e carrasco, que executa a
pena de morte instantaneamente, que tem a tortura como método
sistemático de investigação, que nunca paga por
seus crimes.
Os
interesses políticos e de classe
Como
uma organização de trabalhadores, somos contra esse
discurso e o projeto que ele legitima. A polícia que ganha
essa completa liberdade de ação nas ruas será a
mesma polícia usada para reprimir movimentos dos
trabalhadores, como greves, ocupações, manifestações
e ações diretas. Ambos serão tratados com a
mesma brutalidade e violência, como foram os moradores do
Pinheirinho em São José dos Campos no início
deste ano e os estudantes da USP em fins do ano passado. Perante a
opinião pública em geral toda a repressão será
legítima, seja aquela disparada contra o crime, seja contra
movimentos dos trabalhadores. Qualquer movimento por salário,
moradia, educação, passa a ser tratado como atividade
criminosa, punida com prisão e condenação
judicial ou administrativa de diversos tipos. Com essa prática
de criminalização e repressão armada, os
movimentos são isolados da grande maioria de trabalhadores,
que poderia vir a apoiá-los.
A
questão social torna-se assim caso de polícia, como era
assumidamente nas palavras do último presidente da República
Velha. A república neoliberal que se estabeleceu no Brasil
pós-ditadura, seja sob gestões do PSDB ou do PT, tem a
criminalização dos movimentos sociais como método
preferencial para suprimir todo o possível descontentamento
que não seja suficientemente abafado pelas diversas
modalidades de bolsa-esmola. Para isso, foi preciso apenas lançar
mão daquilo que permaneceu como legado inalterado da ditadura,
uma polícia militar montada para tratar os pobres, pretos e
periféricos como inimigos. A “democracia” brasileira
mostra assim a sua verdadeira face, a ditadura de uma classe, que não
precisa revogar formalmente as garantias democráticas como no
tempo da ditadura, basta soterrá-las debaixo de balas e
cassetetes policiais, com ou sem as câmeras de TV como
coadjuvantes, conforme o caso.
O
recrudescimento da repressão em geral no Brasil e a “guerra
ao crime” no caso em particular se baseiam em métodos,
estruturas e preconceitos seculares, mas possuem razões
econômicas e políticas bastante atuais, como a
necessidade de “limpar a casa” para receber os estrangeiros nos
megaeventos esportivos de 2014 e 2016. O Estado brasileiro precisa
demonstrar que possui controle sobre o território das
periferias, pois isso é crucial para vender a imagem de um
país que está progredindo rumo ao “1º mundo”.
Que esse suposto progresso esteja sendo alicerçado numa maior
exploração sobre os trabalhadores como a que estamos
vivenciando nos últimos anos, particularmente depois da crise
mundial iniciada em 2008, é algo que deve ser oculto, por meio
da exposição estrondosa de alguma grande vitória,
e nada melhor para isso do que uma Copa do Mundo. O sucesso em vender
essa imagem é crucial para que os atuais dirigentes do Estado,
o PT, consigam se perpetuar como gestores do capitalismo brasileiro.
Daí a cooperação de Dilma com Alckmin no caso da
atual “onda de violência”.
Para
completar esse ponto, é preciso assinalar que a luta contra a
repressão aos movimentos sociais, contra a violência
policial, os abusos de poder, maus tratos, corrupção
policial, em defesa dos direitos humanos, constituem um conjunto de
lutas parciais que não pode ser isolado da luta política
global contra a totalidade do projeto que está em curso no
país, o projeto da burguesia e do PT de gestão do
capitalismo periférico brasileiro. Não existe
possibilidade de vitória na luta contra a violência sem
que seja parte da luta geral contra os demais problemas causados pelo
capitalismo, e que seja uma luta não apenas contra os efeitos,
mas contra as causas desses problemas, o próprio capitalismo,
uma luta abertamente anticapitalista e socialista.
A
militarização de São Paulo
A
violência estatal é uma ferramenta fundamental na
manutenção da exploração, intimidando os
trabalhadores para que não entrem em luta. A polícia
tem como papel fundamental reprimir os trabalhadores e mantê-los
sob controle. O Estado brasileiro tem um projeto para o país e
para implantar esse projeto passa por cima dos direitos e das
aspirações de milhões de trabalhadores. A
polícia funciona como um agente direto dos setores do capital
que controlam o Estado. Para favorecer a especulação
imobiliária, o judiciário e a polícia realizam
despejos em áreas ocupadas e favelas, remoções
forçadas, caçada a moradores de rua, etc., tudo isso no
sentido de “higienizar” as cidades e literalmente abrir terreno
para construtoras, shopping centers, etc.
Em
Janeiro de 2012 a desocupação do bairro Pinheirinho em
São José dos Campos, já foi uma expressão
da escalada reacionária em curso no país e também
uma demonstração da ligação orgânica
das forças da repressão com o grande capital. Um bairro
inteiro, com milhares de habitantes, foi desocupado, com a destruição
das casas e patrimônio dos trabalhadores, com enorme
brutalidade, despejada indiscriminadamente contra mulheres, idosos e
crianças, apenas para garantir os interesses da especulação
imobiliária.
Impossível
não notar que estamos no momento que antecede a Copa do Mundo
e há grandes áreas, como a Zona Leste de São
Paulo, que estão na mira da especulação
imobiliária. O Estado precisa preparar essas áreas para
exploração por imobiliárias e empreiteiras. Por
isso aumentam os incêndios de favelas, desocupações,
remoção de moradores de rua, etc. A violência é
também uma forma de afastar a população para
regiões mais distantes e facilitar a exploração.
Certas regiões da cidade se tornam palco de guerra entre a
polícia e organizações do crime.
Esses
episódios de guerra facilitam o discurso de demonização
dos pobres, dos negros e da periferia em geral. Para o Estado e a
burguesia, é conveniente manter certas regiões e sob
uma espécie de estado de sítio, fortalecendo a polícia
e o aparato repressivo em geral. O próprio aparato do Estado,
em nível municipal, está sendo militarizado.
Das
31 subprefeituras de São Paulo, 30 estão sob comando de
ex-coronéis da PM. Esse movimento de militarização
(realizado pela gestão de Kassab, ex-DEM, hoje PSD) coincide
com o esvaziamento das funções das subprefeituras, que
perdem atribuições sociais, e também suas
verbas, que caíram de R$ 2,9 bilhões para pouco mais de
R$ 1 bilhão
(http://www.redebrasilatual.com.br/temas/politica/2012/09/subprefeituras-sao-desmanteladas-1).
Tranformam-se em meras zeladorias e órgãos de
fiscalização.
A
militarização e o discurso de guerra não
correspondem exatamente ao que apontam os númeres.A cidade de
São Paulo é a capital menos violenta do país, de
acordo com o Mapa da Violência 2012, com uma média de 13
assassinatos para cada 100 mil habitantes (dados de 2010, os mais
atualizados disponíveis). A capital mais violenta é
Maceió, com 109,9 assassinatos para cada 100 mil
(http://mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_web.pdf).
Para legitimar o clima de terror, é preciso algo mais.
Para
avançar na militarização, é preciso um
pretexto mais forte, e para isso recorre-se à guerra contra
organizações criminosas como o PCC. Desde a crise de
2006 vigorava um acordo entre a polícia/governo e o crime, que
mantinha a situação “estável” na periferia.
Por algum motivo, esse acordo foi suspenso em 2012. Policiais
começaram a ser mortos, inclusive fora de serviço, e em
represália, agentes policiais começaram a matar
criminosos e supostos criminosos em grande número, numa
situação de guerra declarada e completamente por fora
de qualquer procedimento legal (investigação,
julgamento, prisão). A versão policial dos “autos de
resistência” sempre prevalece e torna-se impossível
distinguir entre os mortos quem realmente tinha envolvimento com o
crime e quem foi pego pelo fogo cruzado de um ou de outro lado.
O
que importa é que foi criada uma legitimação
social para a ação violenta da polícia. A
polícia de São Paulo abriga em seu interior grupos de
extermínio, que cumprem esse tipo de missão com alguma
“discrição” em períodos “normais” e são
“liberados” para agir mais abertamente em momentos de crise como
esse. O Estado aproveita a situação, criada por ele
mesmo, para aumentar a repressão ao movimento social. No
limite, o avanço da atual política de confronto aponta
para a possibilidade de ocupação das favelas em São
Paulo, tais como as UPPs do Rio.
As
múltiplas dimensões do problema
Os
interesses políticos e de classe que estão por trás
da escalada repressiva são evidentes, mas desmontar o
mecanismo ideológico que legitima a repressão às
lutas sociais perante os próprios trabalhadores que poderiam
se beneficiar delas não é tarefa fácil. Os
ideólogos da repressão, como os “jornalistas” dos
programas “mundo cão”, podem manipular as emoções
da população com muita facilidade, ao tratar o crime em
uma única dimensão, como um simples caso de
policial-herói X bandidos-monstros. Os ideólogos da
repressão são sórdidos o suficiente para
caricaturizar todos os críticos dos abusos policiais e
defensores de direitos humanos como “amigos dos bandidos”, ou no
caso dos estudantes da USP, como “maconheiros”. Trata-se de uma
batalha duríssima e que está sendo vencida pelos
agentes ideológicos da extrema direita. Parte disso contaminou
até mesmo as artes e a cultura, como as “stand up comedys”
que fazem sucesso ridicularizando o assim chamado “politicamente
correto”, o que em si não é problema, mas no atual
contexto não faz mais do que inclinar os sentimentos do
público mais para a direita.
Como
não estamos diante de “um simples caso de policial-herói
X bandidos-monstros”, mas de uma escalada de violência e
repressão relacionada à gestão do capitalismo
periférico brasileiro no contexto da crise mundial do sistema,
precisamos discutir a “onda de violência” não em seu
aspecto superficial e fenomênico, mas em suas determinações
sociais profundas, que se estendem por diversas dimensões da
realidade:
-
ainda relacionado ao discurso da televisão, precisamos recusar
o uso que se faz do termo “bandido” como algum tipo de
subespécie, um não-humano que pode legitimamente ser
morto, como um personagem de videogame. De acordo com esse discurso,
“bandido” não pode ter acesso aos direitos humanos, pois
“não é gente” (ou como dizem, “direitos humanos
para humanos direitos”, uma formulação que
evidentemente só poderia vir da direita). Ora, os bandidos são
humanos que foram desumanizados pela miséria do meio social de
onde provém, pelo convívio com a violência de
policiais e outros criminosos, e desumanizados mais uma vez ao serem
tratados como menos do que humanos pela TV e a opinião pública
que a segue. Não negamos que os criminosos sejam extremamente
cruéis e brutalizados, mas isso não justifica nenhum
tipo de política de extermínio. Justifica a prisão,
pois essa instituição abre ao menos a possibilidade,
mesmo que remota, de algum tipo de recuperação. Mas
para isso, seria preciso que os presídios deixassem de ser os
bárbaros depósitos de gente que existem hoje no Brasil,
e que servem apenas para brutalizar ainda mais os seres já
violentos que nela são despejados. Se a saúde e a
educação para os trabalhadores e seus filhos recebem
verbas minúsculas (em função da prioridade que é
o pagamento da dívida fraudulenta aos banqueiros e o apoio ao
capital), que dirá então o sistema prisional, em que os
condenados são despejados como lixo, apenas para sumir da
vista da sociedade, sem qualquer perspectiva de recuperação.
Nos presídios estão sujeitos a todo tipo de
atrocidades, assassinatos, estupros, torturas, maus tratos,
superlotação, sem qualquer possibilidade de
ressocialização pelo trabalho e sem o devido isolamento
para líderes de facções e criminosos de alta
periculosidade. Desse modo, só podem sair piores do que
entraram.
-
Como a humanização do sistema prisional não está
entre as prioridades, é mais simples condenar todos os
“bandidos” automaticamente à morte, concedendo à
polícia e seus arautos na TV a prerrogativa de determinar quem
é bandido e quem não é. Essa categoria fictícia
do “bandido” com as características de um animal
irracional ultraviolento e irrecuperável é aplicada
sobre um segmento social muito real, os jovens negros da periferia. A
polícia brasileira é bastante seletiva e racista, e
sabe muito bem quem se encaixa nesse estereótipo televisivo de
bandido, quem deve ser abordado numa ronda noturna, quem não
se espera que possa estar dirigindo um carro um novo, etc. De outro
lado, a mídia é hipócrita o suficiente para
tratar os mortos da periferia, tanto criminosos de verdade quanto
trabalhadores mortos por criminosos e pela polícia, como
simples estatísticas. Os mortos da periferia não tem
nome, não tem rosto, não sentem dor, não tem
sentimentos, não tem sonhos, não têm entes
queridos que choram por eles. Já os mortos dos bairros
centrais, onde moram a pequena burguesia e a burguesia, esses sim tem
nome, sobrenome, fotografia, família para lançar
depoimentos emocionados na TV e até mesmo motivar passeatas
“pela paz”. Essa operação de mistificação
atribui a uma determinada classe social a condição de
sujeito, de protagonista, de ser considerado entre os que tem direito
à voz no espaço público, enquanto aos
trabalhadores e pobres em geral se nega a condição de
humano e se aceita por definição que possam morrer às
dúzias em chacinas anônimas, merecendo nada além
de notas de rodapé com o número de vítimas.
-
a naturalização do “bandido” deve ser combatida
ainda por outro motivo: não é simplesmente um problema
da natureza do indivíduo ou de caráter que o torna apto
a cometer crimes violentos, mas uma determinada situação
social, a miséria extrema que reina nas periferias. A falta de
empregos ou empregos extremamente precários e degradantes,
falta de moradia, de saneamento básico, de saúde
pública, de educação, de lazer e cultura, em que
vivem os moradores da periferia, fazem com que o crime se torne uma
opção razoável, mesmo que seja apenas para a
pequena minoria que efetivamente adere ao crime. Quando se situa a
causa da existência de criminosos na “natureza” violenta de
alguns indivíduos, isso é pretexto para deixar de
combater a miséria e sua causa, o sistema capitalista.
-
a miséria é a causa do crime, e o capitalismo é
a causa da miséria. Logo, o crime é parte do
capitalismo, não é um fenômeno exterior ou oposto
ao modo de produção capitalista. O capitalismo
estabelece o monopólio do uso da força (armas) pelo
Estado, através das forças armadas e da polícia.
Mas ao mesmo tempo, ao estabelecer a competição de
todos contra todos, e criar também um exército
industrial de reserva (cada vez mais permanente) de desempregados e
miseráveis, o capitalismo cria também a tentação
de prevalecer na competição por meio de atividades
banidas pelo Estado e que envolvem o uso da força. Essas
atividades criminosas são presididas pela mesma lógica
da competição empresarial capitalista. O objetivo de
todos os líderes criminosos é obter riqueza suficiente
para entrar no mundo dos negócios “legais” e ingressar na
burguesia. A ideologia dos soldados do crime ao seguir seus chefes é
obter status e prestígio, comprando carros e mulheres (como se
estas fossem mercadorias).
-
em relação à “ideologia policial” de
resolver as questões sociais por meio da força,
trata-se de uma tendência recorrente e perigosa em momentos de
crise. Na Grécia ex-policiais integram as milícias do
partido neonazista Aurora Dourada, que promete resolver os problemas
do país expulsando os imigrantes por meio da violência.
Na Alemanha, Hitler contou com os restos do aparato militar e
policial do antigo império e da República de Weimar,
convertidos em desordeiros, bem como lúmpens e elementos
desclassificados em geral, para recrutar as milícias nazistas
das SS e SA. O fato de que esse fenômeno esteja começando
a se repetir em países europeus periféricos, no bojo da
crise que é a mais séria desde a de 1930, é algo
que deve nos deixar em estado de alerta. As milícias
paramilitares do nazismo serviram como braço armado da
patronal alemã para dizimar as organizações dos
trabalhadores na base da violência (a divisão entre
comunistas e socialistas, por obra do stalinismo, contribuiu
decisivamente para isso, mas trata-se de outra história) nos
anos 1930 e abrir caminho para a subida de Hitler ao poder. Quando
dissemos que a mesma polícia hoje utilizada para “combater o
crime” será usada para combater os movimentos dos
trabalhadores, precisamos ter esses exemplos históricos
passados e atuais em perspectiva.
-
num país periférico como o Brasil, o Estado sucateado
pelo pagamento da dívida não consegue exercer a sua
função básica de monopólio do uso da
força, pois os agentes que emprega para isso acabam agindo por
conta própria e usando a força não para fins
públicos, mas para seus próprios fins particulares.
Tanto as forças armadas como as policiais são
sucateadas, sem instalações, sem equipamento, sem
treinamento, sem formação, sem recursos, com baixos
salários, etc. Dessa forma, os agentes diretamente envolvidos
no “combate ao crime”, os que atuam na linha de frente das
periferias acabam dando seu “jeitinho” para sobreviver. O Estado
praticamente empurra os policiais para as práticas ilegais.
Alguns fazem “bicos” e serviços “por fora” em empresas
de segurança (muitas vezes comandadas pelos próprios
oficiais e ex-oficiais da polícia) nos dias de folga. Ou o que
é mais grave, fazem acordos com as próprias
organizações criminosas, deixando de reprimí-las
em troca de uma parte de sua renda. Os periódicos surtos e
“ondas de violência” entre policiais e criminosos em geral
se referem a desacordos entre os dois setores sobre a porcentagem que
cabe a cada um na repartição dos lucros do tráfico.
Em casos extremos, como no Rio, grupos de ex-policiais formam
“milícias” que, sob o pretexto de combater o tráfico,
se tornam elas próprias “donas” dos morros e extorquem os
moradores em troca dos seus “serviços”, controlando todos
os pequenos negócios legais e ilegais no bairro. Ou seja, o
Estado brasileiro não tem controle sobre os seus homens
armados, que ao invés de combater o crime, tornam-se parte
dele. Para completar, os políticos e “jornalistas” que
manipulam o medo da população e advogam “mais
polícia” estão defendendo uma espécie de
“indústria do policiamento”, como os coronéis do
nordeste defendiam a “indústria da seca”, mais um pretexto
para transformar determinados territórios em verdadeiros
feudos sob controle de homens armados.
-
não são apenas os policiais na linha de frente do
“combate ao crime”, mas também as demais instituições
do Estado, como o judiciário, órgãos de
fiscalização, etc., que se associam aos negócios
criminosos. Juízes, advogados, promotores, fiscais, gerentes
de bancos, etc., todos eles recebem também a sua parte da
renda do crime. Sem os serviços dessa camada de
“especialistas”, as organizações e lideranças
criminosas não teriam como fazer a lavagem do seu dinheiro. Ao
mesmo tempo, os canais que permitem a lavagem de dinheiro do crime,
como as contas em paraísos fiscais, não podem jamais
ser fechados, pois são os mesmos que os próprios
grandes burgueses usam ordinariamente para remeter ilegalmente seu
dinheiro para o exterior. O combate efetivo à lavagem de
dinheiro e aos paraísos fiscais, seja para asfixiar as
organizações terroristas, seja para criminosos comuns,
jamais terá sucesso, pois trata-se dos mesmos mecanismos
usados por políticos corruptos, grandes empresários que
sonegam impostos, banqueiros e investidores, etc. Sem esses
mecanismos também ilegais e que movimentam grandes fortunas, o
capitalismo não funcionaria para os burgueses individuais,
portanto nenhum Estado nacional será capaz de extinguí-los
(mesmo porque se trata de redes mundializadas de circulação
de dinheiro), e eles seguirão sendo usados também pelas
organizações criminosas.
-
a “guerra às drogas” é uma versão para a
América Latina daquilo que se pratica no Oriente Médio
com o nome de “guerra ao terror”. É um pretexto para que o
exército estadunidense controle países como a Colômbia
e mais recentemente o México. Nesses países instalam-se
bases militares estadunidenses, de onde as tropas imperialistas podem
ter fácil acesso às riquezas do continente, como
petróleo, minérios, água potável,
biodiversidade, etc. Sob o pretexto da “guerra às drogas”,
o que se quer também é controlar os movimentos sociais
da região, que desde o início da década passada
tem sido uma força política importante.
-
o tráfico de drogas é o principal nicho das
organizações criminosas, aquele que obtém mais
lucro e do qual derivam os demais (tráfico de armas, que por
sua vez alimenta os assaltos a mão armada, sequestros, etc.).
Quando se fala em crime, em geral o que se quer dizer é
tráfico de drogas. Quando se fala em “onda de violência”,
o que se quer dizer é uma escalada no confronto entre a
polícia e as organizações do tráfico, o
setor mais organizado do crime. E quando se fala em tudo isso, é
muito comum falar simplesmente no “problema das drogas”. E com
isso se esconde o óbvio: o problema social da violência
e do crime só está relacionado às drogas porque
as drogas são consideradas ilegais. O problema não são
exatamente as drogas em si, mas o fato de que a sua comercialização
esteja sob controle de organizações criminosas. A
descriminalização do uso de drogas não acabaria
automaticamente com o crime, pois como dissemos, continuaria havendo
a miséria como causa fundamental das atividades criminosas
(embora seja muito razoável supor que diminuiria bastante).
Além disso, a descriminalização aumentaria
potencialmente o número de usuários viciados, com mais
encargos para o sistema de saúde. Ainda assim, na ponta do
lápis, a atual situação de proibição
das drogas gera muito mais prejuízos sociais do que a
descriminalização, com toda a violência associada
à guerra das organizações do tráfico com
a polícia e à guerra delas entre si, a opressão
sofrida de ambos os lados pela população da periferia,
etc. O número de vidas humanas destruídas por esse tipo
de violência é inaceitável, mas se torna
socialmente tolerável porque essas mortes são
invisibilizadas, devido ao mecanismo ideológico que discutimos
acima, de desumanização dos mortos periféricos,
o mesmo que só trata como vítimas os brancos de classe
média para cima.
-
as drogas atualmente legalizadas, como álcool e o tabaco
também são socialmente muito destrutivas. Basta lembrar
a quantidade de casos de câncer e outros problemas de saúde
causados pelo cigarro, ou a quantidade de acidentes automobilísticos,
com mortes, ferimentos, e prejuízos provocados pelo consumo de
álcool, ou ainda, os casos de violência doméstica
causados por embriaguez, etc. As indústrias de álcool e
tabaco deveriam ser pesadamente taxadas de modo a financiar o
tratamento dos problemas diretamente relacionados ao uso de seus
produtos.
-
ao longo da história da humanidade praticamente todas as
sociedades fizeram uso de substâncias que alteram o estado de
consciência, seja para fins de rituais religiosos, seja para a
simples obtenção de prazer. Apenas no século XX
algumas drogas foram proscritas na maioria dos países, como
maconha, ópio e cocaína, enquanto outras permaneceram
sendo consideradas legais, como o álcool e o tabaco. A maior
parte dessa proibição partiu dos Estados Unidos, por
motivos políticos, seja para reprimir os trabalhadores de
origem mexicana, seja para reprimir os movimentos contra a guerra do
Vietnã, seja para vigiar os países da América
Latina. De modo geral, a proibição do uso de drogas é
reforçada pelas religiões, que de resto querem reprimir
toda forma de prazer, como o sexo. A proibição do
consumo de drogas obedece a critérios políticos, não
técnicos. Ainda que o consumo de qualquer droga tenha efeitos
potencialmente nocivos para o usuário, a decisão de
usá-las ou não deve permanecer sendo uma escolha do
indivíduo, não do Estado. Nos casos em que o usuário
causa prejuízos a terceiros, como o motorista embriagado, ou
como o dependente químico que rouba para alimentar seu vício,
esse usuário deve ser devidamente responsabilizado pelas ações
que cometeu, não pelo consumo de drogas em si. Esses casos
devem ser vistos com a dimensão que realmente tem, de uma
minoria. Nem todo usuário de drogas se torna um viciado, assim
como nem todo usuário de álcool se torna um alcoólatra.
Não se pode confundir uso de drogas com abuso, não se
pode confundir usuário com viciado, ainda que algumas drogas
tenham maior poder de provocar dependência. E acima de tudo,
não se pode atribuir ao Estado o poder de legislar sobre o que
os indivíduos fazem para obter prazer para si.
-
é preciso considerar o fato de que muitos usuários,
seja de drogas hoje consideradas legais ou ilegais, somente se tornam
viciados porque o consumo da droga acaba sendo uma forma de escapar
da miséria subjetiva da sociedade capitalista. Não é
apenas a miséria material que causa sofrimento, mas também
a miséria espiritual, a falta de sentido, de realização,
de humanidade, de relações plenas, num mundo baseado na
lógica da competição e da mercadoria. O uso de
drogas muitas vezes é o refúgio contra essa realidade
bárbara. Apenas o fim do capitalismo, da exploração
e do trabalho alienado permitirá a construção de
relações humanas livres e um uso humano do tempo.
Consequentemente, o uso de drogas passará a ter menos esse
conteúdo dramático de alívio existencial e mais
o de uso recreativo.
Propostas
socialistas para a questão da violência
Retomamos
então a discussão apresentada no início quando
indicamos que o simples aumento do policiamento não irá
resolver o problema do crime e da violência. No caso
brasileiro, o limite a que se pode chegar com essa política de
mais policiamento é a um estado de terror nas periferias, sob
controle de agentes policiais extremamente violentos (e nem por isso
menos corruptos nem menos associados ao crime), que transmitam uma
falsa sensação de “tranquilidade” e “paz social”
por ocasião dos megaeventos esportivos.
Os
aspectos que levantamos acima em relação às
múltiplas dimensões do problema social do crime e da
violência colocam como soluções correspondentes
as seguintes propostas:
-
emprego, moradia e serviços públicos para todos os
trabalhadores;
-
educação, cultura e lazer para a juventude em todos os
bairros;
-
descriminalização do uso de drogas;
-
taxação do comércio de drogas, inclusive do
álcool e do tabaco, e vinculação da receita ao
tratamento de dependentes químicos;
-
redução de danos para dependentes, com narcossalas,
fornecimento de seringas, etc.
-
fim da internação compulsória para dependentes;
-
humanização dos presídios, com a construção
de novas unidades e a contratação de pessoal até
dar fim à superlotação, aos maus tratos e à
corrupção dos agentes carcerários e abrir a
possibilidade de ressocialização por meio de trabalho,
isolamento dos líderes de facções e criminosos
de alta periculosidade em presídios em outros estados;
-
combate à corrupção policial e judicial,
julgamento de policiais em tribunais civis, expulsão e prisão
de todos os corruptos e confisco de seus bens;
-
desmilitarização da PM, unificação das
polícias em uma única corporação civil,
com direito de sindicalização e eleição
dos comandantes e sob controle democrático da população
dos bairros;
-
fim da lavagem de dinheiro e repatriação de todo
dinheiro remetido ilegalmente para o exterior;
-
campanha contra a repressão aos movimentos sociais, pelo
direito de greve e de manifestação;
Boa
parte dessas medidas exigirão uma luta contra a lógica
do sistema capitalista como um todo, conforme assinalamos acima. Para
gerar emprego, moradia e serviços públicos de qualidade
para todos, seria preciso, por exemplo, inverter a prioridade do
orçamento público, que hoje está comprometido em
cerca de 50% com o pagamento de juros da dívida pública
aos banqueiros e especuladores. Para obter o não pagamento dos
juros, por sua vez, seria preciso enfrentar um dos setores mais
poderosos do capitalismo brasileiro e mundial, o mercado financeiro.
Seria preciso desenvolver uma luta contra o Estado e suas atuais
instituições, no contexto de uma luta que acabaria
inevitavelmente se colocando contra o capitalismo e projetando a
construção do socialismo. O mesmo se aplica a várias
das demais medidas, que devem ser compreendias como parte de um
programa anticapitalista e socialista.
Para
finalizar, por falar em banqueiros, como dizia Brecht, “o que é
o crime de roubar um banco comparado ao de fundar um?”
Daniel
M. Delfino
Novembro
2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário