No dia
31 de maio a polícia de Istambul, cidade localizada na parte
européia da Turquia, realizou uma violenta operação
de desocupação no parque Gezi, situado na região
da histórica praça Taksim, no centro da cidade. A
polícia expulsou manifestantes que protestavam contra a
derrubada do parque para construção de uma mesquita e
de um shopping center. Nos dias seguintes, o parque foi ocupado
novamente por uma manifestação muito maior e uma onda
de protestos se espalhou por toda a Turquia. Dezenas de millhares de
pessoas foram às ruas nas principais cidades, inclusive a
capital Ankara. Os manifestantes avançaram de uma simples
questão urbanistica, a manutençao do parque, para a
reivindicação da mudança do governo, pedindo a
renúncia do primeiro ministro Recep Tayip Erdogan.
Istambul
é uma das maiores cidades da Europa, com cerca de 15 milhoes
de habitantes, e também uma das mais antigas, portadora de
cultura e história riquíssima e multimilenar, já
tendo sido capital dos Impérios Bizantino e Otomano. A praça
Taksim contém monumentos a Mustafa Kemal Ataturk, lider
nacionalista que fundou a Turquia moderna após a queda do
Império Otomano, numa revolução que se concluiu
em 1923. O simbolismo dos acontecimentos é evidente, pois uma
das bandeiras de Ataturk contra o antigo governo Otomano foi
justamente o Estado laico, enquanto que uma das principais politicas
do atual primeiro ministro Erdogan é a islamização.
Sem alterar formalmente o caráter laico do Estado, Erdogan
introduziu elementos da religião islâmica na legislação,
como a restrição do consumo de bebidas alcóolicas,
a reafirmação da proibição do aborto e do
divórcio, a multiplicação de mesquitas em
detrimento de escolas laicas, etc.
Os
protestos de 2013 repudiam explicitamente a islamização,
mas também a política neoliberal de Erdogan e seu
Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP na sigla em turco).
Juntamente com uma mesquita, estava sendo prevista a construção
de um shopping center na área hoje ocupada pelo parque Gezi.
Há décadas os dirigentes buscam integrar o país
na União Européia e para isso o governo de Erdogan se
aplicava na realização de reformas, ou seja, ataques
aos trabalhadores, retirando direitos para atrair indústrias
ao país e transformar a Turquia numa plataforma de
exportações. Graças a essa política, o
PIB cresceu aceleradamente desde 2001, chegando a picos de 8% em 2010
e 2011, em plena crise mundial (dados de matéria da AFP,
11/06/2013). A Turquia é listada entre os grandes países
emergentes (como Brasil, China e outros), fazendo parte do G20. A
população do país é de 75 milhões
de habitantes, segundo o site do instituto de estatística
governamental (http://www.turkstat.gov.tr/PreTablo.do?alt_id=39).
A taxa de desemprego oficial é de 10,5% da população
economicamente ativa.
O
“sucesso” da economia turca deu ao AKP a força política
para minar o poder do Exército, autor de golpes de Estado em
1960, 1971, 1980 e 1997, destinados a preservar a herança do
velho nacionalismo turco (kemalismo). Oficiais kemalistas foram
afastados, o Exército perdeu influência política
e a ameaça dos golpes foi descartada. O AKP estava agora em
busca do atestado de eficiência econômica (neoliberal)
para garantir o ingresso na União Européia. Mas, no
meio do caminho havia um parque...
As
manifestações contra a reforma do parque Gezi
persistiram durante semanas, em mais de 70 cidades do país,
apesar da violenta repressão policial. Bombas de gás,
canhões d'água e balas de borracha mediram força
contra pedras e coquetéis molotov. Depois de verdadeiras
batalhas entre a polícia e manifestantes, o parque Gezi acabou
desocupado no dia 11 de junho. Registraram-se até o momento 3
mortes, mais de 5000 feridos e 3000 presos, e o centro de Istambul
foi transformado em praça de guerra. O primeiro ministro
reagiu de maneira extremamente arrogante durante todo o processo,
recusando-se a negociar e admitir que seu governo pudesse ser
contestado, com o argumento, típico da democracia
representativa, de que havia vencido as últimas três
eleições. Mesmo com a repressão e as ameaças,
as manifestações continuaram, sendo convocadas por uma
frente improvisada que reuniu desde partidos da oposição
burguesa até organizações da extrema esquerda,
grupos ambientalistas, centrais sindicais, grupos estudantis,
entidades culturais, etc., mobilizando amplas camadas da população.
A
repercussão extremamente negativa da repressão policial
e a continuidade dos protestos levaram o governo a anunciar na
quinta-feira dia 13 a possibilidade de realizar um referendo para
decidir sobre a reforma do parque Gezi, na esperança de
desmobilizar a população. Com isso, o governo estaria
entregando os anéis para não perder os dedos. A defesa
do parque contra os projetos da especulação
imobiliária, por mais que seja importante, reduziu-se a uma
questão simbólica, pois o que estava no fundo das
manifestações era uma ampla e generalizada insatisfação
da população contra os rumos do país. Era isso
que o governo Erdogan não podia admitir. A notícia do
referendo levou a uma desmobilização apenas parcial dos
setores que convocavam as manifestações. Os protestos
continuaram na semana seguinte, e qualquer que seja o desfecho, os
movimentos sociais saem desse embate com a confiança
revigorada e a certeza de que podem enfrentar o governo.
Esse
renascimento da força dos movimentos sociais levou
imediatamente a uma comparação com as lutas da
Primavera Arabe contra as ditaduras e com as lutas dos países
mediterrâneos como Grecia e Espanha contra as medidas de
austeridade da "Troika" (União Européia,
Banco Central Europeu e FMI). As comparações são
até certo ponto justificadas, pois a Turquia está
exatamente a meio caminho entre a Europa e o Oriente Médio e
compartilha as tensões desses dois mundos. Apesar de ser uma
estrela entre os ditos emergentes, a Turquia partilha os problemas de
todos os países periféricos, em que o preço a
ser pago pelo crescimento econômico é o aumento do
autoritarismo e da repressão.
A
repressão nos locais de trabalho, o autoritarismo das chefias,
o assédio moral, a intensificação do trabalho e
da exploração, necessários para a sobrevivência
do capitalismo em momento de crise, são paralelos ao
crescimento do conservadorismo e do autoritarismo em geral na
sociedade. O crescimento das políticas islamizantes na Turquia
pode ser comparado com o das seitas evangélicas no Brasil. Ao
mesmo tempo, o partido AKP de Erdogan servia como modelo para os
partidos religiosos que herdaram o poder após a Primavera
Árabe em países como Egito e Tunísia, com seu
conservadorismo discreto, seus ternos de executivo ao invés
dos turbantes, diferente da retórica inflamada de
fundamentalistas tradicionais, como os aiatolás radioativos do
Irã.
Com as
revoltas populares de 2013, o “modelo turco” de modernização
mostra que também tem pés de barro. A onda de protestos
na Turquia surpreendeu não apenas o arrogante Erdogan, mas o
mundo inteiro. Além de candidato a ingressar na União
Européia, a Turquia é também aliado tradicional
dos Estados Unidos desde a Guerra Fria. Há décadas o
governo pratica uma sangrenta repressão contra a minoria
kurda, que aspira por autodeterminação (herança
do nacionalismo turco, que já produziu o genocídio dos
armênios entre 1915 e 1917). Considerada uma fortaleza de
estabilidade, o país seria também a base para a
intervenção imperialista na vizinha Síria, em
situação de guerra civil há dois anos. Todas
essas políticas pró-União Européia e
Estados Unidos, amplamente impopulares, estão sendo também
desafiadas nas manifestações. Ou seja, os maifestantes
de 2013 repudiam não apenas a islamização de
Erdogan, mas também a velha herança nacionalista de
seus antigos adversários, os militares kemalistas.
Esse
exemplo recente vindo da Turquia mostra uma das características
da nova situação mundial inaugurada em 2011 justamente
pela Primavera Árabe e os novos movimentos de protesto como
Indignados e Ocupar, que é a impressionante continuidade dos
protestos, a sua persistência ano após ano, país
após país, uma surpresa após a outra (o que logo
mais não será tão surpreendente assim...), e a
retomada do internacionalismo sob uma nova roupagem, com os
movimentos de um país influenciando diretamente os outros,
sejam vizinhos ou não. A rebelião da juventude árabe,
européia e agora turca, que envolveu também setores da
classe trabalhadora, dá sinais de que não vai se
esgotar. Ao contrário, se transforma pouco a pouco numa só
rebelião mundial. Nos protestos contra o aumento da passagem
em São Paulo e outras cidades brasileiras, os manifestantes
gritavam: “Isso aqui vai virar uma Turquia!”
Enquanto
travamos nossas lutas aqui no Brasil, declaramos nossa solidariedade
à juventude, aos explorados e oprimidos na Turquia. Entendemos
que o referendo sobre o parque Gezi não passa de uma manobra
do governo para conter as manifestações. A luta deve
continuar por todas as reivindicações! Abaixo a
repressão policial! Pelo direito de luta e de manifestação!
Defendemos as lutas na Turquia, mas entendemos também que as
reivindicações não poderão ser atendidas
pelo atual Estado, comprometido com os interesses do capital e o
projeto da União Européia. Por isso, defendemos a
derrubada do governo por uma revolução socialista e a
formação de um novo tipo de poder, construído
pelos trabalhadores, pelos jovens e oprimidos, baseado em suas
organizações de luta. Viva a luta dos trabalhadores de
todo o mundo! Viva o socialismo!
Daniel M.
Delfino
Junho
2013
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