No mês
de outubro* de 2012 comemoram-se 95 anos da Revolução
Russa de 1917, a primeira revolução em que a classe
trabalhadora conseguiu tomar o poder e mantê-lo em um país
inteiro, com o objetivo de iniciar uma transição ao
socialismo. Os problemas que se seguiram nessa tentativa de
transição, e que acabariam resultando na derrota dos
objetivos da revolução, constituem um objeto de estudo
da maior importância neste início do século XXI,
quando as crises do capitalismo recolocam na agenda o debate sobre a
inviabilidade da permanência desse sistema e a necessidade da
construção de uma alternativa societária para
além do capital. O texto que apresentamos a seguir, longe de
pretender esgotar o estudo sobre a Revolução Russa,
constitui um simples e breve convite à reflexão e ao
debate sobre esse tema crucial, levantando alguns elementos
históricos e teóricos, pela impossibilidade de abordar
todos os aspectos de um processo tão rico.
A
Rússia antes da revolução
A Rússia
era no início do século XX um dos mais poderosos países
da Europa e ao mesmo tempo um dos mais atrasados. Poderoso pela
extensão do seu império, o maior do mundo, com mais de
20 milhões de km quadrados, fazendo fronteira com a Alemanha
num extremo e o Japão no outro, cerca de 130 milhões de
habitantes, e vastas riquezas naturais, como minérios,
florestas, terras férteis, etc. Atrasado pela sua configuração
econômica, social e política, com 90% de sua população
sendo camponesa e analfabeta e vivendo em situação
semifeudal, um regime político ainda absolutista centralizado
na figura do imperador (chamado czar), sem constituição,
nem parlamento ou liberdade de reunião e de expressão,
nem sequer separação entre Estado e igreja (ortodoxa),
que controlava a educação, e baseado na opressão
sobre dezenas de pequenas nacionalidades e etnias que compunham
praticamente metade da população do império.
No
centro dessas contradições estava uma pequena mas
concentrada classe operária, em cidades como a capital São
Petersburgo e Moscou, que se industrializavam aceleradamente. Esse
proletariado era extremamente explorado, com jornadas que chegavam a
14 hs diárias, salários de fome, moradias precárias
e falta de liberdade política e de organização.
Ao mesmo tempo, a pequena burguesia e a burguesia russas alcançavam
o nível cultural dos países europeus mais avançados,
produzindo gênios como os escritores Puchkin, Tolstoi,
Dostoiévski, o compositor Tchaikóvski, cientistas como
Mendelev.
A
oposição política tinha que ser clandestina e
sua tradição vinha desde o movimento “narodnik”,
(“populistas”, em russo), de meados do século XIX, que
pretendia fazer uma revolução com base na maioria
camponesa. O método dos narodniks era o de atentados
terroristas, que chegaram a assassinar o czar em 1881, mas nunca
conseguiram levantar os camponeses. Ao contrário, conseguiram
apenas endurecer a repressão, que era a mais feroz da Europa.
Em fins do século XIX começam a se organizar na Rússia
grupos anarquistas e marxistas. Surge também o partido
Socialista Revolucionário (SR), que apesar do nome, não
era marxista, e tinha base camponesa.
A
repressão não diferenciava os anarquistas e SRs, que
seguiam os métodos terroristas dos narodniks, com relação
aos marxistas, com seu paciente trabalho de organização
entre os operários: todos os grupos eram igualmente caçados
pela polícia. A entrada na militância trazia o risco
permanente de ser condenado à morte e a certeza absoluta de
passar inevitavelmente algum tempo na prisão, deportação
para a Sibéria ou exílio. Mesmo com essa caçada
implacável às lideranças, o movimento operário
russo era muito combativo e organizava fortes greves e manifestações,
que impunham vitórias parciais nas fábricas.
O
movimento socialista antes da revolução
Já
no início do movimento marxista russo destaca-se a liderança
de Lênin, que a partir da revista “Iskra”, em que publicou
seu célebre livro “Que fazer?”,
defende a formação de um partido marxista
revolucionário clandestino e centralizado para driblar a
repressão e ao mesmo tempo enraizar-se entre os operários.
A ala liderada por Lênin passou a ser conhecida como
“bolchevique”, que em russo quer dizer “maioria”, refletindo
a votação dos estatutos do partido socialista russo em
seu congresso de fundação (na época chamava-se
partido social-democrata, como seus congêneres na Europa), como
contraposição aos “mencheviques” (minoria), que
defendia um partido composto por militantes e simpatizantes sem
distinção e sem tarefas definidas. Anos depois, os
mencheviques se tornariam maioria, mas o nome se manteve, e as duas
alas acabaram formando partidos separados.
Também
se destacou a figura de Trotski, que presidiu o “soviet” de São
Petersburgo na revolução de 1905 (e não
pertencia a nenhuma das duas alas). A palavra soviet quer dizer
“conselho” e denomina os organismos formados por delegados
operários com mandatos revogáveis, eleitos por fábrica
ou por bairro para organizar uma greve geral, que se transformou em
insurreição. A revolução de 1905 foi o
“ensaio geral” para a revolução de 1917, tendo sido
deflagrada pela insatisfação da população
com as penúrias provocadas pela guerra contra o Japão
(1904-1905, com derrota da Rússia). A revolução
de 1905 foi derrotada, mas resultou em algumas conquistas
democráticas, como a eleição da Duma
(parlamento), ainda sem liberdade para os partidos operários.
De qualquer forma, nos anos seguintes a situação dos
operários e camponeses não melhorou em nada.
Em 1917,
a Rússia estava novamente em guerra, participando da I Guerra
Mundial (de 1914 a 1918) ao lado da França e Inglaterra contra
a Alemanha, a Austro-Hungria e a Turquia otomana. A guerra foi uma
grande derrota para o movimento socialista internacional. Os partidos
socialistas na Alemanha, França e Inglaterra, ao contrário
da Rússia, eram legalizados, organizavam milhões de
operários e assalariados (que já eram a maioria da
população nesses países) e conseguiam eleger
para o parlamento burguês bancadas minoritárias mas
ainda assim numerosas. Esses partidos socialistas estavam porém
adaptados a uma política reformista (acreditavam que se
poderia chegar ao socialismo por reformas graduais do capitalismo,
sem a necessidade de uma revolução), apesar da oposição
de minorias revolucionárias no seu interior.
O
reformismo provou sua inviabilidade quando os deputados socialistas
votaram a favor de suas respectivas burguesias nacionais no
parlamento de cada país para autorizar seus governos a travar
a guerra interimperialista. A votação dos créditos
de guerra determinou a falência da II Internacional (ou
Internacional Socialista, depois da I Internacional que foi dirigida
por Marx em meados do século XIX), que reunia os partidos
socialistas e se provou inútil no teste decisivo que era a
guerra. A política defendida pelos marxistas revolucionários
era de que, em caso de guerra entre as potências imperialistas,
cada partido socialista deveria lutar para derrubar o governo de seu
país, iniciar uma revolução socialista e parar a
guerra que matava milhões de trabalhadores dos dois lados.
Mesmo com a dissolução da II Internacional, aquela
minoria revolucionária permaneceu ativa durante a guerra e
seguiu aplicando a política marxista. Os bolcheviques eram
parte dessa minoria.
A
revolução de outubro
A
população russa sofria enormemente com a guerra:
calcula-se que 5 milhões de soldados morreram, desapareceram
ou foram aprisionados, de um total de 15 milhões que foram
mobilizados. Os operários e camponeses eram sobrecarregados
com a necessidade de trabalhar mais para sustentar o esforço
de guerra. O frio e as doenças campeavam, faltava pão
nas cidades e no início de 1917 começam a se alastrar
protestos contra a guerra e motins entre as tropas. Multiplicam-se as
greves e ressurgem os soviets. A novidade é que se formam
soviets de soldados e marinheiros, que destituem seus comandantes e
deliberam voltar para casa, abandonando o front. Formam-se também
soviets de camponeses, que confiscam as terras da nobreza e a
redistribuem entre os que a trabalham. Nesse clima, o regime czarista
não consegue se sustentar e renuncia em fevereiro. Forma-se um
governo provisório da burguesia, com a participação
minoritária de SRs e mencheviques (é a chamada
“revolução de fevereiro”).
Em abril
de 1917, Lênin, que estava exilado, retorna à Rússia
e escreve as famosas “Teses de abril”, em que expressava a
posição de que o governo provisório era ainda um
governo burguês servil ao imperialismo anglo-francês e
que jamais concederia as reivindicações populares: pão,
paz e terra. Por isso, os bolcheviques, que davam apoio crítico
ao governo provisório, deveriam retirar esse apoio, passar à
oposição, organizar os trabalhadores e preparar a
tomada do poder. Lênin convence o partido bolchevique a adotar
sua política. Sucedem-se algumas idas e vindas, que incluíram
uma fracassada tentativa dos operários de tomar o poder em
julho e uma bem sucedida defesa contra o golpe de estado reacionário
do general Kornilov. Nesse meio tempo os militantes bolcheviques se
tornam maioria nos soviets.
Instala-se
uma situação de “duplo poder”, em que o governo
provisório formalmente ainda existe, mas os soviets exercem
uma autoridade cada vez maior. A tomada do poder acaba acontecendo em
outubro: em nome de todos os soviets de operários, soldados e
camponeses (que estavam reunidos em congresso na capital), uma
milícia vermelha ocupa o Palácio de Inverno, em que se
reunia o governo provisório, e instala o governo dos
comissários do povo, sob a chefia de Lênin e Trotsky
(cuja organização havia se integrado ao partido
bolchevique). É a revolução de outubro.
Nesse
primeiro momento da revolução praticamente não
houve violência, pois a burguesia e os representantes do antigo
regime não apresentaram quase nenhuma resistência.
Inclusive, aqueles que pegaram em armas foram liberados com a
promessa de não lutarem contra o governo soviético.
Esse excesso de condescendência custaria caro: esses mesmos
militares reacionários se tornariam mais tarde os
organizadores do exército branco, reunindo restos do antigo
exército czarista para lutar contra a revolução.
A guerra civil entre os brancos e vermelhos, que se arrastaria até
1921, seria tão ou mais penosa para o povo russo do que a I
Guerra Mundial.
A
revolução no cenário mundial
A
revolução de outubro abriu um breve período de
experimentação social e política que foi o mais
avançado que a humanidade já conheceu. O partido
bolchevique passa de alguns milhares de militantes clandestinos a
mais de um milhão de membros. O Estado e as instituições
herdadas do czarismo são dissolvidas e formam-se as
instituições de um Estado operário de transição
ao socialismo. Milhões de operários e camponeses em
todo o país participavam ativamente da vida política,
nas assembleias, nos soviets, nos sindicatos, nas administrações
locais, nos batalhões do exército vermelho, nos
diversos conselhos e instituições operárias
criados para gerir a saúde, a educação, os
transportes, as fábricas, etc., e administrar coletivamente
cada aspecto da vida social. Avança-se enormemente na
emancipação feminina com uma legislação
que autoriza o divórcio e a liberdade de orientação
sexual e a criação de refeitórios e lavanderias
públicos. Até mesmo a cultura floresceu, com destaques
para as artes gráficas, o cinema de Eisenstein, a poesia de
Maiakovski, a pedagogia de Vigotsky, o direito com Pachukanis, etc.
Entretanto,
esse período de experimentação foi asfixiado
pelas dificuldades extremas da guerra civil e pelo peso do atraso
russo. A burguesia russa e remanescentes do antigo regime não
aceitaram a tomada do poder e montaram os exércitos brancos.
Da mesma forma as potências imperialistas, com o fim da guerra
em 1918, rapidamente deslocam suas tropas para esmagar o regime
soviético. Pretendia-se afogar a revolução em
sangue, como foi feito com a Comuna de Paris em 1871. Mesmo porque, o
exemplo russo estava se espalhando: motins das tropas e greves gerais
aconteciam em diversos países da Europa, ocupações
de fábricas se espalham na Itália, revoluções
são desencadeadas na Alemanha, Hungria, Turquia.
Isso
explica a obsessão das burguesias em esmagar a revolução
russa. Ao mesmo tempo, explica o prestígio que a revolução
russa adquiriu no mundo inteiro. Em dezenas de países criam-se
partidos comunistas filiados à III Internacional (fundada
pelos bolcheviques em 1919), resultado do entusiasmo de milhares de
ativistas e militantes de diversas correntes e de milhões de
trabalhadores pelo exemplo russo (além disso, os crimes
cometidos mais tarde pelo stalinismo em nome do socialismo só
seriam conhecidos mundialmente na década de 1950).
Na
verdade, os revolucionários russos compreendiam a sua
atividade como parte da luta pela revolução
internacional. Desde Marx sabia-se que a transição ao
socialismo dependeria das forças produtivas dos países
mais desenvolvidos. Por isso, a revolução socialista,
mesmo que começasse nos países atrasados, deveria
abranger o mundo inteiro, para viabilizar a socialização
das forças produtivas dos países mais desenvovidos, ou
seja, socializar a riqueza e não a miséria. A tarefa
dos revolucionários que atuavam nos “elos frágeis”
da cadeia do capital (como Lênin definia a Rússia) era
tomar o poder para constituir um ponto de apoio para a revolução
nos países avançados. Durante os anos mais brutais da
guerra civil, os bolcheviques entendiam que deveriam se manter no
poder, à espera da ajuda que viria da revolução
na Europa, especificamente na Alemanha, em que se concentrava o
proletariado mais numeroso e politizado do mundo. Tragicamente, a
revolução nesses países não aconteceu e
os levantes que se estenderam até o início da década
de 1920 foram derrotados.
A
burocratização e o stalinismo
A
revolução russa venceu a guerra e a intervenção
estrangeira, cujas últimas tropas foram expulsas em 1922, mas
permaneceu isolada, sozinha contra o mundo. Calcula-se que os
combates da guerra mundial e da guerra civil revolucionária
subseqüente tenham custado a vida de 14 milhões de
pessoas. Outros 17 milhões morreram de fome, frio e doenças.
Houve até casos de canibalismo. A população de
São Petersburgo, Moscou (para onde se transferiu a capital) e
das grandes cidades caiu pela metade. Os operários foram
reduzidos a menos de 200 mil. A produção industrial
caiu a cerca de 15% do que era em 1913, último ano antes da
guerra. O PIB do país perdeu 60% do seu valor.
A
economia foi virtualmente paralisada, os camponeses se recusavam a
vender alimentos para as cidades, que por sua vez não tinha
produtos para trocar com o campo. O governo soviético foi
forçado a formar batalhões para confiscar o trigo dos
camponeses. Os trens que levavam mantimentos para as cidades eram
assaltados. Bandos armados roubavam e matavam sem qualquer controle
em todas as regiões do país, ora em nome dos brancos,
ora em nome dos vermelhos. Demorou anos para que se restabelecesse
uma estabilidade mínima.
Nessas
condições extremas, as experiências socialistas
iniciais se transformaram em socialização da miséria.
A reconstrução do país foi extremamente difícil,
com a produção assim paralisada, e a ausência de
comércio exterior (demoraria anos para que outros países
aceitassem fazer comércio com a Rússia, agora chamada
de União das Repúblicas Socialistas Soviéticas –
URSS). Não havia técnicos, engenheiros, médicos,
advogados, administradores, professores, cientistas, ou restaram
pouquíssimos, pois as camadas médias intelectualizadas,
a pequena burguesia e a burguesia, se dividiu entre os que fugiram do
país, os que se engajaram na guerra civil ao lado dos brancos
(e foram mortos) e os que se opunham e sabotavam o regime. Aquela
vanguarda de operários e camponeses que participavam dos
soviets no início da revolução ou foi morta na
guerra civil ou foi deslocada para administrar as fábricas, os
serviços públicos, as prefeituras locais, o exército
vermelho. Com isso, as experiências democráticas
iniciais cessaram, já que não havia mais base social.
Quando o
país começa a reconstruir sua indústria, uma
nova classe operária é formada, composta por
trabalhadores recém-chegados do campo, sem a experiência
da geração que vinha de 1905 e tinha feito a revolução
em 1917. Ao mesmo tempo, uma camada de funcionários do antigo
regime, aventureiros e oportunistas de toda a espécie, sem
qualquer identificação com o marxismo e a militância
revolucionária, começa a ingressar no partido. O
partido bolchevique assume todas as funções do Estado,
e aceita o ingresso de qualquer pessoa minimamente letrada, pois num
país de maioria analfabeta, era preciso fazer com que as
coisas funcionassem minimamente. Esses novos administradores
“bolcheviques”, por sua vez, exigem privilégios em relação
aos operários, diferenciando-se socialmente da classe
trabalhadora.
Essa
camada de administradores privilegiados, que misturava restos
operários exauridos pela revolução e a guerra,
restos da pequena burguesia e da burguesia, restos do aparato do
Estado czarista, torna-se o embrião de uma casta que viria a
ser chamada de “burocracia”. Aos poucos a burocracia se torna
maioria no próprio partido bolchevique. Com a morte de Lênin
em 1924 (já estava afastado por doença desde 1922), o
representante da burocracia, Stalin, vence a disputa contra Trotsky,
que representava o setor operário e revolucionário que
havia se tornado minoritário. Stalin se torna o dirigente
máximo do partido e do Estado soviético, que de Estado
operário havia se convertido em Estado burocrático com
restos proletários. A ditadura do proletariado se transforma
em ditadura sobre o proletariado.
O fim
da democracia soviética
As
conquistas democráticas da revolução vão
se fechando uma a uma. Primeiro, durante a guerra civil, os demais
partidos, como os SRs, mencheviques e anarquistas, cuja maioria
apoiava os exércitos brancos da burguesia, foram proibidos de
funcionar, mesmo a sua fração minoritária que
aceitava o regime. Depois, no interior do próprio partido
bolchevique, foram proibidos as tendências e frações,
como a Oposição Operária. Com isso, o partido
substituiu a classe trabalhadora na tomada de decisões. Ao
mesmo tempo, os dirigentes substituiram o partido e sua militância,
tomando todas as decisões na cúpula do comitê
central, sem qualquer tipo de controle democrático. Essas
medidas foram tomadas ainda com Lênin e Trotsky no comando, e
eram entendidas como provisórias, em função do
estado de emergência da guerra civil e da luta contra a
intervenção estrangeira, que exigia decisões
rápidas. A intenção dos revolucionnários
era de que as medidas democráticas fossem restabelecidas
assim que possível, o que acabou não acontecendo. Mesmo
porque, não havia base social para os organismos de
autodeterminação operária, como os soviets, já
que os operários tinham se engajado na guerra e na
reconstrução do estado soviético.
As
medidas provisórias se tornaram permanentes e foram bastante
convenientes para a burocracia depois que esta assume o controle do
partido. Por mais que a Oposição de Esquerda liderada
por Trotsky lutasse para manter a política revolucionária,
não havia mais base social, pois a nova classe operária
era iletrada, inexperiente, despolitizada, incapaz de lutar pela
volta da democracia operária. O fenômeno do stalinismo,
corrente política que representa os interesses da burocracia,
não se explica portanto apenas pela traição de
um grupo de dirigentes burocratizados, mas por um processo social de
exaustão da classe operária russa. A única
esperança de regeneração da revolução
russa seria a revolução nos países avançados,
que não aconteceu.
Pelo
contrário, o stalinismo assumiu o controle da III
Internacional e dos partidos comunistas do mundo inteiro. A URSS se
tornou “modelo” de socialismo, o que era bastante natural, dado o
prestígio do partido bolchevique sobre os revolucionários
do mundo inteiro. Mas ao invés de produzir novas revoluções,
a política stalinista produz derrotas trágicas, como na
Alemanha em 1923 e na China em 1927, e outras nas décadas
seguintes. Basta dizer que a miopia política da III
Internacional, que considerava o antigo partido socialista alemão
tão inimigo quanto o nazismo, abriu caminho para a subida ao
poder de Hitler. Abandonando o marxismo revolucionário, o
stalinismo defende a possibilidade do “socialismo em um só
país”, a URSS, ignorando o atraso das forças
produtivas. Depois de uma experiência de economia de mercado
com controle estatal de 1921 a 1928, passa-se à supressão
do mercado, à coletivização forçada do
campo e à industrialização acelerada sob
planificação centralizada e autoritária da
burocracia.
Essa
política levou a uma desorganização total da
economia, com milhões de mortos pela fome, outros milhões
mortos pela repressão estatal e milhões submetidos a
trabalhos forçados em campos de concentração.
Mas para o mundo exterior, a URSS parecia um modelo de sucesso na
década de 1930, já que se industrializava rapidamente,
enquanto o mundo capitalista passava pela pior crise da sua história,
a Grande Depressão detonada pela queda da bolsa estadunidense
em 1929 e que se arrastaria pela década de 1930.
Além
de impor uma exploração brutal sobre a classe operária,
o regime da burocracia perseguia qualquer tipo de oposição
política por meio do terror de Estado. A Oposição
de Esquerda foi banida, seus dirigentes executados, presos, exilados
ou forçados a se retratar e colaborar com a burocracia.
Trotsky foi forçado a exilar-se em 1928 e a partir do exterior
desenvolveu uma vastíssima obra de crítica da
burocratização e a serviço da organização
de frações militantes de oposição ao
stalinismo no movimento comunista internacional, concretizando-se na
fundação da IV Internacional em 1938.
Mesmo
tendo conseguido silenciar totalmente a oposição
interna, o stalinismo não descansou enquanto não
extinguiu todos os símbolos vivos da revolução.
Montam-se os infames “processos de Moscou”, em que os
remanescentes da antiga direção bolchevique, mesmo
aqueles que já colaboravam com Stalin, foram acusados de serem
agentes do imperialismo e executados. Trotsky, que tinha se refugiado
no México, foi assassinado por um agente da polícia
secreta stalinista em 1940.
Problemas
do “modelo” soviético
A
necessidade de silenciar a oposição não era
produto apenas da paranóia de Stalin e seu medo da liderança
de Trotsky. Era resultado do fato de que na base social da própria
URSS o descontentamento era muito grande. Os trabalhadores russos
haviam feito a revolução para trabalhar menos e
melhorar suas condições de vida. O regime exigia que
trabalhassem mais e a vida era pior. Não era possível
fazer greves nem se organizar coletivamente. A burocracia controlava
implacavelmente todos os espaços públicos. Com isso, a
única forma de protesto que restava aos trabalhadores era a
“sabotagem” do trabalho, o descuido, a lentidão, o
desleixo. Contra esse fenômeno, a burocracia estimulava o
“stakhanovismo”, a imposição de metas individuais
impossíveis de serem alcançadas por todos, mas que
resultavam em premiações para os que excepcionalmente
as atingiam.
A
polícia secreta (GPU, depois NKVD, depois KGB) estava por toda
parte e contava com mais de 2 milhões de agentes.
Estimulava-se a denúncia e a delação dos
suspeitos de “crimes ideológicos”, nome que se dava para
qualquer manifestação de descontentamento, qualquer
murmúrio nos corredores. As artes, a cultura em geral e até
a ciência foram reprimidos brutalmente. Com isso, o “socialismo
real” ou “socialismo realmente existente” da URSS (por
contraposição ao socialismo que os marxistas
revolucionários opostos ao stalinismo defendiam) se tornou
sinônimo de censura, ditadura, partido único, culto da
personalidade do líder, polícia secreta, terror de
estado, medo e delação. A burguesia faria (e faz até
hoje) uma vasta campanha de propaganda via mídia, academia,
igrejas, etc., para identificar o socialismo com as desgraças
que aconteceram na URSS sob regime stalinista. Configura-se uma
verdadeira contra-revolução burocrática, que
expropria as conquistas operárias da revolução e
estabelece um novo regime de exploração. O Estado
soviético perde seus últimos restos proletários
e se torna puramente burocrático.
O
“modelo” soviético se espalhou para diversos países
no pós-II Guerra, no leste europeu (Alemanha Oriental,
Polônia, Tchecoslováquia, Hungria, Romênia,
Bulgária) e em outros continentes, e mesmo naqueles que
romperam com o controle direto do stalinismo (China, Cuba, Vietnã,
Coréia do Norte, Iugoslávia, Albânia) o sistema
burocrático era o mesmo.
Com
todas as perdas da I Guerra Mundial, da guerra civil revolucionária,
do terror e das irracionalidades da planificação
stalinista, da II Guerra Mundial, ainda assim, 40 anos depois da
revolução, a URSS estava na frente dos Estados Unnidos
na corrida espacial, lançando o primeiro satélite em
1957 e o primeiro astronauta em 1961. Entretanto, em longo prazo,
prevalece a tendência à estagnação e ao
retrocesso. O sistema burocrático de planificação
centralizada era inviável em longo prazo. O próprio
tamanho da casta burocrática era insustentável: para
controlar os trabalhadores, o aparato de supervisores, chefes de
seção, gerentes, diretores, funcionários do
Estado, do exército, da KGB, do partido e seus dirigentes,
chegou a contar com mais de 10 milhões de pessoas.
A
ineficiência da economia burocraticamente planificada era
gritante. Para ficarmos em apenas um exemplo das muitas
irracionalidades, a produção de tratores era medida em
toneladas. Assim, as fábricas montavam tratores mais pesados,
para cumprir a meta de uma certa quantidade de toneladas de tratores,
mas esses tratores superpesados eram obviamente imprestáveis
na lavoura... Por mais que a expropriação da burguesia
e o fim da anarquia do mercado capitalista tenha resultado em
conquistas notáveis, o modo burocrático como a
sociedade passou a ser gerida faria com que as conquistas se
esgotassem e logo se materializasse um retrocesso. Essa ineficiência
produtiva ameaçava a prórpia sobrevivência da
sociedade, seja por não poder fornecer os itens de consumo
básicos para a maioria da população (para não
falar de concorrer com o consumismo capitalista), seja para manter a
dianteira na corrida tecnológica e armamentista (os Estados
Unidos tomaram a dianteira e chegaram na Lua em 1969). A ineficiência
burocrática só deixava duas opções
possíveis para seus dirigentes: o retorno ao mercado (cujos
primeiros ensaios datam já da década de 1960) ou o
retorno da democracia operária dos primeiros anos da
revolução.
A
primeira opção era inevitável para a burocracia,
por dois motivos: primeiro, a pressão da economia mundial, em
que prevalecia o mercado e a lei do valor, se impunha sobre as
economias burocraticamente planificadas, ao expor a sua ineficiência
na comparação com a produtividade dos países
capitalistas desenvolvidos; e segundo, o retorno da democracia
operária significaria a liquidação da própria
burocracia enquanto camada dirigente, que seria substituída
pelos trabalhadores e seus organismos de autodeterminação.
Assim, a burocracia preferiu restaurar o capitalismo, convertendo-se
lentamente em burguesia, num processo que se consumaria na década
de 1980.
A lição
fundamental é de que, sem a democracia operária, a
elevação da consciência dos trabalhadores, a
democracia direta, o sistema de conselhos de delegados eleitos pela
base e com mandatos revogáveis, o controle operário da
produção, a democratização de todas as
instâncias da vida social, o estabelecimento de novas relações
sociais horizontais e não-hierárquicas, não é
possível nenhuma transição ao socialismo.
Epílogo...
A
queda do muro de Berlim em 1989 e da URSS em 1991 foram comemorados
pela burguesia do mundo inteiro como “fim do socialismo”, ou
mesmo “fim da história”, pois foi tomada como uma
demonstração da vitória do capitalismo. A queda
dos estados burocráticos virou a balança a favor do
programa neoliberal e abriu caminho para uma ofensiva política
contra a classe trabalhadora, com ataques sobre os direitos
trabalhistas e sociais, privatizações,
desregulamentação, abertura dos mercados, especulação
financeira, etc. Essa ofensiva durou pelo menos duas décadas e
no seu início foi embalada no discurso da “globalização”,
apresentada como uma promessa de prosperidade para toda a humanidade
através da liberdade de mercado e da democracia (burguesa). A
ofensiva foi também ideológica, com filósofos
escrevendo sobre a “morte do homem”, “morte do sujeito”,
“morte da razão”, instalando o clima do pós-modernismo,
e sociólogos falando sobre o “fim da classe trabalhadora”,
“sociedade pós-industrial”, “sociedade do conhecimento”,
“aldeia global” e outras bobagens.
A
base material para a expansão neoliberal foi a incorporação
das sociedades em que a burguesia havia sido expropriada, como as do
leste europeu, a URSS, China, Vietnã, etc., em que vivia
praticamente um terço da humanidade (Cuba é a última
candidata a entrar nessa trágica lista pelas mãos da
burocracia castrista), que retornaram ao mercado mundial como países
capitalistas. A entrada de centenas de milhões de
trabalhadores no circuito da exploração capitalista na
condição de mão de obra barata provocou um
terremoto no mercado mundial de força de trabalho, forçando
a queda dos salários e direitos trabalhistas no mundo inteiro.
Esse processo de rebaixamento das condições de vida dos
trabalhadores foi também facilitado pela retirada dos partidos
e organizações que ao menos nominalmente representavam
a classe operária, os quais, sob o pretexto de que o projeto
socialista estava “derrotado” e o capitalismo era o “modelo
vencedor”, deixaram de defender os trabalhadores e de lutar por
reformas a seu favor, passando alegremente para a administração
do capitalismo. Exemplo acabado desse processo foi a trajetória
do PT e de Lula no Brasil.
…
ou recomeço?
Ao
entrarmos na segunda década do século XXI, o
capitalismo atravessa uma das piores crises de sua história.
As promessas da “globalização” neoliberal se
converteram em aumento da instabilidade, das guerras, do desemprego,
da miséria, das doenças, da fome, da violência,
da destruição ambiental. A crise econômica
iniciada em 2008 prossegue sem solução e demonstra que,
mais do que uma alternância linear de crises e períodos
de prosperidade, vivemos na verdade um período de crise
estrutural do capitalismo, no qual as crises econômicas são
cada vez mais profundas e duradouras, e os períodos de
crescimento são cada vez mais breves e localizados em alguns
países e regiões.
As
“soluções” utilizadas pela burguesia para
administrar a crise num determinado momento (entrega do dinheiro do
Estado aos bancos e instituições financeiras) trazem um
alívio imediato mas tornam-se a causa de novas recaídas
na crise no momento seguinte (explosão do endividamento
público nos Estados Unidos e na zona do euro). Isso demonstra
que não existe solução definitiva da crise do
ponto de vista da burguesia, a não ser por meio de uma
destruição de recursos e vidas humanas, como foi feito
nas guerras mundiais do passado, que abriram caminho para a renovação
do capitalismo (até que algumas décadas depois
sobreviesse uma nova e estrutural crise...). Enquanto não
apela para uma guerra mundial, a burguesia vai dando sobrevida ao
sistema por meio do ataque às condições de vida
da classe trabalhadora, impondo demissões, rebaixamento de
salários, corte de direitos e benefícios, redução
dos gastos sociais em saúde, educação, moradia,
etc.
Entretanto,
as décadas de derrota e prostração da classe
trabalhadora começam a ficar para trás. Os
trabalhadores e os povos do mundo inteiro não estão
apenas assistindo passivamente aos ataques da burguesia, ao aumento
do desemprego, da carestia, da fome e da miséria: estão
reagindo por meio de greves, mobilizações,
manifestações, protestos, ocupações, numa
escala que não se via há muitas décadas e com
amplitude mundial. A maior parte desses movimentos ainda não
tem muita clareza a respeito da natureza das tarefas que estão
colocadas, voltando-se contra os governantes (como os odiados e
corruptos ditadores derrubados pela “Primavera Árabe”) ou
contra a “ganância' dos banqueiros (caso dos “indignados”,
“Ocupar Wall Street” e semelhantes), ou ainda, desencadeando
greves gerais com caráter de puro protesto.
Os
movimentos voltam-se para aspectos parciais do capitalismo, não
contra o sistema como um todo. A única solução
para as crises capitalistas, do ponto de vista da humanidade, é
a destruição do capitalismo por meio de uma revolução
socialista mundial. Para que isso aconteça, será
indispensável a intervenção da classe
trabalhadora (a classe que controla o intercâmbio do homem com
a natureza, que terá condições de reorganizar a
produção de forma racional em benefício da
humanidade), por meio de seus organismos de luta e autodeterminação.
E também por meio da ação de organizações
revolucionárias que tenham a clareza programática da
necessidade de tomar o poder, destruir o Estado burguês,
socializar os meios de produção sob controle dos
trabalhadores e estabelecer o regime da democracia operária.
Essas são as lições da Revolução
Russa para o século XXI. O Espaço Socialista se coloca
como instrumento a serviço da construção de uma
organização revolucionária dedicada a
desenvolver as tarefas da revolução socialista no
Brasil.
Bibliografia
As
principais obras de referência sobre a Revolução
Russa são “10 dias que abalaram o mundo”, do jornalista e
socialista estadunidense John Reed, “O ano um da Revolução
Russa”, de Victor Serge (militante anarquista que aderiu ao partido
bolchevique e depois à Oposição de Esquerda) e
as obras de Trotsky como a “História da Revolução
Russa”, “A revolução traída”, “Lições
de outubro”, entre outras. O Espaço Socialista publicou em
2007 no número zero da revista Primavera Vermelha uma série
de artigos sobre a Revolução Russa, disponíveis
na internet
(http://www.espacosocialista.org/sites/default/files/REVISTA0.pdf).
* a
Rússia seguia o calendário juliano, que tinha 13 dias
de atraso em relação ao calendário gregoriano,
de modo que a data da tomada do poder no dia 25 de outubro
correspondia a novembro no ocidente; mesmo assim, a Revolução
Russa ficou universalmente conhecida como “Revolução
de Outubro”.
Daniel M.
Delfino
Outubro
2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário