7.11.15

Crise e corrupção na FIFA - Reflexões sobre o futebol na era da sua mercantilização - parte 1



O mundo do futebol entrou em polvorosa no mês de junho com as prisões de vários integrantes do Comitê Executivo da FIFA (entre eles o ex-presidente da CBF, José Maria Marin), às vésperas do Congresso mundial da entidade. O Congresso, reunido com toda a pompa na sede da FIFA, em Zurique, na Suíça, reelegeria o então presidente, Sepp Blatter, para mais um mandato. No entanto, uma semana depois de eleito, Blatter renunciou, e nova eleição foi apontada para escolher o presidente da entidade que comanda o futebol mundial.
As prisões foram efetuadas pela Interpol em obediência a um mandado do FBI. A polícia federal estadunidense investiga a corrupção na FIFA há algum tempo, e entre outros casos, reuniu provas de que os membros do Comitê Executivo receberam propina de determinadas empresas para lhes vender os direitos de transmissões de competições como a Copa América e competições nacionais, como a Copa do Brasil. Também há a suspeita de que receberam propinas para votar nas candidaturas da Rússia e do Qatar, escolhidas para sede das Copas do Mundo de 2018 e 2022, respectivamente (este caso está sendo investigado diretamente pela polícia suíça). Ambas as escolhas foram bastante criticadas na época em que foram anunciadas, em 2010, seja por haver outros concorrentes em muito melhores condições técnicas de sediar uma Copa, como a Inglaterra, ou seja pela quase total ausência de tradição no mundo do futebol, condição especialmente gritante no caso do Qatar.
As investigações do FBI ainda não atingiram o próprio Blatter, mas o ex-homem forte da FIFA preferiu sair de cena antes que o escândalo o alcançasse mais diretamente. Um dos nomes cotados para suceder Blatter é seu ferrenho opositor e presidente da UEFA (Confederação Europeia de Futebol), o ex-craque francês Michel Platini. No Brasil, José Maria Marin acabava de ser substituído por Marco Polo Del Nero na presidência da CBF. Por via das dúvidas, Del Nero se retirou do Congresso da FIFA ainda antes do encerramento. Em relação a Marin, os fatos que motivaram sua prisão aconteceram quando ainda era vice presidente, atrás do todo poderoso Ricardo Teixeira, que comandou a CBF por mais de 20 anos, e renunciou ao cargo às vésperas da Copa do Mundo de 2014 (mais ou menos como faria Blatter).

O “coronelismo” no futebol
A FIFA é uma entidade privada, já que não é subordinada a nenhum governo ou organismo internacional. Ao contrário, a FIFA costuma se gabar de ter mais países filiados do que a ONU (209 contra 193, na última contagem). E em muitos casos, tem poder superior ao de alguns governos, impondo as suas condições para a realização da Copa do Mundo, como fez com o Brasil. De qualquer maneira, em termos jurídicos, é uma entidade privada, sem fins lucrativos. A FIFA não possui proprietários privados, pois seus dirigentes são eleitos pelas federações nacionais e continentais. Entretanto, o futebol é um negócio muito lucrativo, e a FIFA também se beneficia dele. Como uma empresa, a FIFA vende um produto, a Copa do Mundo de seleções nacionais de futebol, que é patrocinada por grandes empresas, que pagam fortunas para aparecerem nas transmissões dos jogos, que também custam uma fortuna às emissoras. A Copa de 2014 custou US$ 4 bilhões ao Brasil, e rendeu US$ 2 bilhões para a FIFA.
Uma vez que a própria FIFA não é uma empresa, portanto seu lucro não é destinado a proprietários privados, o que acaba acontecendo é que uma parte desse lucro acaba sendo ilicitamente embolsado pelos gestores eleitos, como Blatter e Marin. A investigação do FBI diz respeito a US$ 150 milhões que teriam sido pagos em suborno a dirigentes para que escolhessem determinados parceiros de patrocínio e transmissões, em detrimento de outros. Trata-se de crimes contra a concorrência econômica. Esses gestores da FIFA, como dissemos, são eleitos por representantes das federações nacionais. Em cada federação nacional, por sua vez, encontramos figuras como Marin e Ricardo Teixeira, que ascenderam ao comando da entidade sem nenhuma história relevante como dirigentes de futebol.
Ricardo Teixeira era simplesmente genro de João Havelange, antecessor e padrinho de Blatter na presidência da FIFA. José Maria Marin era integrante do partido da ditadura militar, a ARENA, tendo sido vereador em São Paulo e governador em exercício entre 1982 e 1983, como vice de Paulo Maluf. Em 1975, ainda vereador, fez um discurso contra a TV Cultura, por conta da linha crítica ao regime que lá aparecia, e 15 dias depois o jornalista Vladimir Herzog apareceria morto no DOPS.
Para chegar ao comando das federações nacionais como a CBF, essas figuras são eleitas pelos presidentes de federações estaduais, que por sua vez são eleitos por presidentes dos clubes, que por sua vez são eleitos por grupos restritos de conselheiros ou sócios especiais. Em outras palavras, uma estrutura nebulosa e antidemocrática na sua essência. O futebol, o esporte mais popular e democrático do mundo, está sob comando das figuras mais retrógradas, corruptas, autoritárias, incompetentes, medíocres que se possa encontrar.
Os chamados “cartolas” que dirigem o futebol são uma espécie de remanescentes dos “coronéis” que mandavam na política de regiões atrasadas. Ambos vivem de uma rede de troca de favores, de compadrio, de toma lá dá cá. Elegem-se uns aos outros, trocando favores por votos, numa rede de relacionamentos obscura, que nada têm a ver com os objetivos das entidades e o próprio futebol em si. Nesse sentido, a pseudo “faxina” em andamento na FIFA corresponde a uma espécie de pseudo “revolução burguesa”, com a remoção de alguns cartolas ligados a essas redes de favores mais retrógradas e a possível instalação de um corpo de gestores mais profissional.

Limites da pseudo “revolução burguesa” na FIFA
Não acreditamos que a prisão de algumas figuras possa “moralizar” o futebol, seja em nível internacional ou nacional. Enquanto o futebol for um negócio capitalista, estará sujeito a corrupção, troca de favores, suborno, comissões “por debaixo do pano”, compra de resultados, apostas, etc. Todas essas práticas caracterizam a competição capitalista, dentro e fora do mundo do esporte. O capital não tem lei, não obedece às regras do jogo.
Tudo que puder ser feito para aumentar o lucro será feito: matar, contaminar, depredar, roubar, mentir, subornar, chantagear, extorquir, ameaçar, trapacear. Não há legislação financeira, fiscal, trabalhista, ambiental, sanitária ou de qualquer natureza que possa impedir uma empresa capitalista de chegar ao seu lucro. Policiais, fiscais, juízes, políticos, jornalistas, são comprados para acobertar os crimes. A transgressão das leis não é uma escolha acidental de um determinado empresário ou gestor capitalista, é um fato generalizado e amplamente disseminado que faz parte da natureza do sistema. Se um determinado dirigente capitalista opta por ser “ético” (a rigor a ética como tal é impossível numa sociedade dividida em classes), ele será derrotado na concorrência capitalista por aqueles que não o são.
Na verdade, os empresários privados, gestores e diversas personificações do capital não são os verdadeiros sujeitos do processo, mas meros objetos das leis férreas da competição e da acumulação capitalista. Cada fração do capital, enquanto valor econômico abstrato, luta contra as demais para se valorizar, e pune implacavelmente com a falência aquelas personificações que fracassarem em viabilizar este imperativo.
Considerando essa realidade subjacente, a pseudo “revolução burguesa” em andamento na FIFA vai tão somente tocar na superfície dos fenômenos, removendo as figuras ou grupos atualmente encastelados na gestão do futebol, substituindo-os por uma nova categoria de gestores mais “moderna”, “profissional”, transparente”, “ética”, gerando a ilusão de que algo de positivo foi feito. Na realidade, a lógica profunda da competição capitalista que está por trás dos fenômenos seguirá intocada, e com isso novos escândalos serão gerados. Uma determinada turma de empresários capitalistas conseguirá colocar os seus novos gestores de confiança na FIFA, em disputa contra outra turma. Emissoras de televisão, seus patrocinadores, dirigentes de grandes clubes e empresários de jogadores seguirão mandando no futebol, com os mesmos métodos mafiosos.

Clubes X Seleções
Como pano de fundo dessa pseudo “revolução burguesa” na FIFA, temos uma dissociação entre as duas dimensões em que é jogado o futebol, a dos clubes e a das seleções nacionais. Os clubes de futebol, especialmente na Europa, estão se transformando em corporações superpoderosas, com marcas mundialmente conhecidas, torcedores em todos os continentes, audiência e valor de mercado em ascensão. É o caso de gigantes como Real Madrid, Barcelona, Manchester United, Chelsea, Bayern de Munique, e alguns poucos outros em cada país. Os times montados por esses clubes são verdadeiras seleções mundiais, com os melhores jogadores de cada continente. Esses clubes protagonizam uma disputa, a Liga dos Campeões da Europa, onde se joga o melhor futebol do mundo, com jogos disputadíssimos, de alta intensidade, onde os melhores jogadores entregam seu melhor desempenho.
Como resultado, o futebol jogado na Ligas dos Campeões e nos campeonatos nacionais mais importantes da Europa cresce em interesse, audiência, valor de mercado, e o futebol das seleções nacionais decresce na mesma medida. Antes, as Copas do Mundo eram um evento extraordinário no futebol, no sentido de que nessa competição se jogava o melhor futebol do mundo. Os jogadores esperavam 4 anos para estar entre os melhores dos melhores do seu país, para ter a chance de jogar uma Copa, uma oportunidade que aparecia 2 ou no máximo 3 vezes na curta carreira dos futebolistas. Era nas Copas do Mundo que se faziam os heróis, que se consagravam os mitos. Agora, a Copa é um evento extraordinário em outro sentido, como uma interrupção do calendário “normal” do futebol, que é o das competições dos clubes, em especial os grandes clubes da Europa.
O calendário do futebol europeu começa entre fins de agosto e início de setembro de cada ano, para terminar em maio do ano seguinte. As competições de seleções acontecem entre junho e julho, no intervalo entre as temporadas europeias, período que acaba sendo de descanso e refazimento para os profissionais de alto nível. Os jogadores são preparados fisiologicamente por preparadores físicos, que trabalham cientificamente para isso, de maneira a que eles atinjam o máximo de desempenho físico entre os meses de março e maio, na reta final das competições europeias, quando se definem os campeões. Uma vez atingido esse auge, a tendência natural é o relaxamento e a queda de desempenho. Nem que o indivíduo queira, é fisicamente e psicologicamente impossível manter o mesmo nível de rendimento e motivação.
Depois de se dedicar com a máxima intensidade à disputa da Liga dos Campeões ou dos campeonatos nacionais mais importantes da Europa, depois de atingir o auge do desempenho físico e técnico e também de concentração mental para essas competições, não há como manter o mesmo nível para as competições de seleções no meio do ano. Depois de entregarem seu melhor desempenho jogando pelos clubes, que disputam as competições mais importantes e mais rentáveis, os melhores jogadores do mundo chegam esgotados para os jogos das seleções nacionais no meio do ano.
Devido a essa inversão, a Copa do Mundo não é mais o parâmetro para consagrar os melhores jogadores. O jogador que fez o gol que deu a Copa do Mundo de 2014 para a Alemanha, o jovem Mario Götze, não ascendeu imediatamente à condição de semideus, de imortal do futebol. Ainda não é considerado como tal, longe disso, porque ainda não se consagrou na disputa que agora realmente interessa, a da Liga dos Campeões da Europa, e ainda é reserva no seu clube, o Bayern de Munique. Não é mais o futebol das seleções que consagra os gênios, mas o dos clubes. Temos uma exceção que ilustra o funcionamento dessa tendência, o caso de Lionel Messi, da Argentina. O atual melhor do mundo já foi protagonista da Liga dos Campeões mais de uma vez jogando pelo Barcelona, mas ainda não é considerado pela torcida de seu país igual ou melhor que Maradona, porque este ganhou a Copa do Mundo pela seleção argentina. Mas para boa parte da crítica internacional, inclusive este autor, Messi já se iguala ou supera Maradona.

A colonização do mundo da bola pelos gigantes europeus
Não sabemos até onde vai essa queda de importância técnica da Copa do Mundo, afinal os povos de quase todos os países ainda torcem apaixonadamente por suas seleções nacionais. Os estados nacionais e com eles o nacionalismo futebolístico ainda devem ser uma parte do cenário por muitas décadas. Mas que existe uma tendência de agigantamento do futebol dos clubes, isso é inegável. Já se estabeleceu um cenário em que os clubes europeus drenam todo o talento futebolístico que surge em países de continentes pobres, como América do Sul, África e Ásia. As competições nacionais e continentais da América do Sul são uma espécie de 2ª divisão mundial, já que as principais competições são as da Europa. Os melhores jogadores ficam pouquíssimos anos nos seus clubes de origem no Brasil (e no restante da América do Sul) e assim que se destacam são vendidos para a Europa. Esse já é o seu “plano de carreira” desde que saem das categorias de base.
Os jogadores que ficam no Brasil são os que não são bons o suficiente para irem para a Europa, ou já não mais são bons o bastante para ficarem por lá, entraram em decadência física, estão lesionados, etc., e por isso voltam. Ao mesmo tempo, já se encontram nas ruas do Brasil torcedores com camisas de times europeus quase em igualdade com o número de torcedores de times nacionais. O futebol dos grandes clubes da Europa está “colonizando” o mundo. E nessa colonização temos uma mudança no caráter do futebol. Este se transforma cada vez mais em um espetáculo televisivo do que num espaço de convivência, como era a sua origem. Esses “torcedores” de clubes europeus que assistem jogos de outros continentes pela televisão dificilmente terão a experiência de torcer para seus clubes de adoção no estádio, que é como o futebol se construiu.
Está acontecendo uma espécie de homogeneização do futebol jogado em todos os países. As diferenças entre as escolas nacionais, com seus diferentes estilos específicos, estão se diluindo. Em cada clube grande da Europa existem mais estrangeiros do que nacionais: um ou dois brasileiros, um argentino, um uruguaio ou colombiano, um ou dois africanos, um sul-coreano, às vezes até um australiano, etc. Esses jogadores jogam um futebol padronizado, técnico, mas burocrático, com bom domínio de bola, mas sem imaginação, com velocidade, mas sem criatividade, e assim por diante.
A homogeneização do futebol, bem como os demais fenômenos descritos acima, a formação de clubes super gigantes, que monopolizam os campeonatos nacionais e criam torcedores/espectadores/consumidores em um mercado global, é um processo que tem seu marco na sentença Bosman, em 1995. Neste ano, uma corte da União Europeia – UE, decidiu que o jogador belga Jean Marc Bosman poderia jogar em qualquer país da UE sem ser considerado estrangeiro. A partir desse precedente, os grandes clubes europeus passaram a poder comprar jogadores europeus como se fossem nacionais, caindo por terra a tradicional e histórica limitação de três estrangeiros por clube que vigorava até aquele momento. O passo seguinte foi a obtenção de passaportes portugueses, italianos, espanhois, por jogadores brasileiros, argentinos, uruguaios, etc.
Com isso, eles também passariam a ser cidadãos europeus, e também poderiam jogar em clubes de qualquer país europeu sem serem contados como estrangeiros. Já é comum ver times ingleses sem nenhum jogador inglês em campo, clubes italianos sem nenhum italiano, e assim por diante. Na prática, acabou o limite para jogadores estrangeiros em cada elenco, e os times com mais dinheiro passaram a poder comprar os melhores jogadores do mundo, e formar as seleções mundiais que temos hoje no Real Madrid, Barcelona, Manchester United, etc. Isso desequilibrou os campeonatos nacionais em favor dos gigantes, e aumentou o interesse na Copa dos Campeões da Europa, transformada em Liga dos Campeões em 1994, uma verdadeira “Copa do Mundo” jogada anualmente.

A elitização e desenraizamento do futebol
Uma das conseqüências desse agigantamento dos grandes clubes é a elitização do futebol. Está se tornando impossível freqüentar os estádios, devido ao preço dos ingressos. Muitos desses clube gigantes reservam partes das suas arquibancadas para agências de turismo. O resultado é que, ao invés de torcedores, eles têm espectadores no estádio. O restante dos ingressos é vendido a torcedores de alta renda. Os trabalhadores não podem mais ir ao estádio, e têm que se contentar em ver os jogos pela televisão.
Esse processo já está tão acentuado em alguns países que até gerou uma reação contrária. O “slogan” comercial da federação inglesa para divulgar os jogos da 2ª divisão é “real football for real fans”. Ou seja, futebol de verdade para torcedores de verdade. A segunda divisão é jogada por times pequenos, de cidades pequenas, em estádios pequenos, mas sempre lotados, com uma torcida apaixonada, que canta durante o jogo inteiro, e literalmente empurra o time. Uma torcida de trabalhadores. O futebol “de verdade” da segunda divisão inglesa é o “kick and rush”, ou seja, chutão para frente e correria. Muita dedicação e pouco talento. Por mais que a qualidade dos jogos não seja nem de longe a mesma da primeira divisão, a badalada “Premier League”, que é o melhor campeonato nacional do mundo, a segunda divisão inglesa motiva seus torcedores, porque é muito mais autêntica. Diante dos jogos altamente competitivos, mas também muitas vezes burocráticos, repetitivos, o torcedor prefere o bom e velho “kick and rush” da segunda divisão.
Quando os trabalhadores perdem a possibilidade de freqüentar os estádios, o futebol se descaracteriza e se transforma num espetáculo televisivo. A classe operária é a alma do futebol. O hábito de torcer ombro a ombro, sofrer junto nas derrotas e comemorar as vitórias, a “religião” de torcer para um time, é parte da identidade de classe que unifica os trabalhadores. Posteriormente, já num momento de degeneração, surgem as gangues de “hooligans” e torcedores organizados, não mais para torcer, mas para brigar com outras gangues rivais. A elitização do público, por meio de ingressos proibitivos, é uma forma de tentar retirar as gangues do cenário, mas que retira também os trabalhadores.

Ideologia da competição x competição esportiva
A transformação do futebol em um negócio bilionário é parte do processo multissecular de mercantilização de todas as esferas da vida, descrito por Marx e Engels no Manifesto Comunista, no longínquo 1848. “A burguesia despojou de sua auréola toda a ocupação até então considerada honrada e encarada com respeito. Converteu o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência em trabalhadores assalariados”. O capitalismo transformou em um negócio de compra e venda todas as atividades, todas as profissões, incluindo hoje os jogadores de futebol. Marx e Engels foram gênios visionários por terem identificado esse processo em seu nascedouro, no século XIX (e também por prescrever a única forma de enfrentar tal processo e alcançar a emancipação humana: a revolução socialista). Agora, vivemos no momento de consumação da ascensão histórica do capital, quando tudo já está transformado em mercadoria.
Uma vez que a realidade é dialética, as suas diversas esferas se influenciam reciprocamente, e absorvem características umas das outras. Se o esporte se torna mercadoria, a mercadoria também se converte em competição. A ideologia da competição se espalha da prática esportiva para as demais atividades humanas. Desempenho, performance, metas, recordes, resultados, liderança, vitória e derrota, são categorias que passam a vigorar em esferas as mais díspares. Se fala em “performance sexual”, se mede a qualidade dos filmes pelo resultado na bilheteria (ou pela quantidade de prêmios), se corre no trânsito para chegar na frente (de quem?), se vive com pressa, tentando “render mais”, sempre mais. A psicologia dos indivíduos é contaminada por essa obsessão competitiva, produtivista, quantitativa, tomada emprestada da competição esportiva, pela pressão da competição econômica.
A ideologia da competição, transportada para a vida privada dos indivíduos, também não se pauta pelas características da própria competição esportiva em si. Quando o esporte se torna uma atividade econômica, a sua própria natureza é descaracterizada. Afinal, a competição esportiva tem uma lógica diferente da competição econômica. No esporte existem regras para o jogo, o resultado tem que ser obtido dentro das quatro linhas, é requerido um conjunto de habilidades especiais que somente se obtém com treinamento e trabalho duro. O resultado final, enfim, é “justo”, dentro daquilo que é estabelecido quando o jogo começa. A competição econômica, por outro lado, não tem quaisquer limites, como vimos acima.

A educação física para o capital
Na sua origem moderna, o esporte também teve uma função de disciplinamento e “educação” dos indivíduos para um modo de vida adequado à lógica do capital. Os esportes tais como os conhecemos hoje, tanto as modalidades olímpicas quanto o futebol, surgiram entre a metade e o fim do século XIX. Nessa época estava se impondo a industrialização e a urbanização capitalistas. Era preciso adaptar os trabalhadores e a população em geral para uma vida pautada pelos ritmos da produção capitalista.
A semana inglesa de 7 dias, a jornada de trabalho (objeto de dura disputa do nascente movimento operário contra a patronal, até ser reduzida para 8 horas no século XX), o ritmo regular e repetitivo das máquinas, a monotonia das tarefas segmentadas da produção taylorista-fordista, os sinais de trânsito, a contagem do tempo em minutos e segundos, etc., tudo isso teve que ser imposto sobre uma população acostumada a regular o ritmo de vida pelos ciclos da natureza. Durante milênios a humanidade regulou suas atividades pelas estações do ano, épocas de frio e calor, de chuva e de seca, de neve, de colheita, pela claridade do dia, etc. Os ciclos de atividade e descanso seguiam esses ritmos, sazonais, intermitentes, mais ou menos regulares, conforme as regiões e os tipos de atividade. Os ciclos artificiais da vida urbana, do trabalho industrial, do controle burocrático, etc., foram implantados à força, por meio de multas, punições, regulamentos, castigos dos capatazes, bedéis, fiscais, guardas de trânsito, etc.
Paralelamente a esse aparato repressivo, o ritmo de vida artificial adequado à produção capitalista foi imposto também com a ajuda persuasiva mais suave e lúdica das práticas esportivas. Os esportes se popularizam e educam a população, acostumando-a à contagem do tempo, apito inicial e apito final, aquecimento, intervalo, quatro linhas, pontuação, regras, arbitragem, etc., toda uma coreografia ordenada dos gestos que se espalha dos esportes para outras esferas da vida cotidiana. Até as artes marciais, patrimônio das classes aristocráticas do Extremo Oriente, também se popularizam (o judô foi criado por Jigoro Kano em 1920, a partir das técnicas da finada classe dos samurais para as lutas sem armas, especialmente para educar a população do moderno Japão imperialista).
Os próprios efeitos benéficos das práticas esportivas e da atividade física para a saúde ficam hoje em segundo plano, já que o esporte, o hábito de freqüentar academias, etc., também está submetido à ideologia geral da competição que ajudou a difundir, e que o submete de outras maneiras. Dentro das próprias academias, os freqüentadores competem para mostrar mais resultado. O objetivo não é a saúde, mas a exibição de um “corpo perfeito”, conforme um padrão de beleza artificialmente imposto. Até mesmo as artes marciais, as mais nobres e requintadas formas de cultivo do corpo e da mente, se transformaram em UFC.

Um chute que saiu pela culatra
Em resumo, a imposição de um modo de vida adequado à reprodução do capital contou com a colaboração imprevista da popularização das práticas esportivas. Mas essa popularização teve um outro efeito, que não foi previsto. Na época, em fins do século XIX, esse efeito educativo das práticas esportivas sobre o conjunto da população não era a intenção original dos criadores do esporte moderno. As Olimpíadas modernas e o próprio futebol foram criados com uma concepção aristocrática, um ideal cavalheiresco burguês, inspirado em uma idealização da antiga prática greco-romana de cultivo do corpo.
O futebol moderno surgiu nas escolas públicas inglesas na metade do século XIX, como parte desse projeto burguês e elitista. Em fins do século, entretanto, o jogo já tinha sido adotado pela classe operária, que começou a fundar clubes de futebol por toda parte. Marinheiros ingleses difundiram o jogo pelos quatro cantos do mundo. O futebol se popularizou mais do que qualquer outro esporte, devido a uma série de características: a “jogabilidade”, a plasticidade do jogo, a liberdade de criação que oferece, a possibilidade de ser jogado em qualquer terreno, em qualquer espaço, sem requerer equipamentos especiais, nem, principalmente, qualidades físicas excepcionais, podendo ao contrário ser praticado por qualquer biotipo, bem como a simplicidade das regras, e a imprevisibilidade dos resultados.
Ao contrário dos demais esportes coletivos, no futebol o melhor time pode perder. Um gol vale mais do que uma dúzia de chances perdidas. Um time pode jogar um jogo inteiro por uma bola apenas, e vencer. Uma quantidade enorme de fatores interfere nos resultados, em combinações variáveis: individualidade, qualidade do campo, pressão da torcida, erro de arbitragem, preparo físico, entrosamento, esquema tático, ou puro e simples azar. Essas características mantém viva a disputa durante os 90 minutos. Até o apito final, qualquer coisa pode acontecer. Com isso, a motivação de quem joga permanece viva até o final, e também a de quem assiste.
Com essa imprevisibilidade e variedade, o futebol seduziu torcidas pelo mundo inteiro, criou verdadeiras religiões. Mas sempre com uma base social operária. Hoje, em tempos de mercantilização e mundialização, e também de corrupção e tramóias, cada vez mais torcer por bom futebol se tornará um ato de nostalgia e resistência.

Daniel M. Delfino
Junho 2015


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