O
mundo do futebol entrou em polvorosa no mês de junho com as
prisões de vários integrantes do Comitê Executivo
da FIFA (entre eles o ex-presidente da CBF, José Maria Marin),
às vésperas do Congresso mundial da entidade. O
Congresso, reunido com toda a pompa na sede da FIFA, em Zurique, na
Suíça, reelegeria o então presidente, Sepp
Blatter, para mais um mandato. No entanto, uma semana depois de
eleito, Blatter renunciou, e nova eleição foi apontada
para escolher o presidente da entidade que comanda o futebol mundial.
As
prisões foram efetuadas pela Interpol em obediência a um
mandado do FBI. A polícia federal estadunidense investiga a
corrupção na FIFA há algum tempo, e entre outros
casos, reuniu provas de que os membros do Comitê Executivo
receberam propina de determinadas empresas para lhes vender os
direitos de transmissões de competições como a
Copa América e competições nacionais, como a
Copa do Brasil. Também há a suspeita de que receberam
propinas para votar nas candidaturas da Rússia e do Qatar,
escolhidas para sede das Copas do Mundo de 2018 e 2022,
respectivamente (este caso está sendo investigado diretamente
pela polícia suíça). Ambas as escolhas foram
bastante criticadas na época em que foram anunciadas, em 2010,
seja por haver outros concorrentes em muito melhores condições
técnicas de sediar uma Copa, como a Inglaterra, ou seja pela
quase total ausência de tradição no mundo do
futebol, condição especialmente gritante no caso do
Qatar.
As
investigações do FBI ainda não atingiram o
próprio Blatter, mas o ex-homem forte da FIFA preferiu sair de
cena antes que o escândalo o alcançasse mais
diretamente. Um dos nomes cotados para suceder Blatter é seu
ferrenho opositor e presidente da UEFA (Confederação
Europeia de Futebol), o ex-craque francês Michel Platini. No
Brasil, José Maria Marin acabava de ser substituído por
Marco Polo Del Nero na presidência da CBF. Por via das dúvidas,
Del Nero se retirou do Congresso da FIFA ainda antes do encerramento.
Em relação a Marin, os fatos que motivaram sua prisão
aconteceram quando ainda era vice presidente, atrás do todo
poderoso Ricardo Teixeira, que comandou a CBF por mais de 20 anos, e
renunciou ao cargo às vésperas da Copa do Mundo de 2014
(mais ou menos como faria Blatter).
O
“coronelismo” no futebol
A
FIFA é uma entidade privada, já que não é
subordinada a nenhum governo ou organismo internacional. Ao
contrário, a FIFA costuma se gabar de ter mais países
filiados do que a ONU (209 contra 193, na última contagem). E
em muitos casos, tem poder superior ao de alguns governos, impondo as
suas condições para a realização da Copa
do Mundo, como fez com o Brasil. De qualquer maneira, em termos
jurídicos, é uma entidade privada, sem fins lucrativos.
A FIFA não possui proprietários privados, pois seus
dirigentes são eleitos pelas federações
nacionais e continentais. Entretanto, o futebol é um negócio
muito lucrativo, e a FIFA também se beneficia dele. Como uma
empresa, a FIFA vende um produto, a Copa do Mundo de seleções
nacionais de futebol, que é patrocinada por grandes empresas,
que pagam fortunas para aparecerem nas transmissões dos jogos,
que também custam uma fortuna às emissoras. A Copa de
2014 custou US$ 4 bilhões ao Brasil, e rendeu US$ 2 bilhões
para a FIFA.
Uma
vez que a própria FIFA não é uma empresa,
portanto seu lucro não é destinado a proprietários
privados, o que acaba acontecendo é que uma parte desse lucro
acaba sendo ilicitamente embolsado pelos gestores eleitos, como
Blatter e Marin. A investigação do FBI diz respeito a
US$ 150 milhões que teriam sido pagos em suborno a dirigentes
para que escolhessem determinados parceiros de patrocínio e
transmissões, em detrimento de outros. Trata-se de crimes
contra a concorrência econômica. Esses gestores da FIFA,
como dissemos, são eleitos por representantes das federações
nacionais. Em cada federação nacional, por sua vez,
encontramos figuras como Marin e Ricardo Teixeira, que ascenderam ao
comando da entidade sem nenhuma história relevante como
dirigentes de futebol.
Ricardo
Teixeira era simplesmente genro de João Havelange, antecessor
e padrinho de Blatter na presidência da FIFA. José Maria
Marin era integrante do partido da ditadura militar, a ARENA, tendo
sido vereador em São Paulo e governador em exercício
entre 1982 e 1983, como vice de Paulo Maluf. Em 1975, ainda vereador,
fez um discurso contra a TV Cultura, por conta da linha crítica
ao regime que lá aparecia, e 15 dias depois o jornalista
Vladimir Herzog apareceria morto no DOPS.
Para
chegar ao comando das federações nacionais como a CBF,
essas figuras são eleitas pelos presidentes de federações
estaduais, que por sua vez são eleitos por presidentes dos
clubes, que por sua vez são eleitos por grupos restritos de
conselheiros ou sócios especiais. Em outras palavras, uma
estrutura nebulosa e antidemocrática na sua essência. O
futebol, o esporte mais popular e democrático do mundo, está
sob comando das figuras mais retrógradas, corruptas,
autoritárias, incompetentes, medíocres que se possa
encontrar.
Os
chamados “cartolas” que dirigem o futebol são uma espécie
de remanescentes dos “coronéis” que mandavam na política
de regiões atrasadas. Ambos vivem de uma rede de troca de
favores, de compadrio, de toma lá dá cá.
Elegem-se uns aos outros, trocando favores por votos, numa rede de
relacionamentos obscura, que nada têm a ver com os objetivos
das entidades e o próprio futebol em si. Nesse sentido, a
pseudo “faxina” em andamento na FIFA corresponde a uma espécie
de pseudo “revolução burguesa”, com a remoção
de alguns cartolas ligados a essas redes de favores mais retrógradas
e a possível instalação de um corpo de gestores
mais profissional.
Limites
da pseudo “revolução burguesa” na FIFA
Não
acreditamos que a prisão de algumas figuras possa “moralizar”
o futebol, seja em nível internacional ou nacional. Enquanto o
futebol for um negócio capitalista, estará sujeito a
corrupção, troca de favores, suborno, comissões
“por debaixo do pano”, compra de resultados, apostas, etc. Todas
essas práticas caracterizam a competição
capitalista, dentro e fora do mundo do esporte. O capital não
tem lei, não obedece às regras do jogo.
Tudo
que puder ser feito para aumentar o lucro será feito: matar,
contaminar, depredar, roubar, mentir, subornar, chantagear,
extorquir, ameaçar, trapacear. Não há legislação
financeira, fiscal, trabalhista, ambiental, sanitária ou de
qualquer natureza que possa impedir uma empresa capitalista de chegar
ao seu lucro. Policiais, fiscais, juízes, políticos,
jornalistas, são comprados para acobertar os crimes. A
transgressão das leis não é uma escolha
acidental de um determinado empresário ou gestor capitalista,
é um fato generalizado e amplamente disseminado que faz parte
da natureza do sistema. Se um determinado dirigente capitalista opta
por ser “ético” (a rigor a ética como tal é
impossível numa sociedade dividida em classes), ele será
derrotado na concorrência capitalista por aqueles que não
o são.
Na
verdade, os empresários privados, gestores e diversas
personificações do capital não são os
verdadeiros sujeitos do processo, mas meros objetos das leis férreas
da competição e da acumulação
capitalista. Cada fração do capital, enquanto valor
econômico abstrato, luta contra as demais para se valorizar, e
pune implacavelmente com a falência aquelas personificações
que fracassarem em viabilizar este imperativo.
Considerando
essa realidade subjacente, a pseudo “revolução
burguesa” em andamento na FIFA vai tão somente tocar na
superfície dos fenômenos, removendo as figuras ou grupos
atualmente encastelados na gestão do futebol, substituindo-os
por uma nova categoria de gestores mais “moderna”,
“profissional”, transparente”, “ética”, gerando a
ilusão de que algo de positivo foi feito. Na realidade, a
lógica profunda da competição capitalista que
está por trás dos fenômenos seguirá
intocada, e com isso novos escândalos serão gerados. Uma
determinada turma de empresários capitalistas conseguirá
colocar os seus novos gestores de confiança na FIFA, em
disputa contra outra turma. Emissoras de televisão, seus
patrocinadores, dirigentes de grandes clubes e empresários de
jogadores seguirão mandando no futebol, com os mesmos métodos
mafiosos.
Clubes
X Seleções
Como
pano de fundo dessa pseudo “revolução burguesa” na
FIFA, temos uma dissociação entre as duas dimensões
em que é jogado o futebol, a dos clubes e a das seleções
nacionais. Os clubes de futebol, especialmente na Europa, estão
se transformando em corporações superpoderosas, com
marcas mundialmente conhecidas, torcedores em todos os continentes,
audiência e valor de mercado em ascensão. É o
caso de gigantes como Real Madrid, Barcelona, Manchester United,
Chelsea, Bayern de Munique, e alguns poucos outros em cada país.
Os times montados por esses clubes são verdadeiras seleções
mundiais, com os melhores jogadores de cada continente. Esses clubes
protagonizam uma disputa, a Liga dos Campeões da Europa, onde
se joga o melhor futebol do mundo, com jogos disputadíssimos,
de alta intensidade, onde os melhores jogadores entregam seu melhor
desempenho.
Como
resultado, o futebol jogado na Ligas dos Campeões e nos
campeonatos nacionais mais importantes da Europa cresce em interesse,
audiência, valor de mercado, e o futebol das seleções
nacionais decresce na mesma medida. Antes, as Copas do Mundo eram um
evento extraordinário no futebol, no sentido de que nessa
competição se jogava o melhor futebol do mundo. Os
jogadores esperavam 4 anos para estar entre os melhores dos melhores
do seu país, para ter a chance de jogar uma Copa, uma
oportunidade que aparecia 2 ou no máximo 3 vezes na curta
carreira dos futebolistas. Era nas Copas do Mundo que se faziam os
heróis, que se consagravam os mitos. Agora, a Copa é um
evento extraordinário em outro sentido, como uma interrupção
do calendário “normal” do futebol, que é o das
competições dos clubes, em especial os grandes clubes
da Europa.
O
calendário do futebol europeu começa entre fins de
agosto e início de setembro de cada ano, para terminar em maio
do ano seguinte. As competições de seleções
acontecem entre junho e julho, no intervalo entre as temporadas
europeias, período que acaba sendo de descanso e refazimento
para os profissionais de alto nível. Os jogadores são
preparados fisiologicamente por preparadores físicos, que
trabalham cientificamente para isso, de maneira a que eles atinjam o
máximo de desempenho físico entre os meses de março
e maio, na reta final das competições europeias, quando
se definem os campeões. Uma vez atingido esse auge, a
tendência natural é o relaxamento e a queda de
desempenho. Nem que o indivíduo queira, é fisicamente e
psicologicamente impossível manter o mesmo nível de
rendimento e motivação.
Depois
de se dedicar com a máxima intensidade à disputa da
Liga dos Campeões ou dos campeonatos nacionais mais
importantes da Europa, depois de atingir o auge do desempenho físico
e técnico e também de concentração mental
para essas competições, não há como
manter o mesmo nível para as competições de
seleções no meio do ano. Depois de entregarem seu
melhor desempenho jogando pelos clubes, que disputam as competições
mais importantes e mais rentáveis, os melhores jogadores do
mundo chegam esgotados para os jogos das seleções
nacionais no meio do ano.
Devido
a essa inversão, a Copa do Mundo não é mais o
parâmetro para consagrar os melhores jogadores. O jogador que
fez o gol que deu a Copa do Mundo de 2014 para a Alemanha, o jovem
Mario Götze, não ascendeu imediatamente à condição
de semideus, de imortal do futebol. Ainda não é
considerado como tal, longe disso, porque ainda não se
consagrou na disputa que agora realmente interessa, a da Liga dos
Campeões da Europa, e ainda é reserva no seu clube, o
Bayern de Munique. Não é mais o futebol das seleções
que consagra os gênios, mas o dos clubes. Temos uma exceção
que ilustra o funcionamento dessa tendência, o caso de Lionel
Messi, da Argentina. O atual melhor do mundo já foi
protagonista da Liga dos Campeões mais de uma vez jogando pelo
Barcelona, mas ainda não é considerado pela torcida de
seu país igual ou melhor que Maradona, porque este ganhou a
Copa do Mundo pela seleção argentina. Mas para boa
parte da crítica internacional, inclusive este autor, Messi já
se iguala ou supera Maradona.
A
colonização do mundo da bola pelos gigantes europeus
Não
sabemos até onde vai essa queda de importância técnica
da Copa do Mundo, afinal os povos de quase todos os países
ainda torcem apaixonadamente por suas seleções
nacionais. Os estados nacionais e com eles o nacionalismo
futebolístico ainda devem ser uma parte do cenário por
muitas décadas. Mas que existe uma tendência de
agigantamento do futebol dos clubes, isso é inegável.
Já se estabeleceu um cenário em que os clubes europeus
drenam todo o talento futebolístico que surge em países
de continentes pobres, como América do Sul, África e
Ásia. As competições nacionais e continentais da
América do Sul são uma espécie de 2ª
divisão mundial, já que as principais competições
são as da Europa. Os melhores jogadores ficam pouquíssimos
anos nos seus clubes de origem no Brasil (e no restante da América
do Sul) e assim que se destacam são vendidos para a Europa.
Esse já é o seu “plano de carreira” desde que saem
das categorias de base.
Os
jogadores que ficam no Brasil são os que não são
bons o suficiente para irem para a Europa, ou já não
mais são bons o bastante para ficarem por lá, entraram
em decadência física, estão lesionados, etc., e
por isso voltam. Ao mesmo tempo, já se encontram nas ruas do
Brasil torcedores com camisas de times europeus quase em igualdade
com o número de torcedores de times nacionais. O futebol dos
grandes clubes da Europa está “colonizando” o mundo. E
nessa colonização temos uma mudança no caráter
do futebol. Este se transforma cada vez mais em um espetáculo
televisivo do que num espaço de convivência, como era a
sua origem. Esses “torcedores” de clubes europeus que assistem
jogos de outros continentes pela televisão dificilmente terão
a experiência de torcer para seus clubes de adoção
no estádio, que é como o futebol se construiu.
Está
acontecendo uma espécie de homogeneização do
futebol jogado em todos os países. As diferenças entre
as escolas nacionais, com seus diferentes estilos específicos,
estão se diluindo. Em cada clube grande da Europa existem mais
estrangeiros do que nacionais: um ou dois brasileiros, um argentino,
um uruguaio ou colombiano, um ou dois africanos, um sul-coreano, às
vezes até um australiano, etc. Esses jogadores jogam um
futebol padronizado, técnico, mas burocrático, com bom
domínio de bola, mas sem imaginação, com
velocidade, mas sem criatividade, e assim por diante.
A
homogeneização do futebol, bem como os demais fenômenos
descritos acima, a formação de clubes super gigantes,
que monopolizam os campeonatos nacionais e criam
torcedores/espectadores/consumidores em um mercado global, é
um processo que tem seu marco na sentença Bosman, em 1995.
Neste ano, uma corte da União Europeia – UE, decidiu que o
jogador belga Jean Marc Bosman poderia jogar em qualquer país
da UE sem ser considerado estrangeiro. A partir desse precedente, os
grandes clubes europeus passaram a poder comprar jogadores europeus
como se fossem nacionais, caindo por terra a tradicional e histórica
limitação de três estrangeiros por clube que
vigorava até aquele momento. O passo seguinte foi a obtenção
de passaportes portugueses, italianos, espanhois, por jogadores
brasileiros, argentinos, uruguaios, etc.
Com
isso, eles também passariam a ser cidadãos europeus, e
também poderiam jogar em clubes de qualquer país
europeu sem serem contados como estrangeiros. Já é
comum ver times ingleses sem nenhum jogador inglês em campo,
clubes italianos sem nenhum italiano, e assim por diante. Na prática,
acabou o limite para jogadores estrangeiros em cada elenco, e os
times com mais dinheiro passaram a poder comprar os melhores
jogadores do mundo, e formar as seleções mundiais que
temos hoje no Real Madrid, Barcelona, Manchester United, etc. Isso
desequilibrou os campeonatos nacionais em favor dos gigantes, e
aumentou o interesse na Copa dos Campeões da Europa,
transformada em Liga dos Campeões em 1994, uma verdadeira
“Copa do Mundo” jogada anualmente.
A
elitização e desenraizamento do futebol
Uma
das conseqüências desse agigantamento dos grandes clubes é
a elitização do futebol. Está se tornando
impossível freqüentar os estádios, devido ao preço
dos ingressos. Muitos desses clube gigantes reservam partes das suas
arquibancadas para agências de turismo. O resultado é
que, ao invés de torcedores, eles têm espectadores no
estádio. O restante dos ingressos é vendido a
torcedores de alta renda. Os trabalhadores não podem mais ir
ao estádio, e têm que se contentar em ver os jogos pela
televisão.
Esse
processo já está tão acentuado em alguns países
que até gerou uma reação contrária. O
“slogan” comercial da federação inglesa para
divulgar os jogos da 2ª divisão é “real football
for real fans”. Ou seja, futebol de verdade para torcedores de
verdade. A segunda divisão é jogada por times pequenos,
de cidades pequenas, em estádios pequenos, mas sempre lotados,
com uma torcida apaixonada, que canta durante o jogo inteiro, e
literalmente empurra o time. Uma torcida de trabalhadores. O futebol
“de verdade” da segunda divisão inglesa é o “kick
and rush”, ou seja, chutão para frente e correria. Muita
dedicação e pouco talento. Por mais que a qualidade dos
jogos não seja nem de longe a mesma da primeira divisão,
a badalada “Premier League”, que é o melhor campeonato
nacional do mundo, a segunda divisão inglesa motiva seus
torcedores, porque é muito mais autêntica. Diante dos
jogos altamente competitivos, mas também muitas vezes
burocráticos, repetitivos, o torcedor prefere o bom e velho
“kick and rush” da segunda divisão.
Quando
os trabalhadores perdem a possibilidade de freqüentar os
estádios, o futebol se descaracteriza e se transforma num
espetáculo televisivo. A classe operária é a
alma do futebol. O hábito de torcer ombro a ombro, sofrer
junto nas derrotas e comemorar as vitórias, a “religião”
de torcer para um time, é parte da identidade de classe que
unifica os trabalhadores. Posteriormente, já num momento de
degeneração, surgem as gangues de “hooligans” e
torcedores organizados, não mais para torcer, mas para brigar
com outras gangues rivais. A elitização do público,
por meio de ingressos proibitivos, é uma forma de tentar
retirar as gangues do cenário, mas que retira também os
trabalhadores.
Ideologia
da competição x competição esportiva
A
transformação do futebol em um negócio
bilionário é parte do processo multissecular de
mercantilização de todas as esferas da vida, descrito
por Marx e Engels no Manifesto Comunista, no longínquo 1848.
“A burguesia despojou de sua auréola toda a ocupação
até então considerada honrada e encarada com respeito.
Converteu o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de
ciência em trabalhadores assalariados”. O capitalismo
transformou em um negócio de compra e venda todas as
atividades, todas as profissões, incluindo hoje os jogadores
de futebol. Marx e Engels foram gênios visionários por
terem identificado esse processo em seu nascedouro, no século
XIX (e também por prescrever a única forma de enfrentar
tal processo e alcançar a emancipação humana: a
revolução socialista). Agora, vivemos no momento de
consumação da ascensão histórica do
capital, quando tudo já está transformado em
mercadoria.
Uma
vez que a realidade é dialética, as suas diversas
esferas se influenciam reciprocamente, e absorvem características
umas das outras. Se o esporte se torna mercadoria, a mercadoria
também se converte em competição. A ideologia da
competição se espalha da prática esportiva para
as demais atividades humanas. Desempenho, performance, metas,
recordes, resultados, liderança, vitória e derrota, são
categorias que passam a vigorar em esferas as mais díspares.
Se fala em “performance sexual”, se mede a qualidade dos filmes
pelo resultado na bilheteria (ou pela quantidade de prêmios),
se corre no trânsito para chegar na frente (de quem?), se vive
com pressa, tentando “render mais”, sempre mais. A psicologia dos
indivíduos é contaminada por essa obsessão
competitiva, produtivista, quantitativa, tomada emprestada da
competição esportiva, pela pressão da competição
econômica.
A
ideologia da competição, transportada para a vida
privada dos indivíduos, também não se pauta
pelas características da própria competição
esportiva em si. Quando o esporte se torna uma atividade econômica,
a sua própria natureza é descaracterizada. Afinal, a
competição esportiva tem uma lógica diferente da
competição econômica. No esporte existem regras
para o jogo, o resultado tem que ser obtido dentro das quatro linhas,
é requerido um conjunto de habilidades especiais que somente
se obtém com treinamento e trabalho duro. O resultado final,
enfim, é “justo”, dentro daquilo que é estabelecido
quando o jogo começa. A competição econômica,
por outro lado, não tem quaisquer limites, como vimos acima.
A
educação física para o capital
Na
sua origem moderna, o esporte também teve uma função
de disciplinamento e “educação” dos indivíduos
para um modo de vida adequado à lógica do capital. Os
esportes tais como os conhecemos hoje, tanto as modalidades olímpicas
quanto o futebol, surgiram entre a metade e o fim do século
XIX. Nessa época estava se impondo a industrialização
e a urbanização capitalistas. Era preciso adaptar os
trabalhadores e a população em geral para uma vida
pautada pelos ritmos da produção capitalista.
A
semana inglesa de 7 dias, a jornada de trabalho (objeto de dura
disputa do nascente movimento operário contra a patronal, até
ser reduzida para 8 horas no século XX), o ritmo regular e
repetitivo das máquinas, a monotonia das tarefas segmentadas
da produção taylorista-fordista, os sinais de trânsito,
a contagem do tempo em minutos e segundos, etc., tudo isso teve que
ser imposto sobre uma população acostumada a regular o
ritmo de vida pelos ciclos da natureza. Durante milênios a
humanidade regulou suas atividades pelas estações do
ano, épocas de frio e calor, de chuva e de seca, de neve, de
colheita, pela claridade do dia, etc. Os ciclos de atividade e
descanso seguiam esses ritmos, sazonais, intermitentes, mais ou menos
regulares, conforme as regiões e os tipos de atividade. Os
ciclos artificiais da vida urbana, do trabalho industrial, do
controle burocrático, etc., foram implantados à força,
por meio de multas, punições, regulamentos, castigos
dos capatazes, bedéis, fiscais, guardas de trânsito,
etc.
Paralelamente
a esse aparato repressivo, o ritmo de vida artificial adequado à
produção capitalista foi imposto também com a
ajuda persuasiva mais suave e lúdica das práticas
esportivas. Os esportes se popularizam e educam a população,
acostumando-a à contagem do tempo, apito inicial e apito
final, aquecimento, intervalo, quatro linhas, pontuação,
regras, arbitragem, etc., toda uma coreografia ordenada dos gestos
que se espalha dos esportes para outras esferas da vida cotidiana.
Até as artes marciais, patrimônio das classes
aristocráticas do Extremo Oriente, também se
popularizam (o judô foi criado por Jigoro Kano em 1920, a
partir das técnicas da finada classe dos samurais para as
lutas sem armas, especialmente para educar a população
do moderno Japão imperialista).
Os
próprios efeitos benéficos das práticas
esportivas e da atividade física para a saúde ficam
hoje em segundo plano, já que o esporte, o hábito de
freqüentar academias, etc., também está submetido
à ideologia geral da competição que ajudou a
difundir, e que o submete de outras maneiras. Dentro das próprias
academias, os freqüentadores competem para mostrar mais
resultado. O objetivo não é a saúde, mas a
exibição de um “corpo perfeito”, conforme um padrão
de beleza artificialmente imposto. Até mesmo as artes
marciais, as mais nobres e requintadas formas de cultivo do corpo e
da mente, se transformaram em UFC.
Um
chute que saiu pela culatra
Em
resumo, a imposição de um modo de vida adequado à
reprodução do capital contou com a colaboração
imprevista da popularização das práticas
esportivas. Mas essa popularização teve um outro
efeito, que não foi previsto. Na época, em fins do
século XIX, esse efeito educativo das práticas
esportivas sobre o conjunto da população não era
a intenção original dos criadores do esporte moderno.
As Olimpíadas modernas e o próprio futebol foram
criados com uma concepção aristocrática, um
ideal cavalheiresco burguês, inspirado em uma idealização
da antiga prática greco-romana de cultivo do corpo.
O
futebol moderno surgiu nas escolas públicas inglesas na metade
do século XIX, como parte desse projeto burguês e
elitista. Em fins do século, entretanto, o jogo já
tinha sido adotado pela classe operária, que começou a
fundar clubes de futebol por toda parte. Marinheiros ingleses
difundiram o jogo pelos quatro cantos do mundo. O futebol se
popularizou mais do que qualquer outro esporte, devido a uma série
de características: a “jogabilidade”, a plasticidade do
jogo, a liberdade de criação que oferece, a
possibilidade de ser jogado em qualquer terreno, em qualquer espaço,
sem requerer equipamentos especiais, nem, principalmente, qualidades
físicas excepcionais, podendo ao contrário ser
praticado por qualquer biotipo, bem como a simplicidade das regras, e
a imprevisibilidade dos resultados.
Ao
contrário dos demais esportes coletivos, no futebol o melhor
time pode perder. Um gol vale mais do que uma dúzia de chances
perdidas. Um time pode jogar um jogo inteiro por uma bola apenas, e
vencer. Uma quantidade enorme de fatores interfere nos resultados, em
combinações variáveis: individualidade,
qualidade do campo, pressão da torcida, erro de arbitragem,
preparo físico, entrosamento, esquema tático, ou puro e
simples azar. Essas características mantém viva a
disputa durante os 90 minutos. Até o apito final, qualquer
coisa pode acontecer. Com isso, a motivação de quem
joga permanece viva até o final, e também a de quem
assiste.
Com
essa imprevisibilidade e variedade, o futebol seduziu torcidas pelo
mundo inteiro, criou verdadeiras religiões. Mas sempre com uma
base social operária. Hoje, em tempos de mercantilização
e mundialização, e também de corrupção
e tramóias, cada vez mais torcer por bom futebol se tornará
um ato de nostalgia e resistência.
Daniel
M. Delfino
Junho
2015
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