19.11.08

1968, o ano vermelho - parte 2 de 3


4. Visão panorâmica

Foi esse mundo em processo de rápidas transformações que chegou ao fim da década de 1960 apresentando vários sintomas de saturação e de ruptura iminente. 1968 foi o momento em que essas rupturas finalmente eclodiram. Passemos pois a um rápido exame dos principais fatos e seus cenários.

4.1 China

A China realizou sua revolução socialista à revelia de Moscou. Desde os anos 1930, sob a liderança de Mao Tsé-Tung, o PC chinês desenvolveu uma linha de atuação autônoma, organizou um exército de base camponesa, combateu a invasão japonesa (1931-45) contando praticamente apenas com suas próprias forças, e finalmente expulsou do país a própria burguesia chinesa (1949). A burocracia soviética teve que admitir a contragosto um parceiro incômodo na liderança do bloco pós-capitalista (a China se tornou também uma potência nuclear nos anos 1950) cujo prestígio e popularidade crescia na mesma proporção em que declinava o encanto mundial com a URSS (em especial depois que o XX Congresso do Partido em 1956 expôs os crimes de Stalin).

Enquanto os intelectuais e militantes socialistas mais atentos se decepcionavam com a URSS e se afastavam dos PCs, Mao acumulava sua própria cota de crimes e arbítrios burocráticos, que permaneciam em larga medida ignorados. Mao lançou a política do Grande Salto Para Frente (1958), uma desastrada tentativa de industrializar rapidamente a China, que resultou em desorganização da economia agrícola e numa fome que matou milhões de pessoas (quando se trata da China, todo acontecimento envolve milhões). Em resposta, a burocracia do PC chinês tentou afastar Mao do poder.

Mas o Grande Timoneiro recusou-se a sair de cena e lançou sua “Revolução Cultural” em 1965, uma tentativa de recuperar o controle do Estado. O mote da Revolução Cultural maoísta era a “continuidade da luta de classes após o socialismo”, ou seja, a necessidade de eliminar os resquícios capitalistas e burgueses da sociedade socialista, que estariam convenientemente corporificados justamente nos setores adversários de Mao no próprio partido. Seu programa era a coletivização total da economia e da sociedade através de comunas, e sua base social de apoio inicial estava na juventude. Os estudantes formaram milícias de “Guardas Vermelhos” e, brandindo o “Livro Vermelho” de Mao, puseram-se a lutar contra a burocracia do partido. Sob esse pretexto, os intelectuais foram perseguidos em massa e enviados para campos de trabalhos forçados. Qualquer pessoa que usasse óculos era um alvo em potencial, e a própria cultura milenar tradicional chinesa foi reprimida e tornada clandestina.

A Revolução Cultural degenerou em guerra civil aberta, com enfrentamentos armados em várias regiões do país entre facções rivais do partido. A disputa interburocrática escapou ao controle dos burocratas e ensejou a auto-organização das bases. Esse fenômeno se manifestou com o aparecimento da “Comuna de Xangai” (1966-67). A forma característica de organização do duplo poder operário, o conselho de trabalhadores (nascido na Comuna de Paris e renascido nos soviets), ressurgiu na China, ameaçando os burocratas com a arma da auto-gestão e auto-organização. O discurso esquerdista que Mao adotou de modo oportunista materializou-se inesperadamente pelas mãos dos operários de Xangai. A Comuna transformou-se em exemplo para a China e o mundo e converteu-se num perigo para o próprio dirigente. Para controlar a situação, Mao apelou para o exército, proibiu os contatos entre as fábricas, substituiu as comunas surgidas espontaneamente por “comitês revolucionários” (órgãos do partido) e entrou em acordo com os demais burocratas para uma partilha do poder.

A Revolução Cultural durou oficialmente até a morte de Mao (1976). Apesar de todas as suas degenerações (a maioria das quais não era conhecida no ocidente), ela serviu de exemplo e pano de fundo para as mobilizações de 1968. O maoísmo internacionalizado (mais como inspiração indireta do que como corrente controlada diretamente por Mao) transformou-se numa das mais influentes forças da esquerda ocidental, ao lado dos trotskistas, guevaristas, situacionistas, anarquistas, etc., que estimulavam as massas a romperem com os PCs stalinistas e tomarem as ruas.

4.2 Vietnã

O Vietnã, parte do que era a colônia francesa da Indochina, contava com um movimento comunista organizado desde a década de 1930, com um PC estruturado e liderado por Ho Chi Mihn. Durante a II Guerra, os comunistas vietnamitas foram a vanguarda na luta para expulsar o invasor japonês. Na seqüência, teve curso a chamada “Guerra da Indochina”, para expulsar o imperialismo francês, o que foi concretizado em 1954. Como resultado, o Vietnã foi dividido, tal como a Coréia, numa metade comunista (Norte) e outra capitalista (Sul).

Imediatamente, começam as atividades da guerrilha comunista (vietcong) na metade sul, visando reunificar o país. Temendo que a queda do Vietnã do Sul capitalista precipitasse a revolução socialista no restante da Ásia (a “teoria do dominó”), os Estados Unidos intervém na região, ampliando gradativamente o seu número de “conselheiros militares” até chegar ao engajamento de mais de 500 mil soldados, no auge da guerra. Sem nenhum objetivo econômico, nem mesmo remoto, a intervenção estadunidense visava unicamente isolar o comunismo no sudeste da Ásia. A intervenção se desenvolveu ilegalmente, pois não houve uma declaração formal de guerra por parte do Congresso estadunidense. O complexo industrial-militar arriscou o prestígio do país numa aventura que acabou resultando em desastre e obteve uma derrota humilhante.

O imperialismo foi derrotado em seu objetivo político, embora o Vietnã perdesse mais de um milhão de vidas, sem contar feridos e desabrigados entre a população civil (foi despejada sobre o Vietnã uma quantidade de bombas maior do que a que foi lançada sobre a Europa inteira na II Guerra, além de armas químicas, etc.), contra pouco mais de 50 mil soldados estadunidenses mortos. A intervenção estadunidense durou de 1962 a 72 e o Vietnã do Sul finalmente caiu sob o domínio vietcong em 1975. O momento em que se tornou óbvio que os Estados Unidos não venceriam a guerra foi justamente em 1968.

Em 31 de janeiro deste ano, o vietcong lançou a “ofensiva do Tet” (ano novo do calendário lunar chinês adotado em todo o extremo oriente) sobre o Vietnã do Sul, atacando alvos estratégicos em todo o país, com direito a um ataque suicida à própria embaixada estadunidense em Saigon. A batalha pela capital estendeu-se até meados do ano. Os objetivos militares da ofensiva não foram imediatamente alcançados, mas a ousadia do ataque e a vitória moral incontestável consolidaram a virada decisiva na guerra.

A opinião pública mundial estava majoritariamente a favor do lado mais fraco (o vietcong contou também com discreto apoio material de URSS e China). A luta contra a invasão estadunidense era uma das causas que unificava mundialmente a esquerda. Em todo o mundo aconteciam manifestações contra a guerra. A Guerra do Vietnã (ou “guerra dos Estados Unidos”, do ponto de vista dos vietnamitas) foi a primeira a ser transmitida pela TV (um guerrilheiro vietcong rendido e algemado no ataque à embaixada foi executado em frente às câmeras por um general com um tiro na cabeça). As imagens brutais da guerra, do sofrimento do povo vietnamita, da desagregação do exército estadunidense (cerca de um terço dos soldados voltou viciado em drogas pesadas como cocaína, ópio e heroína) apareciam diariamente nos telejornais. Um dos momentos mais chocantes da guerra (e do século) foi o massacre da aldeia de My Lai (16 de março), em que a imagem de crianças fugindo de um bombardeio de napalm horrorizou o mundo.

Isso ajudou a criar uma forte oposição à guerra no interior mesmo dos Estados Unidos. O país ficou mais dividido do que na própria Guerra de Secessão, com protestos se multiplicando por toda parte, o que acabaria por tornar politicamente inviável a continuidade da intervenção.

4.3 França

Quando se fala de 1968, é muito comum reduzir todos os acontecimentos desse ano ao “Maio de 68” francês. Essa exclusividade é um erro, como tem se tentado demonstrar ao longo desta seção: 1968 ecoou também muito além da França. Entretanto, o privilégio dos franceses é inquestionável. Desde a época em que Paris era chamada de “a capital revolucionária do século XIX”, a França tem sido o país em que a luta de classe se manifesta da maneira mais aguda, mais transparente e mais “clássica”, servindo de parâmetro para o restante do mundo.

A Europa como um todo havia perdido peso geopolítico depois da II Guerra, em face da primazia dos Estados Unidos, erigidos em líderes incontestáveis do imperialismo no confronto com o “Império do Mal” da URSS. Mas a França continuava sendo um país rico, com instituições burguesas sólidas, orgulhosa de seu passado e de sua cultura. As concessões à classe trabalhadora haviam tornado a economia estável, embalada por um grande crescimento do consumo. O número de aparelhos de TV aumentou de 1 para 10 milhões entre 1959 e 1969. A população universitária também explodiu, passando de 100 mil para 651 mil entre 1945 e 1970 (A Era dos Extremos, p. 283 e 295).

Em meio a essa estabilidade, o PC francês, o maior do ocidente, dirigia tranqüilamente a CGT, principal confederação sindical francesa, pondo em prática uma política de acomodação e colaboração com a patronal. Juntamente com o Partido Socialista, o PCF formava a esquerda “oficial” parlamentar comprometida com a estabilidade do Estado burguês francês, então dirigido pelo general Charles De Gaulle.

Desde o fim da guerra da Argélia (1962), que suscitou mobilizações da esquerda, pouca coisa parecia indicar que o país estivesse à beira de um terremoto social. Entretanto, os movimentos tectônicos se desenvolviam em silêncio na consciência coletiva. A prosperidade burguesa e o consumismo haviam aparentemente anestesiado o proletariado, mas a apatia dos trabalhadores era falsa, como se verá. Por outro lado, o tédio e a insatisfação com o conservadorismo geral da sociedade e o autoritarismo das instituições estavam adquirindo proporções explosivas num setor social muito peculiar: a juventude. Sem ser propriamente uma classe social, a juventude constitui o período em que os indivíduos se definem politicamente e aderem à ideologia de alguma classe. Em 1968, isso significava definir-se contra a totalidade da realidade existente, ou seja, contra o capitalismo e também o socialismo “oficial” burocratizado da URSS e do PCF.

O descontentamento passou às vias de fato pela primeira vez já em fevereiro de 1968. A demissão de Henri Langlois, fundador e diretor da Cinemateca Francesa (instituição que foi o berço da revista “Cahiers du Cinema”, onde por sua vez se formaram os cineastas da “nouvelle vague”, movimento inspirador e contemporâneo de diversos “cinemas novos” pelo mundo, como o do Brasil), pelo ministro da cultura André Malraux, provocou a primeira e muito surpreendente onda de rebeliões e confrontos de rua, opondo a polícia à normalmente cordata tribo dos cinéfilos.

Nos meses de março e abril, crescem as manifestações contra a guerra do Vietnã, especialmente nas universidades. As manifestações culminam na ocupação da reitoria do campus de Nanterre (subúrbio de Paris) em 22 de março. O campus é fechado pela polícia em 2 de maio. No dia 3, é a vez da Sorbonne rebelar-se, sendo também fechada pela tropa de choque (fato inédito nos 700 anos de história da legendária universidade). As manifestações passam para as ruas do Quartier Latin, onde se erguem barricadas contra a polícia. Os manifestantes passam de centenas para milhares, depois para dezenas de milhares. Os estudantes usam os paralelepípedos do calçamento e coquetéis Molotov; a polícia cassetetes e gás lacrimogêneo. Até 10 de maio, auge dos conflitos, centenas são presos e feridos.

Os estudantes ganham o apoio de vários setores operários, de professores, servidores públicos, comerciários, bancários. Algumas centrais sindicais convocam uma greve geral de solidariedade, em 13 de maio. Nesse mesmo dia, a Sorbonne é desocupada pela polícia e imediatamente ocupada pelos estudantes. A greve geral escapa ao controle dos dirigentes sindicais, e se alastra por meio das ocupações de fábricas. Um proletariado que se julgava domesticado irrompe no primeiro plano da cena com desconcertante vitalidade.

Surge o fenômeno das “greves selvagens”, desencadeadas à revelia das instituições sindicais, às vezes expressamente contra a orientação dos dirigentes e conduzidas pelos próprios operários, pondo em pauta reivindicações radicais como a auto-gestão e lançando mão de métodos de ação direta, como as ocupações. A fábrica da Renault na cidade de Billancourt, principal distrito industrial da França, também é ocupada. Barricadas e confrontos se instalam em várias outras cidades do país. Produtos e serviços diversos começam a faltar e generalizam-se as filas e racionamentos. A TV estatal é tomada pelos jornalistas e até o festival de cinema de Cannes é interrompido.

Até o final de maio 10 milhões de trabalhadores entram em greve (de uma população de pouco mais de 40 milhões de habitantes) e o país é virtualmente paralisado. Essa foi a maior greve geral da história da França, uma das maiores em um país imperialista e serviu como demonstração de que o capitalismo não é de modo algum invencível. A esquerda oficial, stalinista e pró-patronal, estava sem ação e as massas seguiam os pequenos grupos, como os anarquistas do alemão Daniel Cohn-Bendit (líder estudantil de Nanterre), os situacionistas e as organizações trotskistas e maoístas. Os cartazes e pixações exprimiam a realidade de uma revolução em marcha: “é proibido proibir”, “a imaginação no poder”, “sejamos realistas: peçamos o impossível” e “abaixo o trabalho alienado”.

A questão da tomada do poder esteve de fato na ordem do dia. O problema é que os comunistas (o PCF) “temiam a revolução”, como denunciou Sartre. A esquerda oficial fez de tudo para impedir a união entre operários e estudantes e colaborou com o governo para por fim à greve e às ocupações. O governo e a patronal convocaram negociações com os sindicatos e fizeram concessões (o salário mínimo aumenta de 2,22 para 3 francos por hora de trabalho, a jornada de trabalho é reduzida e também a idade mínima para aposentadoria). O acordo é assinado em 27 de maio e o governo age para contornar a crise. De Gaulle demite os ministros da educação e do interior, dissolve o Parlamento, convoca eleições para o final de junho e reúne-se secretamente com generais fora de Paris para planejar uma possível invasão da cidade.

Os dirigentes sindicais ligados ao PCF defendem a aceitação dos acordos nas assembléias das fábricas, mas o movimento não reflui de imediato. As greves e ocupações prosseguem durante o mês de junho e acontecem inclusive mortes nos confrontos com a polícia. O problema é que, sem conseguir avançar na derrubada da ordem, o movimento naturalmente retrocede. As divisões, o despreparo e a falta de um projeto definido facilitam a ação da burguesia. As manifestações são proibidas durante a campanha eleitoral e Paris volta aos poucos à “normalidade”. As pequenas organizações de esquerda são dissolvidas e dezenas de estrangeiros são banidos do país, entre eles Daniel Cohn-Bendit.

As eleições parlamentares completam a vitória da direita: os menores de 21 anos (maioria dos que estiveram nas barricadas) não votavam e os operários abandonam “seus” partidos tradicionais (PCF e socialistas, que haviam abandonado e traído os trabalhadores na greve). Os setores médios, assustados por semanas de agitação e violência, temendo a “ameaça comunista”, reforçam o poder da direita. As votações terminam em 30 de junho e os partidos gaullistas obtém uma esmagadora maioria de quase 80% das cadeiras. O velho general sobreviveu ao movimento por um triz, mas renunciaria em abril de 1969.

4.4 Tchecoslováquia

A Tchecoslováquia era um dos países mais industrializados e cultos dentre aqueles que compuseram a chamada “cortina de ferro”, o conjunto de Estados tornados satélites da União Soviética ao fim da II Guerra. O regime das “democracias populares”, governos de partido único em que os PCs controlados por Moscou exerciam o poder de forma ditatorial, representava uma aberração para uma sociedade medianamente desenvolvida como a de alguns países do leste europeu. Já na Hungria em 1956 houvera um levante operário contra o stalinismo postiço que fora imposto ao país, duramente reprimido pela URSS.

Pouco mais de uma década depois, a Tchecoslováquia também faz sua tentativa de desestalinização, com a subida ao poder de Alexander Dubček, em 5 de janeiro de 1968, representando um setor do Partido Comunista disposto a fazer mudanças democratizantes no regime. A chamada “Primavera de Praga” começou como um movimento de cima para baixo, a partir da proposta de Dubček de reformar a Constituição para permitir a organização de outros partidos e reconhecer os direitos civis, a liberdade de expressão, um poder judiciário independente, etc., sem modificar o controle estatal da economia.

As propostas foram acolhidas entusiasticamente pela sociedade e pelos intelectuais, que debatiam publicamente os rumos do “socialismo com rosto humano” e pediam maior celeridade nas reformas. A esquerda internacional passou a observar com muito interesse a experiência em curso na Tchecoslováquia, pois ela parecia trazer consigo a tão esperada demonstração de que o socialismo podia e devia ser algo completamente diferente da burocracia de tipo soviético.

Entretanto, a URSS não estava disposta a permitir que experiências desse tipo se generalizassem, pois isso poderia abrir as portas para a contestação ao domínio da burocracia no seu próprio interior. Em 20 de agosto, tropas do Pacto de Varsóvia invadem a Tchecoslováquia e levam Dubček preso. O dirigente é forçado a renunciar e suas medidas são revogadas.

Mas a população tchecoslovaca não aceita passivamente a intervenção soviética. Desenvolve-se um movimento de desobediência civil, organizado a partir de uma rede improvisada de rádios clandestinas. Publica-se um “decálogo da desobediência” como resposta da população ao invasor soviético: não sei, não conheço, não direi, não tenho, não sei fazer, não darei, não posso, não irei, não ensinarei, não farei. Logo em seguida à prisão de Dubček, decreta-se uma greve geral, com iniciativas de ocupação de fábrica e auto-gestão operária que se prolongarão até o ano seguinte. Depois de enquadrado por Moscou, o PC retoma aos poucos o controle e restabelece a “normalidade” do regime burocrático.

A repressão à “Primavera de Praga” serviu para aumentar o descrédito da URSS e dos PCs que lhe seguiam, pois mostrou que a burocracia é intrinsecamente irreformável e inerentemente hostil à democracia operária e à auto-organização popular. A imagem brutal dos tanques soviéticos em Praga afastou boa parte dos jovens esquerdistas do modelo da URSS, que se mostrara afinal tão cruel e liberticida quanto o imperialismo estadunidense no Vietnã.

4.5 Estados Unidos

O macartismo dos anos 1950 havia exterminado a esquerda estadunidense, perseguindo, prendendo e banindo intelectuais e militantes. Nos anos 1960, uma nova esquerda começa a nascer ligada não mais aos sindicatos e partidos políticos, mas aos movimentos sociais. As transformações sociais do pós-guerra atingiram intensamente os Estados Unidos, elevado definitivamente à condição de principal potência econômica e militar imperialista. O “american way of life” que dava aos trabalhadores casas, carros e eletrodomésticos era vendido como modelo civilizatório para o mundo, mas deixava para trás seus descontentes no próprio país.

Entre esses descontentes, estava a metade feminina da população. O feminismo ressurgiu renovado e abalou o conservadorismo da família estadunidense tradicional. As mulheres lutavam não apenas para exercer as mesmas profissões e ocupar os mesmos espaços institucionais que os homens, mas para serem vistas como iguais em todos os aspectos, inclusive no direito ao prazer sexual. A demanda por liberdade sexual unificava os jovens de ambos os sexos nas experiências da contra-cultura (já referida na seção 3.2).

A capital mundial da contra-cultura era São Francisco, na Califórnia, que já tinha sido a sede do movimento literário “beatnik” nos anos 1950. Os escritores beatniks foram os primeiros a rejeitar o “american way of life”, pôr o pé na estrada, buscar experiências e praticar uma poesia próxima da vida concreta (ou uma vida próxima da poesia). Muitos beatniks ainda estavam ativos no surgimento do movimento hippie, que também recusava a sociedade estabelecida. Mas os hippies iam muito além da recusa, buscando uma visão positiva da vida, baseada na afirmação da sexualidade, do amor, da paz, da natureza, da consciência, da espiritualidade (pagã, cristã, budista, taoísta, hare-krishna, etc.) e da arte.

Os hippies protagonizaram o chamado “Verão do Amor”, no bairro de Haight-Ashbury, em meados de 1967. Milhares de jovens com roupas coloridas e cabelos compridos enfeitados por flores passavam o tempo em recitais de poesia e concertos de rock psicodélico, embalados por LSD e amor livre. Entre 16 e 18 de junho aconteceu o Monterey Pop Festival, o primeiro grande festival de rock, que projetou mundialmente os astros da cena hippie (Jimmy Hendrix, Janis Joplin, The Doors, Jefferson Airplane, Gratefull Dead, etc.).

Os hippies acabaram atraindo uma atenção incômoda sobre si. Eram vistos como uma espécie de circo ou atração turística, o que os levou a sair de São Francisco e espalhar-se por comunidades rurais em todo o país. As experiências dos socialistas utópicos do século XIX, que tentaram criar um novo modo de vida em comunidades isoladas, foram reeditadas em pleno século XX pelos hippies. Além dessa “vanguarda” mais radical que se engajava na experiência das comunidades alternativas, o movimento hippie se transformou também numa inspiração difusa para o comportamento e o visual de milhões de jovens. O auge e ao mesmo tempo a queda da contra-cultura seria o festival de Woodstock, entre 15 e 17 de agosto de 1969, quando quase meio milhão de jovens celebraram a paz, o amor, a música e as drogas, num momento em que o rock já havia se tornado um negócio milionário.

A recusa da sociedade pelos hippies era mútua, ou seja, o movimento também era perseguido e cercado por preconceito. Uma parcela do movimento estava consciente da posição de desafio em que se encontrava em relação à sociedade e se colocava ao lado de outros movimentos de oposição. A postura hippie não se limitava à busca individual por prazeres imediatos, pois muitos se engajaram nas marchas contra a guerra do Vietnã, nas ocupações de reitoria, etc.

Outra importante luta em curso era a dos negros pelos direitos civis, já que na maioria dos estados vigoravam leis segregacionistas idênticas às do Apartheid sul-africano. Um dos marcos dessa luta foi a marcha sobre Washington liderada pelo pastor protestante Martin Luther King em 1963, que levou 1 milhão de negros à capital do país. As leis segregacionaistas começam a cair em vários estados, fruto das mobilizações. Os negros adquirem na prática o direito ao voto, sendo nisso ajudados por militantes que se deslocam para os bairros negros e regiões pobres para registrá-los como eleitores.

O despertar da população negra, que compunha o setor mais marginalizado e precarizado do proletariado, ensejou o aparecimento de líderes mais radicais, como Malcolm X, que chegou a afirmar que “não há capitalismo sem racismo”. Malcolm X acaba assassinado em 1965. A repressão policial contra os negros recrudesce. Em resposta à repressão, forma-se a organização dos Panteras Negras, que estimula os negros a exercerem o direito constitucional de portar armas para se defender da polícia. Ao lado do “Flower power” dos hippies, os Panteras Negras inspiram o “Black power”, a afirmação da negritude como valor positivo e fonte de auto-estima.

A mobilização contra a guerra do Vietnã acaba sendo o movimento para onde convergem todas as forças sociais contestatórias. Ecoando o que acontecia na Europa, os estudantes, principalmente universitários, organizam protestos contra a guerra e ocupam as reitorias. Ao todo, três milhões de jovens estadunidenses serviram no Vietnã ao longo dos 10 anos de invasão. Muitos dos veteranos, mutilados e traumatizados, aderem aos protestos contra a guerra. Organiza-se um movimento contra o alistamento militar. O campeão mundial de boxe, Mohamed Ali, que se recusou a lutar no Vietnã, foi punido e teve seu título cassado, pois afirmou publicamente que “não fazia sentido os pobres (negros) estadunidenses matarem os pobres em outros países”. Estabelece-se a explosiva conexão entre a luta racial e a luta de classe. Nas Olimpíadas do México, em outubro de 1968, dois atletas negros estadunidenses fazem o gesto dos Panteras Negras no pódio e são banidos do esporte.

À medida em que se aproxima a campanha para as eleições presidenciais de 1968, a guerra se torna um dos principais temas. A ofensiva do Tet, em janeiro, expôs o desastre da intervenção estadunidense no Vietnã. A televisão, veículo tradicionalmente chapa-branca, ousou criticar a condução da guerra numa série de reportagens sobre a ofensiva, em fevereiro, o que “formalizou” a perda do apoio da opinião pública pelo governo. O movimento contra a guerra consegue a adesão do senador Eugene McCarthy, pré-candidato democrata às eleições presidenciais. O senador Robert Kennedy (irmão do presidente assassinado em 1963), até então vacilante, também entra na corrida presidencial e se posiciona contra a guerra. Desmoralizado, o presidente Lindon Johnson anuncia sua renúncia à tentativa de reeleição, em 31 de março, deixando para o vice-presidente Hubert. Humphrey a tarefa de continuar sua política.

A convenção do Partido Democrata para a escolha do candidato presidencial estava marcada para acontecer em agosto, em Chicago. As organizações estudantis, dentre elas a SDS (Students for a Democratic Society, espécie de “UNE estadunidense”), o movimento anti-guerra, os hippies, os panteras negras, a esquerda democrata, diversas correntes de militantes, intelectuais e artistas politicamente ativos planejam ações para convencer os delegados do partido a escolher uma chapa anti-guerra. Antes disso, porém, o país é abalado por uma série de acontecimentos dramáticos.

Em 4 de abril Martin Luther King é assassinado no Tennessee, depois de fazer um discurso em apoio aos lixeiros em greve. Imediatamente, os negros se revoltam em todo o país. Tumultos acontecem nos bairros negros em centenas de cidades. Somente em Chicago 20 quarteirões são incendiados. Sob o pretexto de reprimir o vandalismo, a polícia intervém pesadamente na repressão e dezenas de negros são mortos, centenas são feridos, milhares são presos.

Para conter a situação, o presidente assina em 11 de abril a Lei dos Direitos Civis, concedendo legalmente a igualdade aos negros. Ao mesmo tempo, a lei cria dispositivos repressivos que proíbem atravessar os estados para manifestações (com o objetivo de impedir uma nova marcha como a de 1963), dificultando os protestos. No comando da repressão estatal pontificava J. Edgar Hoover, chefe do FBI durante várias décadas, o qual organizou um programa de contra-inteligência (COINTELPRO) para enfrentar a juventude politicamente ativa. A instabilidade continua: em 5 de junho Robert Kennedy é também assassinado, baleado num hotel em Los Angeles.

A campanha eleitoral presidencial prosseguia e Richard Nixon, comprometido com a continuidade da guerra, foi indicado como candidato na convenção republicana, que aconteceu entre 5 e 8 de agosto em Miami. Também nesta cidade registraram-se confrontos entre os negros e a polícia, com mortos e presos. O clima político do país era bastante tenso. Apesar da repressão, alguns milhares de manifestantes conseguem chegar a Chicago para a convenção democrata. Sob pesado cerco policial, os manifestantes realizam comícios e protestos. Durante a semana da convenção, entre 26 e 30 de agosto, os confrontos entre manifestantes e policiais são violentos, com centenas de presos e feridos. O programa anti-guerra é derrotado e Humphrey indicado candidato.

Os enfrentamentos entre a polícia e os manifestantes anti-guerra em agosto, que ficariam conhecidos como “Chicago riots”, podem ser considerados o equivalente estadunidense ao maio parisiense. Como na França, a disputa se resolveu com a vitória eleitoral da direita: Nixon foi eleito presidente em 5 de novembro. Ao contrário da França, porém, o proletariado estadunidense praticamente não se moveu. Os estudantes, as feministas, os negros e os pacifistas foram deixados à própria sorte na luta contra os poderosos órgãos da repressão.

Nos Estados Unidos, 1968 não foi um ápice, mas o ponto de partida para um ascenso de lutas populares. As organizações de esquerda renasceram e impulsionaram mobilizações importantes durante os anos seguintes. O movimento contra a guerra prosseguiu, colaborando para obter a saída dos Estados Unidos do Vietnã em 1972. O governo concedeu cotas para os negros e mulheres nos órgãos públicos e no ensino, obtendo com isso uma relativa pacificação destes setores.

A década de 1970 seria pródiga em lutas sociais que obtiveram avanços democratizantes, como as leis votadas em vários estados para a suspensão da pena de morte, a legalização do aborto, e a descriminalização do uso de maconha.

Daniel M. Delfino
Novembro 2008

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