22.6.10

Copa 2010: torcer ou não torcer, eis a questão



“Enquanto houver burguesia, não vai haver poesia”
Cazuza
“Burguesia”

O futebol moderno surgiu nas escolas públicas britânicas em meados do século XIX e se popularizou no fim do século entre os operários. Enquanto a burguesia cultivava passatempos caríssimos como caça à raposa, golfe, iatismo ou alpinismo, o povo jogava e torcia pelo futebol. Marinheiros e operários britânicos levaram o futebol ao mundo inteiro no início do século XX e o tornaram o esporte mais popular em quase todo o planeta, com raras exceções, como os Estados Unidos. O futebol é o esporte mais democrático do mundo por ser um jogo simples, dinâmico, plástico, e também por não requerer equipamentos nem qualidades físicas excepcionais e poder ser praticado em qualquer terreno.

Como toda produção humana na época capitalista, o futebol se converteu em mercadoria, quando os clubes se tornaram empresas que vendem o espetáculo aos seus torcedores nas arquibancadas e nas poltronas diante da TV. Empresários de jogadores, publicitários, emissoras de TV, fabricantes de materiais esportivos, cartolas de todos os calibres faturam uma fortuna que chega a 1% do PIB mundial (Estadão, 30/04/2010). A FIFA, que administra esse negócio extremamente lucrativo, se gaba de ter mais países filiados do que a ONU (208). O evento máximo do futebol é a Copa do Mundo da FIFA, disputada por seleções nacionais e não por clubes, o que aumenta as implicações políticas da paixão pelo jogo.

Os governantes romanos inventaram a técnica de aliciar o povo com pão e circo. Dando seqüência a esse método, os políticos burgueses exploram a popularidade do futebol para fazer propaganda dos seus governos. Com a “squadra azzurra” bicampeã em 1934-38, Mussolini conseguiu o que Hitler tentou com a Olimpíada de Berlim em 1936, ou seja, usar o esporte para demonstrar o triunfo de seu governo. O mesmo fez a ditadura militar brasileira com a excepcional seleção campeã em 1970, provavelmente o melhor time de futebol que já existiu. E também a ditadura argentina, que organizou a Copa de 1978 para ser vencida em casa por sua seleção (o tiro quase saiu pela culatra, pois as Mães da Praça de Maio se aproveitaram da presença da imprensa internacional no país para denunciar a desaparição dos seus filhos nas mãos da repressão). Em 1990, a Alemanha reunificada fez da vitória na Copa o “cartão de boas vindas” do capitalismo para a população da recém-anexada Alemanha Oriental.

“...e quem, tendo visto a seleção brasileira em seus dias de glória, negará sua pretensão à condição de arte?”
Eric Hobsbawm
“A era dos extremos”, p.197

Quem tenta remar contra a maré do entusiasmo futebolístico corre o risco de sair seriamente chamuscado, como o líder da extrema-direita francesa Jean Marie Le Pen, que repudiou a seleção tricolor de 1998 porque não era francesa e sim composta por “estrangeiros” (como o argelino Zidane), e teve que engolir esse time com toda sua diversidade vencer a Copa. O exemplo de Le Pen não foi o único, pois houve setores da esquerda brasileira que torceram contra a seleção de 1970 porque o time estava identificado com a ditadura, na sua interpretação. Esse comportamento se prolonga ainda hoje em setores da esquerda, que consideram que a vitória da seleção numa Copa favorece o governante de plantão, e portanto torcem contra.

O argumento de que a vitória da seleção na Copa representa um atraso político não se sustenta, uma vez que as derrotas da seleção não fazem com que o povo avance em sua consciência, seu grau de organização e seu desejo de derrubar o governo. Ganhar uma Copa torna o povo mais feliz, mas perder uma Copa não torna o povo mais revolucionário. Além disso, quando a seleção brasileira perde, perde para algum país cujo governante burguês de plantão também fará propaganda da sua vitória, da mesma forma espúria e oportunista como qualquer político brasileiro faz. Ao invés de torcer contra a seleção brasileira, a esquerda anti-futebol deveria não torcer para ninguém e fazer melhor o seu trabalho.

A dificuldade da esquerda para ganhar os trabalhadores para um programa revolucionário deve ser buscada em sua própria incompetência e não nas virtudes dos jogadores verde-amarelos. Neste ano de 2010, com um calendário preenchido por Copa e eleições, a esquerda revolucionária deixou de dar apoio à principal luta da classe, que foi a greve dos professores de São Paulo, passou o 1º semestre inteiro preocupada com disputas de aparato e se omitiu da tarefa crucial de antecipar as campanhas salariais. Agora, com a proximidade da Copa e das eleições, cogita-se na possibilidade de torcer contra a seleção, o que acabaria de colocar a esquerda de vez contra o sentimento geral da classe.

É evidente que todo governante burguês se aproveita dos triunfos esportivos, assim como se aproveita da descoberta do pré-sal, ou dos resultados da economia, ou de qualquer outro acontecimento que na verdade provém da exploração do trabalho, mas isso não quer dizer que esses feitos lhe pertençam. Pertencem aos trabalhadores, que são os criadores de toda a riqueza em suas múltiplas formas. Assim como qualquer realização social, o futebol não pertence à burguesia e sim aos trabalhadores que o adotaram e o tornaram um esporte capaz de produzir momentos de verdadeira beleza. O futebol é uma autêntica paixão popular, e a esquerda não pode ignorar esse sentimento, ou pior, se colocar contra.

“É mais um gol brasileiro, meu povo! Encha o peito, solte o grito na garganta e confira comigo no replay!”
Sílvio Luís
narração dos gols da seleção

O futebol é o ópio do povo? Sim, mas assim como a religião na célebre frase de Marx, muito citada e também muito deslocada do seu contexto, o ópio não tem apenas um sentido negativo, já que também funciona como “o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração”. O futebol, assim como a arte ou o sexo, podem ser momentos de refúgio e prazer num mundo alienado. A ruptura da alienação requer uma mudança social global, mas enquanto se luta por essa mudança, a alegria não tem que ser banida do mundo. Lutar por uma saída revolucionária não significa cultivar permanentemente o mau humor dos militontos. Militar pela revolução também significa militar pelo prazer, o que inclui a arte e também o futebol-arte.

Decidir sobre torcer ou não para a seleção em função do uso que os políticos e a burguesia fazem do esporte é menos legítimo do que discutir se o time do técnico Dunga e da CBF representa ou não o verdadeiro futebol brasileiro. Esse futebol pôde ser encontrado no jogo Santos X Santo André pela final do campeonato paulista (e isso quem diz é um corintiano), mas não será praticado pelo batalhão de trogloditas com o qual Dunga congestionou o meio de campo da seleção. Como todas as riquezas nacionais, o futebol também está sendo roubado do Brasil, uma vez que a administração corrupta e reacionária dos clubes e da CBF tornam o futebol brasileiro incapaz de manter seus melhores jogadores no país. A conseqüência é uma seleção “alienígena”, sem identidade com o país, sem vínculo com os torcedores/trabalhadores, e adaptada a um tipo de jogo que privilegia o resultado em lugar do espetáculo.

A seleção convocada para a Copa de 2010 é a consagração da mediocridade em detrimento do talento, da habilidade, da imaginação, do improviso e da fantasia que fizeram do estilo brasileiro de jogar futebol uma manifestação tão genuína da cultura nacional quanto o samba ou a capoeira. Os negros, mulatos e pobres brasileiros em geral aprenderam a jogar futebol em campos de terra e com bolas improvisadas; essa é a origem da técnica e domínio de bola. Quando jogavam com os brancos nos clubes de elite, as faltas contra negros, mulatos e pobres não eram marcadas pelos árbitros, o que os obrigava a se esquivar para não apanhar; essa é a origem do drible.

Foi com um futebol de drible e habilidade que o Brasil encantou o mundo e ganhou mais Copas do que qualquer outro país. E entre as seleções que apresentaram um futebol brilhante, mas não venceram Copas, como a Hungria de 1954 (os jogadores magiares abandonaram a seleção e o país depois que o stalinismo reprimiu a revolta popular anti-burocrática de 1956) e a Holanda de 1974 (a lendária “laranja mecânica”, cujo comportamento libertário atraiu a simpatia mundial, jogando sem guardar posição, levando as mulheres para a concentração e bebendo cerveja), está o Brasil de 1982. Foi assistindo aquela seleção, aos 7 anos de idade, que este escriba se apaixonou pelo futebol e se tornou um torcedor canarinho para o resto da vida. Aquele futebol não existe mais, mas a paixão permanece. Torcer pela seleção não significa deixar de ser crítico da estrutura do futebol. A esquerda muitas vezes concede apoio crítico a determinada política quando isso favorece o diálogo com a classe, e aqui declaro a minha torcida crítica pela seleção brasileira. Em 2010, estarei também torcendo pela seleção, contra Dunga, contra a CBF e contra a burguesia, e ao lado dos trabalhadores.

Daniel M. Delfino
22/06/2010

Um comentário:

Antonio Ozaí da Silva disse...

Daniel,

Parabéns pelo texto!
É uma "provocação" necessária e instigante.

abraços e tudo de bom,