22.11.07

O Bope e a (in)“consciência social”

(Comentário sobre o filme “Tropa de elite”)



Nome Original: Tropa de elite
Produção: Brasil
Ano: 2007
Idiomas: Português
Diretor: José Padilha
Roteiro: Bráulio Mantovani e José Padilha
Elenco: Wagner Moura, Caio Junqueira, André Ramiro, Fábio Lago, Milhem Cortaz, Fernanda Machado
Gênero: ação, crime, drama
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/

1. O “efeito escândalo”

“O Rio de Janeiro tem mais de 700 favelas, quase todas dominadas por bandidos armados até os dentes. No resto do mundo essas armas são usadas para fazer guerra; no Rio são armas do crime.”

“A verdade é que a paz depende de um equilíbrio delicado entre a munição dos bandidos e a corrupção dos policiais. Honestidade não faz parte do jogo. É um equilíbrio instável que pode ser abalado pela menor das brisas.”

Existem filmes que se transformam em acontecimentos, pois transcendem o universo particular dos freqüentadores de cinema e se tornam assunto obrigatório em todas as rodas de conversa. Impõem-se como um tema geral do qual simplesmente é impossível fugir. “Tropa de elite” se encaixa nessa categoria. O filme foi em parte baseado no livro “Elite da tropa”, de André Batista, Rodrigo Pimentel (ambos com patente de capitão e ex-membros do Batalhão de Operações Especiais – BOPE – da PM-RJ, formados em direito e sociologia respectivamente) e Luis Eduardo Soares (antropólogo e ex-subsecretário de segurança do Rio entre 1999 e 2000 e consultor de segurança nacional em 2003). Sobre a base do livro, o diretor José Padilha (“Ônibus 174”) e o roteirista Bráulio Mantovani (“Cidade de Deus”) construíram uma história fictícia em que se entrelaçam as vidas de três policiais do BOPE.

A princípio, “Tropa de elite” se tornou assunto obrigatório pelo fato de ter sido assistido por quase meio milhão de pessoas antes mesmo de ter estreado no cinema, circulando na forma de cópias de DVD vendidas por camelôs. Com o nome de “BOPE”, o filme foi vendido com o valor agregado de “fruto proibido”, ou seja, com um sabor adicional de transgressão que lhe deu um apelo irresistível aos compradores. O alvoroço provocado pelo filme, guardadas as devidas proporções, é da mesma natureza daquele que cercou o vídeo do YouTube que mostra Daniela Cicarelli fazendo sexo na praia. Algo que podemos denominar de “fator escândalo”, que nunca fez mal para o marketing de nenhuma novidade. Não apenas se tratava de um filme vendido em banca antes mesmo de estrear nas telas (fato já tornado corriqueiro pela audácia dos camelôs), mas de um filme que já vinha precedido de uma certa reputação (devidamente distorcida e amplificada pela propaganda boca a boca) de conter cenas fortes, pesadas, “secretas”, como se estivesse expondo sem autorização cenas reais da ação do BOPE ou coisa parecida.

Tudo o que é proibido se torna ainda mais atraente. Especialmente se a proibição se aplica ao objeto em questão por conter cenas de violência extrema, tortura, morte, etc. Nesse caso, a morbidez latente no público se satisfaz voluptuosamente com o produto, sem se importar que lhe seja oferecido pela via da pirataria. Na terra de ninguém do mercado negro, a propaganda enganosa dos camelôs chegou ao ponto de vender com o nome de “BOPE” o documentário “Notícias de uma guerra particular” (de Katia Lund e João Moreira Salles, 1999), obra que trata excepcionalmente bem do mesmo tema, mas não tem parentesco com a produção em questão. Chegaram a circular até mesmo cópias do “BOPE II”, e outras invencionices, com sabe-se lá qual conteúdo, tirando partido da consagrada prática das continuações, tão ao gosto da indústria cultural.

2. Pirataria e mercado capitalista

“Com base nas estatísticas das ocorrências, era só o comandante botar as viaturas nos lugares certos e os cidadãos iriam ficar protegidos. Mas não é assim que a polícia funciona. A polícia depende do sistema e o sistema não trabalha para resolver os problemas da sociedade, o sistema trabalha prá resolver os problemas do sistema.”

“Tem policial que sobe o morro para buscar o arrego (grana que cobra para aliviar o tráfico de drogas). Os traficantes vivem em guerra, mas também querem sobreviver. Para que trocar tiro com a polícia, se dá para negociar?”

Controverso desde o início, “Tropa de elite” dividiu os comentários entre os favoráveis e os contrários à prática da “pirataria”. O editorial da revista SET (edição 244, outubro de 2007), especializada em cinema, diz que “é bizarro acompanhar os mais afobados defenderem o 'direito' de camelôs de vender as cópias ilegais, em uma absurda 'democratização cultural'”, pois “A pirataria não é 'democratização', não é uma conseqüência das novas tecnologias, não é a desculpa dos espertos. É crime. Simples assim”.

De fato a idéia de “democratização cultural” é absurda, mas por outros motivos. Esse conceito é uma contradição nos termos, pois confunde democracia (um valor político) com o acesso a bens de consumo (uma realidade econômica). O capitalismo é capaz de massificar bens de consumo, e o faz abundantemente (embora desigualmente, pois uma pequena quantidade de consumidores tem acesso a uma grande quantidade de mercadorias), sem que isso proporcione enriquecimento humano para os indivíduos, pois sob a forma de mercadoria, qualquer produto do trabalho humano perde sua característica de valor de uso em favor do mero valor de troca. Em se tratando de um produto cultural, isso significa que a sua mensagem essencial não pode ser apreendida, pois o que prevalece na sua recepção é a embalagem, o invólucro comercial, o marketing, em detrimento do conteúdo. Se o produto cultural esvaziado não acrescenta nenhum conteúdo ao indivíduo, não contribui em nada para sua emancipação política (democrática) e humana.

A democratização cultural real jamais será obtida por meio do mercado capitalista. E nem por meio da pirataria, que é parte desse mercado. O equívoco fundamental do argumento do editorial está em separar crime de mercado, como se as atividades criminosas (e aqui inclui-se obviamente não só o comércio ilegal de cópias de filmes piratas, mas todo tipo de negócio ilegal, como o próprio tráfico de drogas) não fossem parte orgânica do mercado capitalista, ou o mercado capitalista como um todo não fosse essencialmente criminoso. Seria porém esperar demais da crítica de cinema contemporânea a capacidade de situar corretamente o sentido histórico e social do capitalismo como modo de produção estabelecido com base na morte, na violência, na fraude, no roubo, na mentira; enfim, sob a base do crime praticado em escala cataclísmica e genocida. Toda e qualquer relação econômica capitalista é essencialmente criminosa, já que se desenvolve sob o pressuposto da mais-valia, ou seja, de trabalho não pago (roubado).

Além disso, o argumento não explica porque a pirataria “não é uma conseqüência das novas tecnologias”, porque na verdade não argumenta, simplesmente decreta que se trata de um crime. Como porta-voz dos interesses corporativos da indústria cinematográfica, SET evidentemente jamais poderia concordar com a pirataria. A revista simplesmente não pode se colocar a questão de por que as pessoas se arriscam a comprar DVDs de procedência e qualidade duvidosa e nem a hipótese de que essa disposição possa ter alguma relação com a impossibilidade material de grande parte desse público de freqüentar o cinema. Essa impossibilidade jamais será sanada pelas vias “normais” do mercado capitalista, pois a lógica global desse sistema produz cada vez mais seres humanos “supérfluos” que não tem acesso sequer aos bens necessários à sobrevivência, que dirá aos “supérfluos” bens culturais.

Qualquer discussão sobre o mercado capitalista pautada no horizonte da legalidade está fadada ao fracasso, pois a ilegalidade é inerente ao sistema. A pirataria é somente um braço auxiliar do mercado. No caso em questão, a propaganda boca a boca originada pelos camelôs ajudou a promover o filme melhor do que qualquer técnica de publicidade. Aliás, na mesma edição de SET, o diretor se defendeu da acusação de que o vazamento das cópias piratas tenha sido premeditado como estratégia de marketing. A descoberta e a prisão do suposto responsável pelo vazamento, segundo José Padilha, “joga por terra a babaquice de que tudo isso era jogada de marketing”.

Jogada de marketing ou não, o vazamento das cópias piratas modificou completamente o enfoque da recepção do filme pelo público. Nunca saberemos qual teria sido a recepção de “Tropa de elite” caso o seu lançamento tivesse se dado pelas vias “normais”. Dando mais uma prova de seu compromisso com a indústria cultural, e expondo o ângulo fundamental pelo qual, na sua opinião, o sucesso do filme deve ser medido, o diretor lamenta a possível perda de bilheteria: “Nunca saberemos se teria um público maior”. Nem mesmo os autores das obras mais arrojadas, como “Tropa de Elite”, estão livres das contingências implicadas no ato de vender seu produto no mercado.

3. Intenção artística e repercussão social

“Quando acontece um crime na área de um batalhão, o responsável tem que correr atrás, só que correr atrás dá muito trabalho. É mais fácil mudar o local do crime do que localizar os criminosos!”

“Quando um cidadão consegue uma viatura para um local, ele tem que pagar! O sistema não tem limite, não tem fronteira, ele já faz parte da cultura da polícia. Até escala de férias depende de propina. O sistema leva os policiais à loucura. Na polícia, quem trabalha direito sempre se @#$%&, de um jeito ou de outro!”

A preocupação aqui é outra, pois o que se trata é de avaliar o filme como objeto estético e acontecimento cultural e a partir daí extrair o significado político da sua repercussão. Pelo que foi adiantado até aqui, houve uma distorção na divulgação do filme-produto, que por conta do “vazamento” para a pirataria, ganhou um ar de curiosidade mórbida clandestina. Como se se tratasse de um “snuff movie” brasileiro. A insistência nesse aspecto, mesmo correndo o risco de algum exagero, se propõe a remarcar o fato de que uma obra de arte pode ganhar vida própria e significado distinto daquele que explicitamente desejou lhe imprimir o artista. Um autor pode fazer um filme desejando dizer uma coisa, e ser desmentido ou não pelos críticos, mas os espectadores em geral podem acabar ouvindo outra coisa completamente diferente, em função do momento social e político do cenário em que esse filme foi lançado.

Se esse é o caso de “Tropa de Elite”, qual teria sido a intenção do autor, a qual se supõe aqui ter sido frustrada? Qual a originalidade deste “Tropa de Elite”?

Trata-se de um filme construído do ponto de vista da polícia, e não do criminoso, como é usual no cinema brasileiro. “Tropa de Elite” faz uma radiografia da polícia e a apresenta como uma instituição falida, inerentemente corrompida, organicamente integrada ao mercado de grandes e pequenas ilegalidades que vão desde as multas de trânsito, o jogo do bicho e a prostituição até os conchavos com políticos, passando pelo tráfico de drogas, carro chefe do sistema. A polícia convive com o tráfico e com os crimes a ele associados, e não os reprime. A repressão de fato é feita pelo BOPE.

O qual, por sua vez, age completamente por fora das normas do Estado de direito, julgando e executando as sentenças no ato em que o crime é cometido: "senta o dedo nessa @#$%%!”. Depois, é só “jogar na conta do Papa”. Os indivíduos que executam essas ordens passam por um processo de treinamento que mais se parece com uma sessão de tortura. E a pressão psicológica que sofrem no exercício de sua função é tão intensa que acaba por destruir sua vida pessoal, matrimonial e familiar.

Dessa maneira, “Tropa de Elite” pode ser visto como uma denúncia global da polícia, tanto de sua “banda podre” como daquela “virtuosa”. Entretanto, a repercussão acabou tomando outra direção. O público o recebeu como uma apologia dos métodos extremos do BOPE.

4. A retórica da guerra

“Para acabar com essa guerra, só desarmando os traficantes. É por isso que o principal objetivo do BOPE não é prender traficantes, mas capturar armas. A polícia tinha 30 mil homens despreparados, mal remunerados e com arma na mão, o BOPE apenas 100. Para cada arma que o BOPE apreende, aparecem outras 3 no lugar!”

Festejam-se as ações dos homens de preto contra os “bandidos”, como se torce para qualquer “herói” hollywoodiano. O público cinéfilo e o telespectador em geral foram educados pelo cinema estadunidense a consumir filmes policiais ou de guerra em que os “heróis” matam “bandidos” às dezenas ou centenas. A colonização da periferia pelo cinema estadunidense difundiu o esquema de narrativa maniqueísta do tipo “mocinho x bandido” e forjou uma “cultura videogame”, em que os “Rambos” não atiram contra seres humanos e sim contra “bonequinhos”, que podem morrer às pencas, porque não são de fato humanos.

A negação da humanidade do inimigo é um dos expedientes fundamentais da legitimação ideológica das intervenções imperialistas (como a guerra para levar a “democracia” ao Iraque, por sobre os cadáveres dos irrelevantes iraquianos) e das operações fascistas de reestruturação social (como o extermínio dos palestinos por Israel). Os “Rambos” e James Bonds torturam, matam, destróem tudo ao seu redor para salvaguardar os sagrados interesses econômicos do imperialismo, e ainda por cima se tornam ídolos de um espetáculo para a periferia. Agora, o espetáculo fica por conta dos “Rambos” da periferia dando cabo dos nossos próprios “bandidos”. Nos shopping centers os cinéfilos festejam a morte dos pobres, pretos e favelados pelos impolutos “heróis” do BOPE. Nas sessões domésticas com cópias piratas a grande massa proletária também comemora a morte dos “bandidos” e não percebe que aquela repressão se voltará contra ela mesma.

De denúncia da polícia, o filme converteu-se assim em apologia dos policiais “heróis”. O público quer uma polícia que atira primeiro e pergunta depois. Como ilustrou a revista Veja, quer uma polícia que “trata bandido como bandido”(Edição 2030, 17 out. 2007). Na linguagem proto-fascista do semanário de direita, a sociedade se divide entre os “cidadãos de bem” da “elite”, a massa confusa, covarde, omissa, no meio e os “bandidos” na outra ponta. Do ponto de vista dessa “elite”, não há outra maneira de lidar com os “bandidos” a não ser a guerra. E na guerra, não se pode ter escrúpulos. Vale tudo. Os fins justificam os meios. Torturar os moradores, matar os que estiverem pelo caminho, tudo o que for necessário deve ser feito para chegar ao alvo.

É por isso que a “elite” que lê Veja festeja “Tropa de Elite”, porque vê nele a consagração do método que gostaria de ver estendido à toda a segurança pública. É ao desejo de sangue, ao que chamamos acima de “morbidez latente” dessa “elite”, que o filme veio responder. “Tropa de elite”, ainda segundo SET, “é o verdadeiro movimento 'Cansei'”, ou seja, o desabafo e o manifesto mais bem acabado do que a direita brasileira pensa atualmente sobre os problemas sociais.

5. Sentimento de culpa

“Enquanto traficante tiver dinheiro prá se armar, a guerra continua.”

A caracterização do filme feita por SET é precisa, o que mostra que mesmo a abordagem superficial é capaz de identificar facilmente a qual discurso ideológico “Tropa de Elite” acaba por servir de reforço. Na vertente oposta do “Cansei”, um certo setor da crítica e do público mais esclarecido reagiu negativamente ao filme. Impingiram aos realizadores a responsabilidade por ter feito uma apologia explícita e sem nuances do BOPE, ao invés de uma denúncia. Destacaram acertadamente a falsidade do discurso de que o BOPE é incorruptível e de que a corrupção é exclusiva da PM convencional, mito de fato reforçado pelo filme. Incomodaram-se também por ver o filme acusar diretamente os usuários de drogas pela violência. Em função desses incômodos e vários outros, chegaram a dizer que o filme em si é fascista.

Esse tipo de reação parte de um certo tipo de consciência “politicamente correta”, certamente bem intencionada, mas não muito bem preparada para digerir a realidade. Tradicionalmente, no cinema brasileiro, a polícia é o bandido e o “bandido” é o “herói” (os exemplos são abundantes, de “Pixote” a “Cidade de Deus”). Essa é a forma como a camada social que consome o cinema brasileiro se acostumou a ver a questão do “crime” e da violência retratados nas telas. Essa camada social, basicamente composta pela pequena-burguesia intelectual ou intelectualizada, encontrou nessa forma de inversão estética da realidade a demonstração da sua “consciência social”, de seu compromisso com os pobres e a justificativa psicológica para a sua omissão política e social com relação a ações realmente capazes de modificar as condições sociais que geram o crime e a violência.

A origem do tratamento “politicamente correto” da miséria que predomina no cinema nacional está no sentimento de culpa da parcela da população que consome esse cinema. Quem expôs com propriedade esse viés foi o psicanalista Contardo Calligaris: “o embate entre a polícia e os cidadãos que ela defende revela, no filme de Padilha, uma especificidade nacional: nas classes privilegiadas e supostamente 'ordeiras', a simpatia pelo crime e a antipatia pela polícia não são efeito, como de costume, de rebeldia e sede de aventuras. Elas nascem de um forte e difuso sentimento de culpa social ou, no mínimo, justificam-se por ele.” Denunciar a miséria nas telas do cinema nacional “engajado” alivia a consciência culpada pequeno-burguesa e encobre com um véu “meritório” a sua omissão política: “somos autorizados a fazer pouco ou nada para que a situação mude porque o sofrimento de nossa consciência nos absolve.”(Folha de São Paulo, 11/10/2007).

É por isso que a novidade de “Tropa de Elite” incomoda tanto. Expor o ponto de vista do policial desvenda a omissão social e política dessa parcela da elite dotada de “consciência social” em suas conseqüências mais graves. De um lado, a omissão produz uma polícia corrupta, e de outro, uma polícia fascista. O policial do BOPE, herói do filme, enxerga a realidade como um campo de guerra, a polícia comum como aliada do inimigo, e os consumidores de drogas como financiadores desse inimigo. Para esses policiais o mundo é assim em branco e preto. Quem pode culpá-los por pensar assim? Já que não se pode, culpa-se os realizadores do filme por terem-no produzido. Como se o problema fosse do filme e não da realidade.

6. Liberdade estética e escolha ideológica

“Se o Rio de Janeiro dependesse só da polícia convencional, os traficantes já tinham tomado a cidade, por isso é que existe o BOPE. Na teoria, o BOPE faz parte da Polícia Militar, na prática, é uma policia completamente diferente. Foi criado para intervir quando a policia convencional não consegue dar jeito, e, no Rio de Janeiro, isso acontece o tempo todo!”

Com certa razão, os realizadores de “Tropa de Elite” acusaram a crítica e a parcela da comunidade cinematográfica que se pôs contra o filme de praticar o bom e velho “patrulhamento ideológico” contra a arte. De fato, no Brasil, é corriqueiro que os artistas de diversos campos, de compositores da MPB a cineastas, sejam cobrados pela “obrigação” de praticar uma “arte engajada”, ou seja, voltada para a denúncia das mazelas sociais do país. Sem entrar no mérito de como os artistas podem contribuir através de seu trabalho para a construção de uma autêntica consciência social emancipadora, é preciso atentar para o fato de que o patrulhamento revela algo de bastante perturbador sobre a miséria das atividades intelectuais no Brasil.

O patrulhamento ideológico sobre obras de arte é um sintoma do caráter subdesenvolvido da inserção da atividade intelectual na opinião pública e na cultura brasileira em geral. Os filósofos, sociólogos, cientistas políticos, etc., não são ouvidos por quase ninguém fora dos seus círculos imediatos de atividade, ou seja, fora da academia. Os intelectuais brasileiros não intervém e não pautam o debate público. Não ocupam o foco da mídia e não atacam as grandes questões. Logo, quem o faz são os artistas, que acabam carregando indevidamente a responsabilidade de debater as questões sociais e sendo injustamente cobrados por isso.

A atuação reativa da intelectualidade é suficiente apenas para forjar uma consciência “politicamente correta” razoavelmente disseminada, materializada no discurso da “cidadania”, dos direitos humanos, da “democracia”, etc. É essa consciência “politicamente correta” que reage negativamente a um filme como “Tropa de Elite”. Pelo que foi exposto acima em relação ao sentimento de culpa pequeno-burguês, não há como levar muito a sério o compromisso ideológico dos patrulhadores “politicamente corretos”. A sua “consciência social” é justamente um dos alvos mais duramente atingidos por “Tropa de Elite”, o que será desdobrado adiante.

Por enquanto o que cabe ressaltar é a legitimidade da escolha estética dos autores de “Tropa de Elite”. Ao artista cabe escolher o objeto que lhe aprouver e retratá-lo com a maior profundidade possível. É por aí que deve ser medido o seu mérito. A escolha do ponto de vista do policial também é perfeitamente legítima. O policial também é um ser humano, afirmação que não deveria ser escandalosa ou surpreendente a quem se acostumou a absolver os “bandidos” e ressaltar o seu lado humano e sua condição de vítimas do sistema (até o capitão do BOPE reconheceu que o traficante “deve ter tido uma infância @#$%%). O policial também é uma vítima.

Os patrulhadores que criticam “Tropa de Elite” como fascista se consideram os portadores da “consciência social”. Consideram-se os donos de uma visão “de esquerda” e por isso criticam um filme que rotulam como “de direita”. Mas do ponto de vista de uma verdadeira consciência social, não se pode criar obstáculos para a arte. Tudo o que existe deve ser filmado, tudo que é filmado deve ser exibido e tudo que é exibido deve ser debatido. Esses pressupostos libertários deveriam ser assumidos por qualquer consciência de fato comprometida com a transformação social.

Se “Tropa de Elite” foi visto não como denúncia e sim como apologia dos métodos da polícia, é porque alguma coisa fugiu do “script”. Não foi apenas a “elite” leitora de Veja que viu o filme, mas a classe trabalhadora que não freqüenta o cinema. E esses consumidores de DVDs piratas compraram a mesma visão da “elite” sobre o BOPE: torcem para os “heróis” contra os “bandidos”. E não foi apenas a colaboração dos camelôs e da pirataria, mas o clima político do país que favoreceu a leitura prevalecente. Nesse caso, a repercussão de “Tropa de Elite” não é uma causa, mas sintoma de uma direitização da sociedade. E é sobre essas questões que o debate precisa se aprofundar.

7. A “consciência social” como alvo

“Quem ajuda traficante a se armar é cúmplice! A guerra sempre cobra o seu preço! Quantas crianças teremos que perder para o tráfico, só para um playboy enrolar um baseado? Viciado financia o tráfico!”

Quer o objetivo dos realizadores tenha sido o lucro oportunista com base num filme polêmico e sensacionalista, quer o vazamento das cópias piratas tenha sido estratégia de marketing, quer tenha dado margem a todos os tipos de exploração (como os bonequinhos do cap. Nascimento e camisetas do BOPE também vendidos por camelôs), quer tudo isso que pode ser dito contra o filme seja verdade ou não, o seu alvo ideológico foi extraordinariamente preciso: a “consciência social” da pequena-burguesia intelectualizada e universitária brasileira.

De acordo com “Tropa de Elite”, ter “consciência social” equivale a ter aulinhas de Foucault na faculdade, “simpatizar” com os pobres, engajar-se nas ONGs, fazer passeatas pela paz, indignar-se com a repressão policial, ser leniente com os “bandidos” e fumar maconha. Essa caricatura de “consciência social” é um retrato real de uma determinada camada social. Um retrato cirúrgico, devastador e incontestável. Tanto assim que a patrulha “politicamente correta” vestiu a carapuça e atacou o filme.

A pequena-burguesia foi posta contra a parede. Ou adere aos métodos fascistas do BOPE, como quer a Veja, ou parte para uma compreensão real dos problemas sociais. O cinema “engajado” e a consciência “politicamente correta” não estavam levando a lugar nenhum, pois como disse ainda o psicanalista Contardo Calligaris, “somos desculpados de nossa inércia pela culpa que sentimos (...) a culpa não produz ação, mas descarrego.”

A hegemonia dessa concepção frouxa de “consciência social” é o resultado da omissão desastrosa de uma intelectualidade puramente acadêmica, que como foi apontado acima, não comparece aos debates públicos. A grande mídia se apropria dos temas mais candentes e faz deles o que quer. Como fez Veja, transformando o capitão do BOPE em operário padrão do seu projeto fascista de reengenharia social.

Se a repercussão de “Tropa de Elite” é um sintoma da direitização da sociedade, ela sinaliza uma derrota da intelectualidade de esquerda, que não soube colocar o debate nos seus termos corretos. Se na sociedade do espetáculo o produto cultural “perde sua característica de valor de uso” e “sua mensagem essencial não pode ser apreendida”, é tarefa dos críticos de esquerda desvendar essa mensagem. É sua tarefa educar a sensibilidade do público para enxergar além das imposturas maniqueístas hollywoodianas.

Essa tarefa não está sendo cumprida. A cultura, o comportamento, a vida concreta, o estado psicológico, moral e sexual dos indivíduos reais não é abordado pela esquerda. A esquerda não assume o debate cultural como sua prioridade política, permitindo que seja conduzido pelas Vejas e SETs da vida. Quando a esquerda intervém, é sob a forma histérica e mesquinha do patrulhamento sobre os autores.

No meio da indigência cultural prevalecente, os diversos sentidos humanos presentes em cada obra, a riqueza de detalhes e nuances, a multiplicidade e a complexidade do real, se diluem na estreiteza das fórmulas prontas, julgamentos peremptórios e alternativas unilaterais: ou o capitão é um herói ou o filme é fascista. É preciso ir além deste método e tratar a realidade (e as obras de arte) como ela é, ou seja, como “síntese de múltiplas determinações” (Marx).

8. A consciência social como alternativa

“PM no morro é inimigo. Para os moradores, quem garante a paz no morro é o 'comando' (do crime)!”

As questões apresentadas por “Tropa de Elite” só podem ser corretamente enquadradas por meio de uma discussão ampliada. A “guerra particular” entre o BOPE e os traficantes e a corrupção da polícia só existem porque o tráfico de drogas é proibido. Se o tráfico não fosse crime, os traficantes não precisariam se armar, não precisariam corromper a polícia e não precisariam enfrentar uma unidade de elite. A proibição é o fato elementar que está na base de todas as questões. É o fato que mais precisaria ser discutido e justamente o que é menos debatido. Certamente as drogas não são proibidas porque o Estado burguês se preocupa com o bem-estar de seus cidadãos, pois do contrário as bebidas alcoólicas e o cigarro, que provocam de doenças a acidentes de trânsito e brigas domésticas e matam milhões de pessoas, também deveriam ser proibidos.

As drogas legalizadas (bebida, cigarro, fármacos) têm uma série de utilidades do ponto de vista do sistema. As massas submetidas a um cotidiano brutal de exploração embriagam-se para não refletir sobre sua condição e não darem ouvidos a questionamentos mais profundos sobre a ordem social estabelecida. As drogas legalizadas anestesiam a sensibilidade, neutralizam a revolta, lubrificam as relações interpessoais empobrecidas, tornam suportável para muitos a miséria humana da sociedade capitalista. Permitem por exemplo que o capitão do BOPE alivie com comprimidos o stress gerado por seu trabalho insano.

Por outro lado, a proibição de um outro grupo de drogas (maconha, ecstasy, cocaína, heroína, LSD) oferece o pretexto para que as populações da periferia vivam em permanente estado de terror sob a mira das armas de policiais e traficantes O população pobre obedece os traficantes por medo, pois é forçada a conviver com eles diariamente na mesma vizinhança, mas não necessariamente gosta desse regime. Ao mesmo tempo, essa população odeia a polícia, pois essa intervém nas comunidades de modo não menos arbitrário e descontrolado que o dos traficantes. A proibição mantém a imensa massa pauperizada permanentemente paralisada pelo fogo cruzado de uma falsa guerra e a impede de entrar ela própria em guerra contra o sistema que perpetua sua miséria.

Além disso, o morro e a periferia não produzem drogas, nem armas, nem lavam dinheiro. Tudo isso é trazido de fora, por meio dos mesmos canais de contrabando que alimentam qualquer outra esfera do mercado. A proibição fornece altas rendas para policiais, magistrados, políticos e banqueiros associados ao tráfico. O tráfico é um negócio rendoso como outro qualquer, parte integrante do mercado capitalista. É um exemplo perfeito da livre concorrência. Pela lei da oferta e da procura, qualquer negócio de alto risco proporciona altos lucros. Para os empreendedores capitalistas que participam do negócio das drogas, a única preocupação é administrar o risco, o que significa subornar as autoridades, que assim se associam ao tráfico. O Estado burguês, associado ao tráfico e comprometido com a repressão, é o exemplo mais bem acabado de crime organizado. Na guerra do tráfico em si, policiais e traficantes, usuários e moradores são apenas peões.

O discurso de que os usuários de drogas ilegais financiam o tráfico está correto, pois isso é uma realidade material indiscutível. Limitar-se a essa constatação porém é um procedimento muito simplista. O que vem primeiro, a violência da guerra contra o tráfico ou a proibição do uso de drogas? O que é causa e o que é conseqüência? Qual é o fundamento da proibição? Por que esse fato fundamental permanece oculto, embora seja o óbvio ululante da questão?

A incriminação dos usuários pela violência vem acompanhada de uma mal-disfarçada recriminação moralista por conta do hábito em si de consumirem drogas. O moralismo não pode admitir que um grande número de pessoas encontre prazer no uso de substâncias que alteram o estado de consciência (assim como não admite o prazer em relações homossexuais, ou mesmo em relações heterossexuais, como a Igreja católica). A repressão ao prazer dos usuários é da mesma natureza da repressão ao prazer sexual e ao prazer em geral. Um assunto privado se torna público por conta da vã pretensão do Estado burguês de legislar sobre a “moral” do indivíduo. Com base numa noção particular de moralidade de origem puramente religiosa, o Estado se arroga o direito de determinar o que os indivíduos podem fazer ou não com seus corpos!

A intervenção do Estado na vida privada dos indivíduos e na forma como experimentam prazer é não apenas uma aberração medieval, mas uma necessidade funcional do ponto de vista da preservação da ordem estabelecida. Indivíduos que dedicam suas vidas à busca do prazer não produzem nem consomem o lixo capitalista. Tornam-se portanto “inúteis” e sua conduta precisa ser reprimida o mais violentamente possível, para que seu exemplo não se dissemine. Daí a importância crucial da criminalização das diversas formas de prazer, que permite ao sistema a repressão brutal contra a autonomia individual. O complemento da criminalização do prazer é a comercialização altamente rentável de falsas alternativas para a miséria humana, como as drogas.

É preciso que fique aqui bem clara também essa questão: as drogas são fonte de prazer para alguns, mas são também falsos alívios para a desumanidade estrutural inerente ao modo de vida vigente. Defender o direito dos indivíduos fazerem o que quiserem com seus corpos, inclusive destruí-los pelo consumo de drogas, não é a mesma coisa que propor a liberação pura e simples das drogas. Proibir o consumo de drogas é absurdo, mas liberá-las é ainda uma pseudo-solução. Mesmo parecendo bastante radical e contando inclusive com excelentes argumentos a seu favor, a liberação ainda é uma solução que fica pela metade do caminho.

O principal argumento a favor da liberação parte da constatação de que a proibição das drogas causa mais mortes do que o consumo das substâncias hoje proibidas. A liberação causaria inegavelmente um aumento drástico da quantidade de usuários. Mesmo considerando-se que nem todo usuário se transforma em dependente (isso comprovadamente acontece apenas com uma minoria) socialmente desajustado e auto-destrutivo, o número de viciados crônicos também aumentaria muito. Mas nem isso provocaria tantas mortes quanto a guerra ao tráfico em curso e suas conseqüências paralelas (corrupção da polícia, tráfico de armas, assaltos à mão armada, seqüestros, etc.) atualmente provocam. Num cálculo frio, o consumo livre de drogas teria menor letalidade social do que tem a proibição hoje em vigor.

Mesmo assim, a liberação pura e simples do consumo de drogas também não soluciona o problema, pois apenas aumenta a oferta de alternativas escapistas para os dramas da existência. Tal como as bebidas alcoólicas, as drogas somente impedem a consciência de se chocar frontalmente com o absurdo da existência humana aprisionada na barbárie capitalista. Sua liberação seria a generalização de mais uma forma de anestesia da consciência. Por mais justa e libertária que seja a luta pela autonomia dos indivíduos em relação às suas formas de prazer, essa luta perde o sentido, torna-se puramente hedonista, egoísta, individualista, se não se coloca no plano da luta mais geral por um outro modelo de sociedade. É preciso construir uma sociedade na qual o prazer e a realização do indivíduo sejam não apenas tolerados, mas colocados como necessidade fundamental a ser atingida, na qual haja recursos infinitamente mais ricos e diversificados do que as ilusórias drogas. É por isso que apenas a consciência socialista é a alternativa real para a emancipação dos indivíduos.

9. Ficção e realidade

“Há comandantes concorrendo entre si nos esquemas de corrupção. PM não sobe ao morro para pegar tiro de bandido por causa de R$ 500,00. Há comandantes que pegam arrego de R$ 6 mil por semana. Na polícia, o sistema protege os corruptos!”

“Tem muito comandante safado que reduz (os números d)a criminalidade jogando defuntos na área de outro batalhão. Tem que refazer relatório, o verdadeiro 'não existiu'.”

A guerra contra as drogas é um falso problema, assim como a liberação pura e simples é uma falsa solução. Enquanto o debate é travado em torno de falsas alternativas, a sociedade prossegue ladeira abaixo na via da barbarização. O sistema capitalista é uma máquina de produzir miseráveis. Para cada “Baiano” morto, outros tantos tomam seu lugar. Tanto os métodos assassinos do BOPE quanto as ONGs movidas por “consciência social” estão enxugando gelo. Ambos perpetuam o modelo social capitalista, inerentemente conflituoso e insustentável.

A ficção de “Tropa de Elite” é capaz de provocar todo o alvoroço que causou porque apresenta de maneira verossímil a violência social no Brasil. Traficantes matam policiais e matam uns aos outros, policiais matam traficantes, policiais e traficantes matam moradores, criminosos matam indiscriminadamente em assaltos, etc. Nesse contexto, a alternativa de uma unidade de elite supostamente incorruptível que se coloca acima da lei para pôr fim à violência generalizada aparece como uma novidade extremamente sedutora.

O problema está em que a legitimação dessa estratégia de repressão do “crime” termina por legitimar toda e qualquer solução autoritária. Uma polícia bem treinada e bem equipada como o BOPE é tudo que a burguesia precisa para conter a luta de classes. A polícia e os braços armados da burguesia (jagunços e assassinos de aluguel) matam ativistas dos movimentos sociais, sindicalistas, lideranças de sem-terra, religiosos, etc. Esses assassinos permanecem impunes, enquanto os ativistas são sistematicamente condenados pela justiça burguesa.

Tudo isso já é uma realidade histórica estabelecida. A política do Estado brasileiro sempre foi de violência sistemática para com as classes subalternas. Negros, índios, mestiços, nordestinos, pobres em geral são vítimas seculares de táticas de extermínio, seja pela força militar, seja por fome, doenças, etc. Desde Palmares a Canudos, chegando a Carandiru, Candelária e Carajás, a tática empregada é o massacre e a deslegitimação. Os opressores “civilizados” matam os oprimidos “bárbaros”. O tráfico de drogas é uma forma moderna de barbárie, uma esfera particular do mercado capitalista, cuja administração proporciona uma excelente desculpa para o prosseguimento do massacre. A morte dos pobres se reveste da devida legitimação moral como parte da cruzada contra o “crime”.

O mecanismo do genocídio compreende não só o aniquilamento físico dos membros do grupo indesejável, como também a negação de sua condição de seres humanos. Um negro, nordestino ou pobre que morre é uma estatística (a ser colocada “na conta do Papa”, ou do Panamericano, ou da Copa do Mundo) insignificante, rotineira e esquecível. Somente o membro das classes dominantes que morre é um ser humano. Um ser que tem nome, tem imagem, tem subjetividade, tem família, tem história. Ele pertence à assim chamada “sociedade”, é um “cidadão” a quem é assegurado o direito “democrático” de “participar”. A sua morte provoca reação indignada da mídia e a cobrança de respostas das autoridades. É por isso que toda passeata pela paz é no fundo hipócrita, pois a guerra social capitalista continua matando cotidianamente os pobres, sem que a “sociedade” se escandalize.

A hipocrisia passa despercebida, pois no discurso da mídia não são pobres que morrem e sim “bandidos”. A construção ideológica da categoria do “criminoso” e do “bandido” retira todo o contexto histórico e social do processo de bestialização dos indivíduos envolvidos no tráfico e desloca o seu enquadramento para o falso plano da individualidade moralmente degenerada. Não se pode admitir a criação da figura inumana do “bandido”, pois o que desumaniza os pobres é o processo social de reprodução do capital. E os verdadeiros bandidos são os beneficiários do processo social capitalista, ou seja, banqueiros, latifundiáros, políticos, etc. Esses sim são bandidos sem aspas.

Denunciar a assimetria no tratamento dado a bandidos de uma classe social e de outra não significa desconhecer que os traficantes são violentos, cruéis, arbitrários, desumanos, etc. Ter consciência social (sem aspas) não significa ser amigo ou complacente com traficantes e criminosos em geral. Significa conhecer a totalidade do processo social que dá origem a tais indivíduos.

10. “O BOPE tem guerreiros que acreditam no Brasil!”

“Se a psiquiatria da PM tivesse que reportar tudo a seus superiores, não teria mais polícia no Rio de Janeiro!”

“É burrice pensar que policiais vão subir favela só prá fazer valer a lei, policial tem família e também tem medo de morrer. Todo policial tem que escolher: ou se corrompe ou se omite ou vai para a guerra!”

A novidade de “Tropa de Elite” é a apresentação sem retoques do processo social que dá origem a policiais corruptos e policiais proto-fascistas. Compreender a repressão em todos os seus mecanismos, a mentalidade militar, a sua formação, é uma tarefa também negligenciada pela consciência social de esquerda.

As Forças Armadas são a instituição fundamental do Estado capitalista. Um Estado nacional qualquer é basicamente o território sob jurisdição de um determinado Exército. Em países periféricos, como o Brasil, a instituição militar não serve à defesa da soberania nacional, pois essa é cotidianamente aviltada pela subordinação aos interesses econômicos do imperialismo sem que nada aconteça. A função do Exército é defender a propriedade privada. A instituição militar se destina a combater o inimigo interno: no passado, os comunistas; hoje, os sem-terra, sem-teto, ativistas sociais, etc. No Brasil há uma aberração única no mundo, a polícia militar, sob jurisdição dos governos estaduais, concebida na insuficiência do Exército precisamente para desencadear a guerra de classes contra as camadas subalternas.

No interior da PM se situa o BOPE. Num dos cânticos de guerra os soldados em treinamento entoam o seguinte: “o BOPE tem guerreiros que matam guerrilheiros!” Um regime político autoritário eventualmente instalado no Brasil só precisa apertar o botão seletor para mudar o alvo das tropas de elite. Ao invés de “bandidos” e traficantes, o BOPE passará a perseguir “subversivos” e “comunistas” com a mesma eficiência. É da natureza da instituição militar obedecer sem questionar.

A defesa dos nazistas em Nuremberg era de que estavam “apenas cumprindo ordens”. A condição de obedecer ordens sem questionar forneceu um falso álibi que só pôde ser desmontado quando os nazistas foram derrotados. Sob certo aspecto, os soldados da Wehrmacht alemã não eram diferentes dos de qualquer outro exército. A condição do soldado (do Exército, da PM ou do BOPE) é a do indivíduo que opta por não questionar. Moralmente, essa posição parece ser extremamente confortável, pois do ponto de vista do soldado tudo já foi pensado antes por outrém. O inimigo pode ser identificado claramente: basta mirar naqueles a quem o comandante ordena que sejam mortos. O soldado não precisa fazer escolhas e lidar com a complexidade: a instituição militar o absorve e absolve. O soldado pode questionar uma missão particular (como o capitão faz em relação à missão do Papa), mas jamais questiona a própria guerra.

Além do enganador conforto moral, a adesão a uma corporação militar fechada, especialmente uma unidade de elite, também proporciona uma sensação de superioridade. No treinamento para o BOPE, a primeira fase não acrescenta nada útil aos indivíduos, apenas seleciona os “fortes” e exclui os “fracos” (na premissa equivocada do filme, os corruptos jamais serão selecionados). Os indivíduos que superam uma seqüência de provações grotescas como as do “treinamento” para o BOPE saem de lá considerando-se superiores aos simples mortais. Como num rito de passagem tribal, a flagelação do corpo resulta em reconstrução do espírito. Na segunda fase, os selecionados recebem reforço positivo: usam roupa preta e daí em diante são chamados de “caveira”. Passam a ter orgulho e confiança. Saem “acelerados”. Até que, depois de alguns anos, a irracionalidade da guerra em que estão metidos se torne insuportável, como se tornou para o capitão.

Quando o capitão disse que o policial honesto “ou se corrompe, ou se omite, ou vai para a guerra”, essa guerra, para ser conseqüente, deveria ser a guerra contra o sistema capitalista. Esse foi o caso de homens como Marighella e Lamarca, que optaram pela trincheira oposta à da instituição na qual foram formados. Esses casos, porém, são a exceção e não a regra. Num processo revolucionário agudo, essa relação precisa ser invertida. Ou seja, os soldados precisam ser ganhos para a causa do povo a quem foram armados para reprimir.

Trata-se, para variar, de uma mais uma tarefa da esquerda, também negligenciada.

“Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição
de viver pela pátria e morrer sem razão”
Geraldo Vandré
“Para não dizer que não falei das flores”

Daniel M. Delfino

18/11/2007

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