5.1.08

“Transformers”: as máquinas da diversão a serviço da ideologia

“TRANSFORMERS”: AS MÁQUINAS DA DIVERSÃO A SERVIÇO DA IDEOLOGIA

(Comentário sobre o filme "Transformers")



Nome original: Transformers
Produção: Estados Unidos
Ano: 2007
Idiomas: Inglês
Diretor: Michael Bay
Roteiro: Roberto Orci, Alex Kurtzman
Elenco: Shia LaBeouf, Megan Fox, Josh Duhamel, Rachael Taylor, Jon Voight, John Turturro, Peter Cullen (voz)
Gênero: ação, aventura, comédia, ficção científica, suspense
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/

Que o cinema de Hollywood é uma das indústrias mais poderosas do mundo, não tanto pelo faturamento que gera (seu lucro perde para o da indústria de videogames), mas pela importância estratégica do conteúdo ideológico que veicula, não é novidade.

Que os filmes estadunidenses, consumidos como diversão aparentemente “inocente” no mundo inteiro, são um instrumento avassalador de propaganda a serviço do imperialismo estadunidense, também não é novidade.

Que tais filmes têm como resultado familiarizar subliminarmente o público mundial com idéias tais como: a superioridade natural e incontestável do modo de vida estadunidense sobre o de qualquer outra cultura; o direito dos Estados Unidos de terem tropas e bases militares em qualquer parte do mundo para proteger seus interesses; o método de resolver qualquer problema pelo uso da força; a prerrogativa das “autoridades competentes” de manter certas coisas ocultas do público “para sua própria segurança”; a inocência acima de qualquer suspeita do povo estadunidense; o heroísmo a qualquer prova de seus soldados; tudo isso também já é sobejamente conhecido.

A questão é que “Transformers” não precisava exagerar tanto. A ideologia estragou a diversão. Quem pagou ingresso para ver os robôs em ação, viu tiroteios com os marines e jatos da força aérea! Num filme sobre duas raças de robôs gigantes alienígenas em guerra, os protagonistas são as forças armadas estadunidenses! Envolver os militares na história revela uma extrema falta de imaginação, pois nos priva do espetáculo de poder ver os robôs gigantes lutando entre si. O duelo dos robôs fica em segundo plano, o que é um brutal desperdício em face das potencialidades criativas tornadas disponíveis pela atual tecnologia de geração de imagens em computador.

Qual é o sentido de fazer um filme com os personagens da antiga série de animação dos robôs que se transformam em carros senão para mostrar os robôs lutando em cenas de ação espetaculares? Na visão dos realizadores, era preciso mostrar algo mais, e esse algo mais é a propaganda explícita das forças armadas estadunidenses. Não havia qualquer necessidade dramática de envolver os militares na narrativa, mas o produtor Spielberg e o diretor Michael Bay aparentemente fizeram questão de alistar os “Transformers” na “guerra contra o terror” de Bush.

O engajamento permeia todo o filme. A história começa com uma base estadunidense sendo atacada no Qatar (sempre o Oriente Médio). Em seguida, começam as desconfianças de que o ataque seja proveniente dos “vilões” de sempre, os países do “eixo do mal”, citados nominalmente como suspeitos em vários momentos: Rússia, China, Irã, Coréia do Norte. Um secretário de defesa paranóico conduz a investigação dos incidentes sob o pressuposto de que o país corre risco iminente de um ataque terrorista massivo (há citações quase literais de discursos bushianos).

Mesmo quando se constata que se trata de uma infiltração alienígena, outras mensagens secundárias cujo efeito vai na mesma direção ideológica são despejadas sub-repticiamente ao longo da narrativa. Para lidar com a invasão alienígena, as forças armadas estadunidenses serão capazes de adaptar prontamente a sua munição para destruir qualquer tipo de inimigo, num evidente recado dissuasório dirigido a quaisquer adversários potenciais. A próxima guerra será travada nas ruas das cidades e os civis, como o jovem protagonista, serão recrutados como soldados. O mantra de que “sem sacrifício não há vitória” é repetido a todo momento, o que significa que os militares estão dispostos a sacrificar suas vidas (e as nossas) para cumprir os objetivos de seu governo. Evidentemente, os soldados estadunidenses são apresentados de forma a que o espectador se identifique automaticamente com sua causa, são os “bonzinhos” da história, são pais de crianças lindas, etc. Ao mesmo tempo, não se constrangem com o ato racista, intolerante e autoritário de exigir que seu companheiro de origem hispânica deixe de falar em castelhano e se expresse apenas em inglês.

Apesar de endossar a política do governo estadunidense e a prática de seus militares, o filme se dá ao luxo de brincar com a percepção de parte da população do país de que algo errado está acontecendo. O governo mais culpado do mundo somente pode se manter no poder se tiver a confiança do povo mais inocente de todos. Para manter a confiança desse povo, é preciso infantilizá-lo. O povo tem que ser tratado como criança, como quem não pode saber tudo o que está acontecendo. Daí a necessidade de indústrias como Hollywood e a Disneylandia, canais de TV como CNN e Fox news, eventos como o Superbowl, etc.

A mistificação da realidade é tão grande e sistemática, imiscuindo-se por todos os poros, que acaba tendo o efeito inverso de fazer com que algum tipo de desconfiança residual sempre desponte. De alguma maneira, o povo sabe que seu governo protege interesses escusos. É daí que nascem as “teorias da conspiração”, forma distorcida, semi-consciente, embrionária e tipicamente estadunidense de percepção da existência da dominação de classe, que também vigora naquele país, como em qualquer outra formação social capitalista.

O filme faz algumas brincadeiras explorando essa desconfiança. Um dos robôs da raça dos Decepticons, transformado em carro da polícia, traz na lateral, ao invés do tradicional e mentiroso “para proteger e servir”, a descrição da verdadeira função da polícia na sociedade de classes: “para punir e oprimir”. Nos créditos finais de “Transformers”, os pais do protagonista Sam, em entrevista para a TV, dizem que confiam no governo, mas isso pode ser lido inversamente de maneira irônica como advertência para que o espectador não confie. O filme brinca com isso, mas ao mesmo tempo aceita. É como se dissesse: “o governo usa métodos questionáveis e esconde a verdade, mas isso é necessário, porque é assim que tem que ser, para que possa triunfar sobre 'o mal', e porque tudo sempre fica bem quando acaba bem, quando chega ao 'final feliz'”. Por meio da diversão e da comédia, somos convidados a também concordar com esse raciocínio.

O maior perigo de um filme como “Transformers” está na forma como envolve a propaganda explícita do imperialismo estadunidense na embalagem inocente de uma comédia. Nem só de batalhas da força aérea e dos marines contra os robôs vive o filme. É preciso fornecer também interlúdios românticos e alívios cômicos. O filme brinca com a atmosfera das “teorias da conspiração”, com a crença em alienígenas e OVNIs, com a ignorância geral do público sobre o que o governo esconde. Brinca com o hacker negro, que aparece estereotipadamente para ser escarnecido como parte de um subgrupo racial já acostumado a ser tratado como criminoso pela polícia. Há até um momento de zombaria com as bizarrices da globalização, quando o soldado em plena ação é atendido por um operador de telefonia indiano (quem nunca foi atendido por operadores de telemarketing entediados, contaminados pela praga do gerundismo e obrigados a empurrar ofertas de produtos e serviços indesejáveis?).

Separando-se as cenas de ação propriamente ditas e sua grosseira propaganda das forças armadas, o que sobra é uma espécie de mistura de “Homens de preto” com “Velozes e furiosos”. Uma comédia ágil, bem articulada, fluente na linguagem da cultura pop, repleta de referências e devidamente adaptada para a geração MTV. Há muita diversão em “Transformers”, desde que, evidentemente, deixe-se o cérebro do lado de fora da sala.

Numa indústria cultural feita para um público infantilizado, é preciso recorrer permanentemente a fórmulas pré-fabricadas. As mesmas narrativas básicas se repetem em todos os roteiros do cinema estadunidense: o confronto de Davi e Golias (o inimigo sempre parece mais poderoso que os heróis), o mito da segunda chance (Sam recebe a incumbência de carregar o cubo pelo qual os robôs estão lutando, e com isso tem a chance de passar no teste de futebol em que foi reprovado; Mikaela tem a chance de roubar um carro para salvar a pátria, sem se sentir culpada; o capitão dos marines tem a chance de matar sozinho um dos Decepticons e com isso vingar sua base destruída), a morte dos coadjuvantes (como o robô Jazz, convenientemente caracterizado como um negro), o indefectível final feliz, o gancho para as possíveis continuações, etc.

Apesar do conteúdo militarista e pró-imperialista e dos clichês da fórmula narrativa, há também subsídios interessantes para uma análise sociológica da cultura estadunidense. O primeiro elemento que se sobressai nesse aspecto é o fetichismo escancarado do automóvel. Hollywood já havia tornado popular décadas atrás o simpático fusca “Herbie”, que só faltava falar, e lançou recentemente a animação “Carros”, em que os veículos experimentam dilemas humanos. Mas “Transformers” representa um salto de qualidade na subjetivização dos objetos. Os carros ganham vida, vontade própria, inteligência, consciência e capacidade de fala. Ganham até mesmo contornos antropomórficos, na forma de robôs gigantes.

Os Estados Unidos já foram descritos como um país cujos habitantes tem cabeça, tronco e rodas. Se os indivíduos tem cada vez menos características humanas e cada vez mais o aspecto de objetos de consumo, os objetos de consumo, por sua vez, assumem características humanas. Para se sentirem efetivamente humanos, os humanos precisam da ajuda dos objetos. Tentam através dos carros complementar aquilo que lhes falta. A criação ficcional de carros que assumem a forma de robôs antropomórficos é a materialização final dessa fantasia de humanização dos objetos. Numa sociabilidade mediada por objetos, os homens se tornam eles próprios objetos, e os objetos, sujeitos. Os robôs de “Transformers” têm até a sensibilidade suficiente para escolher a trilha sonora adequada para criar o clima entre Sam e a garota na qual está interessado (os Autobots aprenderam inglês pela internet e adquiriram também um excelente repertório de músicas “pop”), em algumas das cenas cômicas mais geniais dessa produção.

Por falar em interesse romântico, chegamos ao X da questão. A obsessão de Sam é ter um carro, porque só assim poderá sair com uma garota. Em toda sociedade os indivíduos precisam apresentar determinadas qualidades atraentes para serem considerados parceiros sexualmente viáveis. Na sociedade estadunidense contemporânea, essas qualidades não estão ligadas ao ser do indivíduo, mas a seus objetos e pertences. Para ser considerado sexualmente apto, o jovem precisa cumprir certos requisitos: no caso dos garotos, é preciso ter um carro. O valor de um homem é medido pela beleza e potência de seu carro. As qualidades do automóvel se tornam uma espécie de atributo sexual da masculinidade. No caso das garotas, é preciso se transformar diretamente em objetos, ou seja, objetos sexuais, corpos desejáveis, o que em função da preferência estadunidense, significa que devem ostentar uma magreza quase anoréxica. E precisam adicionalmente ter o cuidado de selecionar o “tipo certo” de parceiro.

Além disso, os jovens em geral precisam ter uma origem social “correta”. E isso nem sempre é possível, como no caso do casal de protagonistas, em que garoto tem um cachorrinho que precisa de analgésicos (a polícia estadunidense tem uma especial obsessão por controlar as substâncias que os jovens introduzem em seus corpos) e a garota tem uma ficha criminal “herdada” das atividades do pai ladrão de carros.

Esses elementos comportamentais formam os passos de uma espécie de programação obrigatória para a vida dos indivíduos, cujo destino já está traçado de saída. Cumpridos os pré-requisitos materiais, o casal pode se relacionar, com o objetivo de futuramente constituir família e erguer uma casa, que por sua vez se torna objeto de obsessão dos adultos. A casa precisa ser enorme, ter um jardim, um caminho de pedra cortando o gramado, etc. Todos os aspectos da vida são experimentados como parte de uma competição a ser vencida por meio da ostentação. A vida é uma encenação, em que o importante é impressionar os demais com os aspectos exteriores e materiais. É preciso ter a melhor casa, o melhor carro, o melhor corpo, os melhores objetos, do contrário se adquire a imagem e a condição de um “perdedor”, condenado a ser virgem até os 40 anos.

É nesse tipo de sociedade competitiva, paranóica, superficial, materialista e desumanizada que os jovens vivem. Não é à toa que são recrutados com facilidade para lutar nas guerras da burguesia estadunidense. Mesmo aqueles que convivem com condições materiais limitadas, como Sam, com seu carro que é aparentemente uma lata velha caindo aos pedaços, são educados a crer que um destino especial os espera (o carro revela ser um robô alienígena) e que terão a oportunidade de salvar o mundo e conquistar a rainha do baile.

Quanto mais pobre é a realidade dos indivíduos, como os jovens negros e hispânicos que se alistam nas forças armadas estadunidenses, maior é a ilusão de que estão lutando para salvar o mundo e conseguir uma vida melhor como recompensa. Quanto mais pobre é a realidade, mais rica tem que ser a fantasia. Quanto maior a mentira, mais crível ela se torna. E no final não será mais possível distinguir quem é humano e quem é robô.

Daniel M. Delfino
29/12/2007

2 comentários:

[tabita] disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
[tabita] disse...

não vi ainda o filme, mas verei. ótimo texto. são os sentimentos que tenho, sempre que assisto a filmes americanos, especialmente os ambientados em conflitos bélicos. o mundo é deles, e eles são o bem - o mal era o (dito) comunismo, agora é o oriente médio, o terrorismo. democracia se impõe? não é um paradoxo? coisas do imperialismo ianque, a ser confrontado pelos trabalhadores que, organizados, derrubem a ditadura do capital.