8.2.08

O Corinthians para os corintianos



No dia 13 de outubro de 2007 comemoraram-se os 30 anos da histórica conquista do Campeonato Paulista de 1977 pelo Corinthians, numa final contra a Ponte Preta. Era o primeiro título oficial depois de uma longa fila de 23 anos, desde o lendário Campeonato do IV Centenário de São Paulo, de 1954.

Nesses 30 anos entre 77 e 2007, o Corinthians conquistou 10 Campeonatos Paulistas (que somaram-se aos 15 anteriores para fazer do clube o maior vencedor da competição), 2 Copas do Brasil, 4 Brasileiros e 1 Mundial. Ou seja, os últimos 30 anos, ou mais especificamente os últimos 15, foram o período mais vitorioso da história do clube, quando se acumularam mais e mais importantes títulos do que em toda a vida precedente da agremiação. Se já era um dos clubes mais tradicionais e dono da 2ª maior torcida do país, o Corinthians tornou-se também um dos mais vitoriosos.

Entretanto, os torcedores que estiveram no Pacaembu na tarde de 13 de outubro de 2007 para a comemoração dos 30 anos e para o jogo contra o Internacional/RS pelo Brasileiro do ano passado não estavam vislumbrando a possibilidade de novas conquistas e sim, ao contrário, angustiados com a ameaça de rebaixamento do time para a 2ª divisão nacional. O rebaixamento acabou se concretizando, ao fim do certame, em dezembro, não sem antes expor a nação corintiana ao vexame de ver o presidente do clube afastado em meio a um escândalo policial. As investigações da justiça sobre a origem do dinheiro que a então parceira MSI investia esbarraram em lavagem de divisas do crime organizado internacional, especificamente da máfia russa, de quem a MSI seria fachada.

Na esteira dos escândalos e do afastamento da direção, organizaram-se às pressas eleições para uma nova diretoria, ao final das quais os remanescentes do mesmo grupo dirigente permaneceram no comando, tornando-se depositários duvidosos da complicada tarefa de recolocar o clube no caminho das conquistas. Há algo de muito errado acontecendo com o Corinthians hoje, que não poderá ser resolvido por uma simples mudança de nomes na diretoria. Para ter uma dimensão da gravidade dos problemas, é preciso recuperar uma parte da história do alvinegro.

A lembrança do título de 1977 é fundamental porque nos leva a um passado não tão distante, em que era possível um time ficar 23 anos sem ganhar um campeonato importante, e mesmo assim ver sua torcida crescer ao invés de diminuir. Esse fenômeno paradoxal merece uma explicação sociológica.

A torcida do Corinthians é a 2ª maior do país, mas está fortemente concentrada no Estado de São Paulo e em especial na região metropolitana da capital. O crescimento da torcida esteve indissoluvelmente ligado ao próprio crescimento da metrópole paulistana nas décadas de 1950, 60 e 70, período de forte urbanização e industrialização, e que coincide com boa parte da fila corintiana.

Naquelas décadas, trabalhadores de todas as partes do país e em especial do Nordeste emigravam em massa para São Paulo. Ao estabelecer-se, incorporavam juntamente com outros caracteres da sociabilização proletária o hábito de torcer para o Corinthians, time aliás fundado por operários em 1910. Nada mais natural para essa população sem terra, sem teto, favelada, lutadora, do que torcer para um time “sem teto”, já que o Corinthians não tem estádio (precisamente o contrário de uma torcida rival, que se vangloria de que seu time tem um estádio enorme, mas esquece de mencionar que esse estádio foi construído com dinheiro desviado do Estado, em terreno “doado” pelo Estado, o que é bastante coerente, já que se trata de um time fundado pela burguesia).

Torcer para um time que não é campeão é uma expressão peculiar de uma certa atitude geral perante a vida, um espírito de luta, de irmandade na dificuldade, de alegria na tristeza. O corintiano se define como “maloqueiro e sofredor graças a Deus”. Os adversários, naturalmente, não compreendem esse elogio da condição de sofredor, e zombam dele como se se tratasse de uma apologia da derrota. Falta-lhes o nexo que nos corintianos liga a atitude perante o futebol à atitude perante os companheiros de torcida, de bairro, de vivência, e porque não, de classe.

Diz-se que o Corinthians não é um time que tem uma torcida, mas uma torcida que tem um time. Diz-se que essa torcida vai a campo mais para festejar a si mesma do que ao jogo. Diz-se que a torcida corintiana é o 12º jogador e que praticamente entra em campo para empurrar o time. Não é à toa que ficou conhecida como fiel torcida (fidelidade atestada por feitos surreais como a inacreditável invasão do Maracanã em 1976). Todos esses ditos são verdadeiros, embora sua origem esteja ligada a um passado mais romântico do futebol. Hoje praticamente todas as torcidas são iguais, todas tem suas facções organizadas, seus gritos de guerra para empurrar o time, suas escolas de samba, etc., embora inquestionavelmente ainda caiba à fiel o mérito exclusivo da originalidade e da autenticidade.

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A essência do modo de ser corintiano, a atitude de acreditar, lutar e participar, está em contradição com a própria lógica fundamental da sociedade atual, que exige indivíduos apáticos, passivos, submissos e conformados. As crianças de hoje querem ter todas as suas vontades atendidas apertando um botão do controle remoto ou um comando do videogame, ao invés de brincar na rua, batendo, apanhando e aprendendo com as outras crianças. Do mesmo modo, o torcedor de hoje é educado para ver o futebol pela TV, como um espetáculo qualquer, ao invés de ir para o estádio e participar. O hábito de ir ao estádio é cada vez mais restrito aos torcedores das organizadas, que se transformaram em gangues. O torcedor na sociedade do espetáculo é cada vez mais um espectador distante e cada vez menos um participante direto.

Quem quer que tenha ido ao estádio uma vez, seja para torcer contra ou a favor do Corinthians, sentiu na pele que a participação da fiel não é uma pretensão vazia, ela de fato acontece e tem seu peso. Justamente por isso, é crucial resgatar a peculiaridade do modo corintiano de torcer. A diretoria recém-empossada fez uma tentativa de resgate, lançando meio que às pressas uma campanha de marketing de camisetas com o dizer “eu nunca vou te abandonar, porque eu te amo, eu sou Corinthians!”, frase bem ao gosto popular, e que faz da campanha um sucesso de vendas. Como já aconteceu com outros clubes grandes rebaixados, pode ser que a 2ª divisão sirva como oportunidade para reaproximar a torcida do time, conectando-a com sua história e sua essência de “sofredor”.

A originalidade corintiana e sua identidade proletária manifestaram-se não só no fenômeno extraordinário e paradoxal do crescimento num período de jejum de títulos, mas também no excepcional movimento da “democracia corintiana”, no início dos anos 1980. Naquela quadra histórica, em que se vivia o fim da ditadura, o proletariado brasileiro protagonizou um dos maiores ascensos de sua história, desencadeando um forte ciclo de lutas sociais e construindo fortes organismos de massas, como o PT e a CUT.

Não há é claro uma relação direta e automática entre identidade de classe, mobilização política e opção futebolística (ou seja, nem sempre proletário e corintiano é sinônimo de grevista). Entretanto, alguma relação existe, pois somente isso pode explicar a coincidência temporal entre as lutas operárias e a democracia corintiana. Naquela experiência sui generis promovida por uma geração de jogadores talentosos, vitoriosos e engajados, implantaram-se práticas coletivas auto-gestionárias e libertárias jamais vistas no futebol, como a decisão sobre contratações, regime de treinamentos, abolição das concentrações, valorização da responsabilidade e da autonomia dos jogadores; práticas que apontavam um modelo para o conjunto da sociedade, que então clamava por democracia. Trata-se do mais importante movimento político da história do futebol brasileiro e um dos mais importantes do mundo.

Também não é coincidência o fato de que os dirigentes do ciclo de lutas operárias da década de 80 (ou seja, o PT) estejam hoje servindo como prepostos do capital financeiro internacional e conduzindo a espoliação do país na nova divisão do trabalho internacional da fase globalizada do imperialismo; assim como os dirigentes do Corinthians fizeram do clube um balcão de negócios do futebol globalizado e suas máfias de “empresários” e “investidores”.

É evidente que o rebaixamento não é o fim do mundo para um clube da grandeza do Corinthians, que certamente voltará a vencer. Mas o episódio serve como um exemplo eloqüente da falência de um certo “modelo” de gestão do futebol. O personalismo, a perpetuação de dirigentes, a falta de transparência, a “caixa preta” das finanças, os contratos nebulosos envolvendo empresários de jogadores, intermediários, publicitários e todos os tipos de parasitas; tudo isso precisa ser varrido para que o Corinthians tenha não apenas uma mera troca de nomes dos dirigentes, mas uma mudança estrutural na sua administração. Por isso propomos:

- Afastamento imediato de todos os dirigentes comprometidos com os atos criminosos da gestão anterior;

- Auditoria externa independente em todas as contas, contratos e departamentos do clube e responsabilização criminal e patrimonial dos culpados pelas irregularidades encontradas;

- Eleições diretas para a direitoria, com o direito de votar e ser votado estendido a todos os
sócios;

O caso do Corinthians não é uma exceção; na verdade o “modelo” falido de administração do alvinegro é a regra entre os grandes clubes do Brasil. Por isso, esses pontos de programa são aplicáveis a todos os clubes, federações e confederações do futebol e do esporte brasileiro em geral. Em função de seu enorme potencial de atrair a atenção das massas, o esporte e especialmente o futebol brasileiro tem sido mantidos sob controle de indivíduos e grupos oligárquicos, autoritários, corruptos, mafiosos, que enriquecem às custas da paixão popular.

A administração predatória e irresponsável desses dirigentes colabora para o enfraquecimento do futebol brasileiro, o êxodo dos atletas, o esvaziamento dos campeonatos, a descaracterização da seleção nacional, a queda do nível técnico, a diminuição do público, o sucateamento dos estádios (da qual o maior exemplo foi a morte de 7 torcedores no estádio da Fonte Nova, em Salvador, em 25/11/07, no que deveria ter sido a festa pelo acesso do Bahia à 2ª divisão), etc.

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Ao invés de enfrentar-se com esse “modelo”, o governo Lula optou por dar-lhe sobrevida (como de resto fez com todos os demais aspectos do atraso brasileiro). Acaba de ser aprovada a “Timemania”, loteria que vai injetar uma fortuna prevista em R$ 114 milhões (segundo “O Globo online”, matéria de 19/02/08) nos clubes brasileiros. Esse rio de dinheiro vai ser entregue aos clubes como forma de facilitar a quitação de dívidas fiscais e previdenciárias, sem que se exija deles nenhuma contrapartida real em termos de afastamento e responsabilização criminal e patrimonial dos culpados pelo descalabro em que se encontram, de transparência administrativa e financeira, reorganização e democratização interna, renovação completa dos atuais quadros dirigentes, etc. Trata-se de mais uma conciliação do governo Lula com um dos setores mais incompetentes, predatórios, corruptos, autoritários e reacionários do país, em troca do apoio venal da “bancada da bola”.

Com uma administração desse quilate é inconcebível que o Brasil tenha sido escolhido para sediar o evento máximo do futebol, a Copa do Mundo de 2014. Está armado o cenário para mais manipulação da paixão popular, mais ufanismo oportunista dos políticos e parasitas, mais chauvinismo e também mais tramóias, corrupção, repressão (como a que os moradores de favelas do Rio experimentaram na época do Pan) e tragédias.

Sem as necessárias mudanças estruturais no futebol e na sociedade, a Copa de 2014 tem tudo para ser a apoteose do pão e circo para as massas. A menos que as torcidas deixem de ser espectadoras passivas do espetáculo político e entrem de vez no campo da luta social.

Fora do futebol os falsos dirigentes, os aproveitadores, os sanguessugas, os empresários, os corruptos, os ladrões, os mafiosos, os criminosos! Salve(m) o Corinthians!


Daniel M. Delfino (trabalhador, estudante, militante e corintiano roxo)

28/01/2008








Um comentário:

Unknown disse...

É isso aí camarada de lutas e de Timão. O Corinthians tem potencial popular para tirar dessa crise alternativas que sejam referência para a mobilização social como foram na época da democracia corinthiana.

Abraço