Mitos e Logos
Na Grécia antiga havia duas palavras, ambas sem tradução exata para as línguas posteriores, que davam nome às narrativas justificadoras que explicavam o funcionamento do mundo e o sentido da vida, o que somos, de onde viemos e para onde vamos: “mitos” e “logos”.
A diferença entre ambas era que o “mitos” explicava o mundo a partir de elementos situados fora do próprio mundo: deuses e criaturas fantásticas; enquanto que o “logos” era a explicação do mundo por elementos presentes nele mesmo. O “mitos” era transcendente, o “logos” imanente. O “mitos” dá origem à religião e ao senso comum. O “logos” dá origem à filosofia, à ciência e à arte.
Ao longo da história do pensamento, “mitos” e “logos” travam uma disputa épica pela consciência dos homens. O “mitos” tem um aliado poderoso, a ideologia, ou falsa consciência socialmente determinada. A descrição mitológica do mundo, religiosa e irracional, favorece a ignorância, o preconceito, a superstição e o obscurantismo, elementos que colaboram para manter o poder das classes dominantes sobre as massas.
O “logos” por sua vez tem um aliado ainda mais poderoso, a verdade objetiva, a própria realidade dos fatos, a qual ele se esforça para trazer à tona, num trabalho metódico que constitui a sua essência enquanto modo de pensar oposto ao “mitos”.
Nas épocas históricas de grandes mudanças sociais as classes revolucionárias se apóiam na força da razão para o combate ideológico contra os mitos que constituem o arcabouço do pensamento das classes dominantes, parte do combate político geral. Assim fez a burguesia na sua multissecular luta revolucionária e humanista contra a nobreza e o clero.
A história da evolução
Ao longo dessa luta, alguns marcos se destacam. O primeiro é a descoberta de homens como Copérnico, Bruno, Kepler, Galileu e Newton de que a Terra não é o centro do universo, mas apenas mais um planeta gravitando em torno do sol num universo infinito. O segundo marco foi a descoberta por Darwin de que as espécies animais evoluem pela seleção natural dos mais aptos, de modo que a origem do homem pode ser remontada até seus ancestrais primatas (e no limite, até as bactérias que foram a primeira forma de toda a vida no planeta). Um terceiro marco seria a descoberta do inconsciente por Freud, mas em circunstâncias históricas e ideológicas já alteradas.
A descoberta de Darwin foi publicada no livro “A origem das espécies”, cujo lançamento está completando 150 anos (em 12/02/2009 comemoraram-se os 200 anos de nascimento do próprio Darwin). A teoria da evolução já havia sido elaborada pelo naturalista inglês em 1839, no retorno de uma viagem marítima que se iniciara em 1835, e que teve entre outros destinos o Brasil e as ilhas Galápagos, no litoral do Equador. Mas a teoria permaneceu inédita, pelo receio do próprio autor de chocar a sociedade com uma novidade tão radical.
Em 1858, Darwin recebe uma correspondência de outro cientista inglês, Alfred Russel Wallace, em que este apresenta uma teoria idêntica à sua a respeito da seleção natural. Escrupulosamente, Darwin apresenta as duas teorias à comunidade científica, reconhecendo o papel de Wallace. E somente no ano seguinte publica seu livro, que teve estrondosa repercussão. Assim, Darwin passaria à história como pai do evolucionismo em biologia.
“A origem das espécies” dizia basicamente que a natureza seleciona os organismos mais adaptados a sobreviver em determinado ambiente, de modo que estes organismos transmitem suas características aos seus descendentes, terminando por constituir uma espécie em separado. O mecanismo pelo qual os organismos desenvolvem adaptações (mutação) e transmitem suas características (DNA), somente seria descoberto no século XX, com o avanço da genética, e veio confirmar a intuição genial de Darwin.
A mitologia social burguesa
O destino da teoria de Darwin seria mais um exemplo do fenômeno pelo qual “a ciência destrói mitos e coloca outros em seu lugar”. O evolucionismo destruiu os mitos de que as formas de vida foram criadas por Deus tais como existem hoje e de que o homem foi criado “à imagem e semelhança” do próprio Deus. Entretanto, o conceito de evolução acabou sendo parte do arsenal ideológico que justifica a posição de classe dominante da burguesia.
A ascensão da burguesia como classe é indissociável da ascensão do modo de produção capitalista. O capitalismo tem um papel histórico progressivo (reconhecido por Marx no “Manifesto”) de romper a estreiteza das relações sociais feudais e arcaicas, lançando as bases materiais para a luta da moderna classe trabalhadora por sua emancipação. Por outro lado, o capitalismo aprisiona o homem em relações sociais tais que a sua condição de sujeito se reverte em mero objeto do processo de reprodução ampliada do valor econômico.
As relações sociais capitalistas requerem um arsenal ideológico de justificação, uma mitologia social que se baseia no individualismo. Os pensadores burgueses, de Hobbes e Locke a Adam Smith, tomaram a condição do burguês inglês dos séculos XVII e XVIII e generalizaram essa condição como sendo a “natureza humana” em geral, em todos os lugares e em todas as épocas. Inventaram a lenda da “guerra de todos contra todos” no “estado de natureza” e a necessidade da invenção de um Estado dotado do monopólio da força para proteger a propriedade privada “adquirida pelo trabalho” (na verdade, trabalho alheio), que culmina na estapafúrdia afirmação de que a busca de cada um pelos seus interesses individuais resulta “automaticamente” no bem coletivo, por obra da “mão invisível”.
Competição na natureza e na sociedade
Tais mitos são a base do direito burguês e do Estado moderno, a lógica com a qual os indivíduos explicam a si mesmos a vigência das relações capitalistas, da concorrência, do “livre mercado”, etc. Essas idéias já eram comuns no tempo de Darwin. Na verdade, Darwin se inspirou em Malthus, epígono vulgar dos economistas clássicos, para encontrar na natureza o fenômeno da luta pela sobrevivência. Malthus foi o autor da idéia de que a população cresce mais do que os recursos necessários para sua sobrevivência, de modo que a humanidade estaria condenada a uma luta permanente contra a escassez.
A competição, idéia motriz da sociedade burguesa, serviu de inspiração para que Darwin identificasse a luta pela sobrevivência no mundo natural. A descoberta de Darwin é verdadeira, mas a inspiração de onde ele partiu é falsa. A luta pela sobrevivência existe na natureza como um fato dado, um ponto de partida. Mas a competição na sociedade humana tem causas humanas, sociais e históricas, não naturais. A competição entre os homens não tem a ver com uma suposta “natureza humana egoísta”, mas com a divisão da sociedade em classes, um fenômeno histórico e transitório.
A teoria malthusiana se provou objetivamente falsa, pois tanto a escassez com que se depara a maior parte da humanidade, os trabalhadores, quanto a abundância de que desfruta a minoria, a burguesia, não são dados fixos absolutos e a-históricos, mas relativos, artificiais. Não existe escassez de recursos ou subcapacidade produtiva na sociedade. Ao contrário, existe a irracionalidade das relações sociais capitalistas, que condenam a humanidade a crises econômicas periódicas nos momentos em que as forças produtivas não podem ser colocadas em movimento de modo lucrativo. A miséria caminha lado a lado com a superprodução, pois a atividade produtiva não está colocada a serviço das necessidades humanas e sim do lucro. O problema está, portanto, na lógica capitalista de apropriação privada da produção coletiva.
O mito do progresso e a evolução
Sob pretexto da luta contra a escassez, mas na verdade tendo como objetivo a multiplicação do lucro e a reprodução ampliada do capital, a burguesia está permanentemente obrigada a desenvolver as forças produtivas. O aumento quantitativo da produção é o motor secreto de toda a vida social capitalista, que se alimenta da incorporação de inovações tecnológicas, que por sua vez exigem um avanço constante do conhecimento científico.
Em nome desse mecanismo, o aumento da produção passou a ser sinônimo de progresso. E o progresso passou a ser o objetivo de todas as sociedades. A ideologia burguesa do progresso desconsidera completamente a capacidade da natureza de suportar as intervenções humanas, com as catastróficas conseqüências ambientais com as quais nos defrontamos hoje.
O impulso para o progresso é outro mito social burguês que contamina a compreensão da realidade, a tal ponto de ter sido incorporado pelas próprias ciências naturais. A evolução passou a ser compreendida como um valor moral, sinônimo de melhoria. O processo de evolução, um mecanismo cego e aleatório, que consiste simplesmente no fato de que as espécies animais se adaptam ao seu ambiente, passou a ser tratado como evidência de progresso no sentido burguês, como se houvesse um objetivo previamente traçado para a transformação das espécies animais em seres superiores.
Darwinismo social e imperialismo
Repõe-se assim disfarçadamente o mito da divindade do homem, como se a evolução natural tivesse como objetivo produzir o homem. E dentre os homens, há também os vencedores e os vencidos. A burguesia seria a classe social dominante porque está composta dos indivíduos mais aptos. Da mesma forma os povos europeus teriam o direito de conquistar as raças bárbaras da África, Ásia e América por serem superiores. As diferenças históricas entre as classes e os povos, os processos de dominação pela força, etc., foram grosseiramente apagados da história por essa grotesca teoria do “darwinismo social”.
As conseqüências mais trágicas do darwinismo social foram vivenciadas no século XX, quando, em nome do triunfo da “raça ariana”, os nazistas perpetraram o extermínio de milhões de judeus. O projeto de eugenia, ou melhoramento da raça, realizado pelos nazistas é o mais dantesco corolário do darwinismo social. Desde então os adeptos desse pensamento foram forçados a disfarçar um pouco as conexões abusivas que fazem entre teorias da natureza e da sociedade.
Entretanto, tais teorias continuam despontando, como aquela que foi formulada na década de 1970 segundo a qual o único objetivo dos seres vivos é transmitir seus genes. Todo o comportamento animal (e humano) seria explicado por um instinto que o obriga a difundir seus genes. A teoria do “gene egoísta” transforma um mero instrumento, os genes, em causa de todo o processo da vida, justamente porque ignora a perspectiva da totalidade do fenômeno da vida, que contempla uma esfera natural e uma humana, social e histórica.
História natural e emancipação humana
As diferenças e semelhanças entre a história natural e a história social só podem ser compreendidas na moldura de uma lógica dialética, que explica a continuidade na descontinuidade e a descontinuidade na continuidade. O homem rompeu com a natureza e ao mesmo tempo continuou sendo parte dela. As duas esferas preservam sua ligação e ao mesmo tempo sua especificidade, sua lógica própria, que não pode ser transposta de uma esfera à outra.
A luta pela sobrevivência na natureza não é feita apenas de competição entre os organismos, mas de cooperação e mutualismo, tão abundantes quanto a sobrevivência do mais apto. É falso transpor o individualismo liberal burguês para a história natural, assim como é falso explicar as diferenças sociais por causas naturais. Na história humana, a cooperação e o coletivismo são fenômenos presentes durante milênios, muito mais disseminados que a competição, a qual é típica apenas da época capitalista.
A burguesia enquanto classe é incapaz de desenvolver essa compreensão abrangente da história natural e social. Ao mesmo tempo em que necessita da ciência, a burguesia precisa distorcê-la, fragmentá-la, transformá-la em conhecimento altamente especializado de partes limitadas do real, impedindo uma visão da totalidade. Por negar a compreensão da realidade como um todo, a burguesia acaba repondo a necessidade do mito. Nos Estados Unidos há uma intensa luta de setores religiosos para impor o ensino do criacionismo nas escolas, negando a evolução e defendendo a existência de um “desenho inteligente” na natureza, que só poderia ser obra de um criador.
A sociedade que desenvolve ao máximo a ciência é a mesma que reproduz o obscurantismo religioso. A causa dessa contradição está na divisão social do trabalho e na existência de uma classe dominante que vive às custas do trabalho alheio. O homem somente será livre dessa dominação quando se tornar senhor do seu trabalho, do qual atualmente é escravo. Foi a partir do trabalho que os primatas evoluíram para humanos, quando gradualmente seu corpo, suas mãos, seu cérebro, sua mente, se converteram em instrumentos altamente sofisticados. A evolução dos primatas até se tornarem humanos é explicável no quadro da teoria da evolução descoberta por Darwin. A transformação do homem em efetivamente humano só é realizável por meio de uma prática baseada na teoria marxista da emancipação do trabalho.
Daniel M. Delfino
26/03/2009
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