No dia
29/11 uma decisão do Supremo Tribunal Federal absolveu médicos
por terem realizado um aborto antes do 3º mês de gestação.
Como se trata de um julgamento da mais alta corte do país, com
efeito vinculante sobre instâncias inferiores, na prática
descriminalizou-se o aborto no país antes do 3º mês.
Note-se que a decisão foi tomada em favor de uma ação
que visava inocentar os médicos e funcionários de uma
clínica, não como um reconhecimento do direito da
mulher. Dessa forma, a decisão está longe de garantir o
atendimento adequado para que o procedimento seja feito sem risco no
sistema de saúde público, ele apenas permite que os
envolvidos sejam inocentados em ações judiciais
futuras. Ainda será preciso uma luta imensa para que esse
direito seja plenamente garantido.
Mesmo
porque, imediatamente depois do julgamento, os setores reacionários
que são maioria no Congresso se articularam para iniciar um
movimento visando modificar a legislação, de modo a
neutralizar a decisão do STF. O debate então se
espalhou por toda a sociedade, polarizando o país entre os
contrários e favoráveis à decisão, e aqui
apresentamos uma contribuição. Em meio a tantos
retrocessos e ataques contra os direitos e condições de
vida do conjunto da população (como a PEC 55 votada em
primeiro turno no Senado na mesma semana e o anúncio da
Reforma da Previdência), essa rara decisão sensata do
STF precisa ser defendida da pressão reacionária, pelos
seguintes motivos:
1. Da
forma como está estabelecida, a proibição do
aborto é desigual e injusta para com metade da população,
a metade feminina. A mulher está proibida de abortar, mas o
homem não está obrigado a se responsabilizar pela
criança que gerou. Independentemente da continuidade ou não
do relacionamento que deu origem à gravidez, a
responsabilidade pela criança gestada tinha que ser dos dois
envolvidos. Essa responsabilidade não pode recair apenas sobre
a mulher, pelo simples fato biológico de que ela carregará
as consequências da relação no próprio
corpo na forma de uma gestação. A gestação
não existira sem a participação dos dois,
portanto os dois tinham que ser igualmente responáveis pelas
consequências. Mas isso não acontece, e a sociedade
hipocritamente absolve os homens e condena as mulheres obrigando-as a
arcar sozinhas com a gravidez.
O
abandono masculino está plenamente legalizado e acontece aos
milhões (5,5 milhões de crianças não
possuem sequer o nome do pai na certidão de nascimento,
conforme
http://exame.abril.com.br/brasil/brasil-tem-5-5-milhoes-de-criancas-sem-pai-no-registro/),
de modo que esses milhões de bebês se tornaram um
encargo exclusivo das mães. Além disso, o simples ato
do registro não obriga os pais a dividir cuidado, sustento e
preocupação com os filhos, como é socialmente
exigido das mães. Para além dos milhões de
homens que nem sequer registram os filhos, há outros tantos ou
muitos milhões mais que se omitem e se ausentam completamente.
Ressalte-se ainda que o abandono masculino é muito mais cruel
do que o aborto, porque atinge um ser humano já vivo, capaz de
sentir e pensar, que sofrerá as consequências pelo resto
da vida, enquanto que o aborto antes do 3º mês atinge
fetos ainda em formação, que nem sequer sentem nem
pensam.
O mero
pagamento de pensão alimentícia (quando acontece
regularmente) ou visitas periódicas está muito aquém
do necessário para compensar o volume de tempo e esforço
que é exigido da mãe. Por quê continua sendo
considerado “natural” que a mãe tenha toda a
responsabilidade com os filhos, ou não só isso, que
seja carinhosa, amorosa, faça sacrifícios pessoais,
financeiros, de tempo, etc., em favor dos filhos, de uma forma que
não é exigido dos pais? Por quê o tratamento é
assim desigual? Só há duas formas de se reparar essa
injustiça: ou se obriga os pais a ter igual responsabilidade
na criação dos filhos, ou se autoriza o aborto para as
mulheres, dando a elas o direito de também se
desresponsabilizar com o resultado de uma relação
sexual, como os homens já fazem.
Alguns
vão dizer que há pais que são excelentes ou
“melhores” que certas mães, mas eles são justamente
a exceção que se destaca porque contrasta com a regra
geral que é a omissão masculina. Outros vão
dizer que nem todas as mães cumprem assim tão fielmente
com os “seus deveres”, nem todas são assim tão
responsáveis, cuidadosas, amorosas, etc., com seus filhos. Mas
isso justamente ilustra o fato de que muitas mulheres e jovens não
querem, não estão preparadas e não têm
condições de serem mães, e deveria lhes ser
permitida a alternativa de interromper a gravidez antes de gerar um
filho que não poderão criar, como é permitido
aos homens fugir do problema covardemente.
2. Uma
segunda injustiça na proibição do aborto está
no fato de que mesmo probido ele continua sendo praticado aos
milhões, mas com mais riscos para algumas mulheres do que
outras. Uma pequena parte das mulheres, as que tem mais recursos
financeiros, podem fazer aborto de maneira mais segura e discreta
(claro que nunca de forma 100% segura, já que não há
como responsabilizar os médicos em clínicas
clandestinas, mesmo as mais caras), mas a grande maioria, as mulheres
e jovens pobres, são obrigadas a fazê-lo de maneira
ainda mais precária, sujeitas a mortes e sequelas, que
acontecem aos milhões. Estando proibido ou não, o
aborto será feito. A proibição apenas pune as
mulheres, principalmente as pobres. A descriminalização
criará a base para que se possa exigir legalmente o tratamento
adequado para que se possa evitar mortes, sequelas e sofrimentos para
milhões de mulheres. Trata-se de um problema de saúde
pública, de defesa da vida das mulheres, não de moral.
3. Além
de ser injusta, a proibição do aborto é
extremamente hipócrita, porque é feita em nome da
“defesa da vida”. Antes de pensar na vida dos que ainda não
nasceram, não se pensa na vida dos centenas de milhões,
ou mesmo bilhões, que já estão nascidos e vivem
hoje em meio à miséria, fome, violência, doenças,
ignorância, barbárie, catástrofes. E isso num
mundo que possui plenas condições para prover uma vida
de conforto e realização para todos, mas não o
faz porque está estruturado de maneira profundamente injusta.
Quem está realmente preocupado com a vida tem que lutar para
mudar esse mundo, para melhorar as vidas dos que já estão
vivos, antes que possa receber mais vidas.
Toda a
histeria em “defesa da vida” deveria estar engajada numa luta
real para acabar com as injustiças desse mundo, acabar com a
pobreza, com a fome, com as doenças, etc. Para isso, é
preciso lutar por mudanças sociais muito profundas e que
exigirão esforços enormes. Para não falarmos em
uma revolução de fato, que exigiria medidas com as
quais nem todos ainda concordam, há uma série de outras
mudanças possíveis e necessárias: é
preciso acabar com o desemprego (reduzindo a jornada de trabalho sem
redução de salário, por exemplo), garantir
direitos para todos, acabar com a sonegação de impostos
que faz com que os pobres paguem muito mais do que os ricos, acabar
com o parasitismo financeiro do sistema da dívida pública
que asfixia os países pobres (quase todo o montante das
dívidas é ilegal, abusivo), garantir financiamento
público para educação, saúde, moradia,
transporte, etc., acabar com as consequências da mudança
climática e da poluição do ar, das águas,
do solo, acúmulo de lixo, etc., que atinge principalmente os
países pobres, etc.
Medidas
desse tipo exigiriam um engajamento gigantesco. Quem diz que está
defendendo a vida tinha que estar lutando pela implantação
dessas medidas, participando de partidos políticos,
sindicatos, associações profissionais, movimentos
sociais, manifestações, etc., e não apenas
destilando platitudes morais sobre a “vida” na internet, eivadas
de preconceitos e superficialidade. Participar de atividades
religiosas nesse caso não conta, já que essas estão
voltadas para “salvar a alma” das pessoas, não melhorar
sua vida material. Estamos falando aqui de participação
política e social real.
Defender
a vida significa defender que todos tenham alimentação,
moradia, saúde, educação, emprego, lazer,
cultura, meio ambiente saudável, etc. Quando tudo isso for
atingido no mundo inteiro, aí sim poderemos debater sobre a
“defesa da vida” para os que ainda não nasceram. Sem isso,
o que se tem hoje, para a imensa maioria da humanidade, é uma
sobrevida miserável, e quando a vida de bilhões de
pessoas é esse rosário de misérias e sofrimentos
que conhecemos nos países pobres, todo discurso em “defesa
da vida. é uma grosseira hipocrisia e não merece o
menor crédito.
Para
além da hipocrisia inerente a esse tipo de “defesa da vida”,
ainda mais bizarro é o caso dos dementes que defendem a vida
dos fetos, mas ao mesmo tempo dizem que “bandido bom é
bandido morto”. São contra a descriminalização
do aborto, mas são a favor da pena de morte, numa contradição
verdadeiramente patológica. Querem obrigar as pessoas a nascer
e viver, mas em condições as mais precárias e
brutais, e quando essas pessoas se transformam em crminosos, querem
ter o direito de matá-las. Justifica-se assim a violência
policial e o extermínio de jovens pobres, pretos e
periféticos, simplesmente porque não se quer conceder o
direito das mulheres pobres e periféricas decidir se poderão
cuidar daquela vida ou não. Querem tirar o poder das mulheres
decidir sobre os fetos que carregam, mas ao mesmo tempo querem dar à
polícia e à justiça o direito de decidir sobre a
vida de seres humanos formados.
Aquele
feto cuja mãe foi obrigada a gestar, mas sem a menor condição
de se desenvolver humanamente, sem cuidados, sem afeto, sem moradia,
sem acesso à saúde, educação, lazer,
etc., submetido a maus tratos constantes da sociedade, privação,
brutalidade, etc., se transforma no “bandido”, como se fosse uma
raça à parte, não mais humano, que pode ser
odiado e morto (isso sem falar no aspecto de que nenhuma autoridade
policial e judicial pode ser investida do poder de decidir sobre a
morte das pessoas, ainda mais notoriamente corruptas como no Brasil).
Um mundo de irracionalidade, sofrimento e violência se reproduz
cada vez mais bárbaro, entre outras coisas, além das
razões estruturais da miséria, simplesmente porque não
se permite que as mulheres decidam sobre a sua condição
de gestar ou não os filhos.
4.
Defender a descriminalização do aborto não
significa fazer apologia do aborto, são coisas completamente
diferentes. O aborto é a última medida de proteção
para a mulher que engravida de forma não planejada, e que não
quer ou não pode dar continuidade à gestação.
Ninguém pratica aborto por esporte ou somente porque é
permitido. Aliás, depois que é legalizado, o número
de abortos diminui nos países que adotam essa medida, porque
as mulheres têm acesso a acompanhamento médico adequado
(ver por exemplo o caso do Uruguai, conforme
https://noticias.terra.com.br/mundo/america-latina/uruguai-apos-legalizacao-desistencia-de-abortos-sobe-30,2e4163764976c410VgnCLD200000b1bf46d0RCRD.html
).
Somente
os críticos do aborto o confundem propositalmente com método
contraceptivo, com a suposição de que as mulheres
passarão a engravidar em maior número simplesmente
porque o aborto passaria a ser permitido. Essa suposição
é inteiramente falsa, não condiz com a realidade de
países onde a prática é legalizada. O aborto é
sempre a última medida, antes disso é necessário
educação sexual para prevenir e contraceptivos para não
engravidar. Mas em caso de gravidez não planejada, é
preciso que haja aborto seguro para proteger a vida e a saúde
da mulher.
O receio
de que o número de gestações e abortos aumente
em função da descriminalização esconde em
muitos casos uma concepção reacionária sobre a
sexualidade da mulher. Muitos dos que querem proibir o aborto o fazem
porque encaram a gravidez como castigo e querem punir mulheres que
ousaram ter uma vida sexual ativa, como se tivessem que ser
castigadas por fazer aquilo que todos os homens fazem. Trata-se de
mais uma forma de hipocrisia e de controle patriarcais sobre a vida
das mulheres, disfarçado de preocupação moral
com a vida dos fetos.
5. O
Estado é laico e não pode ter o direito de interferir
na vida dos cidadãos com base nas crenças religiosas de
uma parte da população, por mais disseminadas que
estejam. Mesmo que 99% da população resolva acreditar
em duendes, ou no Sr. Spock, ou em Gandalf, o Cinzento, ou em alguém
que nasceu de uma mulher virgem, isso não lhes dá o
direito de obrigar o restante 1% a viver de acordo com essa crença.
Não é porque essa parte da população
acredita que o feto já possui alma que a população
inteira precisa se submeter a essa crença e proteger a vida
dos fetos a qualquer custo, obrigando as mulheres a concluir a
gestação de filhos que não poderão criar.
Não é porque essa maioria acredita que o dever da
mulher é ser mãe que toda mulher está obrigada a
ser mãe. Quem achar que é errado abortar, porque ofende
a sua religião, que não aborte, mas não obrigue
as demais a seguir as regras da sua religião.
Cada um
deve ter o direito de viver de acordo com as suas crenças, mas
sem obrigar os demais a seguí-las. Quem quer divulgar as
regras da sua religião, que o faça a quem está
disposto a ouvir e seja capaz de convencer por métodos de
persuasão racionais, não pela força. Aliás,
quem realmente acredita na própria religião não
precisa perder tempo tentando convencer os outros daquilo que
considera verdade, precisa acreditar que essa verdade vai se impor e
se provar verdadeira, pois do contrário não seria
verdade. E antes de qualquer outra coisa, o convencimento verdadeiro
só acontece por meio do exemplo e não por pregação.
Então, quem realmente acredita numa religião deve viver
de acordo com ela e se tornar exemplo para os demais, e assim fazer
com que o sigam, não tentar impor regras aos outros. Nem muito
menos usar a autoridade do Estado para impor essas regras.
6. O
Estado não pode ter esse grau de interferência na vida
privada dos cidadãos, de fiscalizar o útero das
mulheres e obrigar que, uma vez engravidando, mesmo que de maneira
não planejada, se tornem mães. O Estado não pode
ter o poder decidir o que o indivíduo faz com seu próprio
corpo, desde que não prejudique a vida de outros. Desde usar
drogas (que é diferente de abusar de drogas e cometer crimes
por conta do uso de drogas) a abortar um feto, nada disso interfere
na vida de outro ser humano, e portanto não poderia ser
criminalizado.
Por
outro lado, se adotarmos o princípio de que a sociedade não
pode interferir no comportamento de ninguém, desde que esse
comportamento não prejudique a outrem, consequentemente
torna-se preciso decidir em que momento um feto se torna “alguém”
cuja vida passaria a ser de interesse da sociedade proteger. Mas
ressaltamos que só consideramos esse princípio válido
para uma sociedade que tenha condições de realmente
proteger a vida dos seus integrantes. Portanto, essa consideração
somente seria válida para uma sociedade que no mínimo
tenha passado pelas reformas que mencionamos no ponto 3, não
para a sociedade atual, que não respeita a vida de ninguém.
Nessa
sociedade hipotética, que tivesse condições de
proporcionar uma vida minimamente humana para todos, seria preciso,
sim, estabelecer um critério para definir a partir de que
momento um feto passa a ser considerado humano, já que nesse
momento a defesa da sua vida passa a ser de interesse da sociedade.
Um feto na véspera do parto não é um simples
feto, não é a mesma coisa que um feto no 3º mês
de gestação, já é um bebê humano
viável e semiconsciente. A questão a ser respondida
então é: a partir de que momento um feto deixa de ser
um simples feto? Conforme as pesquisas científicas, os
primeiros indícios de atividade cerebral consistente com
aquilo que consideramos pensamento ou consciência não
acontecem antes do 6º mês de gravidez (ver por exemplo o
artigo de Carl Sagan e Ann Druyan, disponível em
https://espacosevolutivo.wordpress.com/2013/07/17/aborto/,
o qual apresenta uma série de outros elementos relevantes para
esse debate).
Mas para
não ficarmos num terreno puramente hipotético,
discutindo sobre o que deveria fazer uma sociedade que tivesse
condições de proporcionar uma vida decente para seus
integrantes, e lidando com a sociedade que temos em mãos, o
princípio a ser reafirmado é de que o Estado não
pode ter o direito de interferir na decisão das mulheres sobre
seu próprio corpo. Ainda assim, a presente decisão do
STF que estamos discutindo abrange apenas abortos realizados antes do
3º mês, o que dá uma margem bastante segura para
que se possa considerar que não há nada além de
um punhado de células nos fetos abortados, muito distante de
um ser com consciência e portanto com direitos. Dessa forma, o
direito que deve ser protegido aqui é o das mulheres de
decidir sobre seu próprio corpo.
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