A morte
de Fidel Castro encerra um capítulo da história do
século XX, e pela sua importância exige que se faça
uma avaliação de sua trajetória, e do processo
que ela sintetiza, a Revolução Cubana, para que se
possa tirar lições desse processo e fudamentos para as
lutas que precisamos seguir travando no século XXI.
Para
começar, é preciso fazer algumas delimitações.
Como em qualquer balanço histórico, é preciso
empregar uma abordagem concreta, dialética, que é o
oposto da prática rotineira e superficial que consiste em
classificar personagens e fenômenos altamente complexos na
moldura simplista de “heróis” e “vilões”,
“contra” e “a favor”. Rejeitamos essa prática de
saída, pois esse simplismo bidimensional só serve para
atrapalhar o real ententimento da história. Ao mesmo tempo, de
nada adianta a posição eclética, puramente
jornalística, que neutraliza o papel dos personagens
históricos, meramente declarando que seu legado possui
“aspectos positivos e negativos” misturados, sem qualificar o
peso relativo de cada um e sem tirar conclusões utilizáveis
para um posicionamento político efetivo.
Dito
isso, em meio ao festival de impropérios fanáticos e
homenagens quase religiosas, precisamos estabelecer alguns
parâmetros. Começaremos discutindo os pontos do legado
de Fidel e da Revolução Cubana que consideramos válidos
e permanentes, ou seja, que podem ser reivindicados e aplicados ainda
hoje como princípios para a luta. Uma vez feita essa
exposição, apresentaremos num segundo momento alguns
limites do processo cubano que merecem ser objeto de exame, por
poderem fornecer orientações para contornar problemas e
evitar derrotas em lutas presentes e futuras.
Adotamos
esse procedimento para enfatizar que somente consideraremos válidas
e endossaremos críticas ao processo cubano que partam do
reconhecimento da existência de um legado positivo que deve ser
reivindicado. Qualquer crítica que não reconheça
os quatro pontos imediatamente seguintes será desconsiderada,
e qualquer leitor que não concordar com estes pontos, baseado
num fetichismo da “democracia” burguesa e em preconceitos
pacifistas contra a violência revolucionária, está
dispensado de ler a segunda parte, onde tratamos dos limites da
Revolução Cubana, porque não poderá tirar
nenhum proveito dela.
1.
Independência nacional.
Este
talvez seja o mais duradouro legado de Fidel e da Revolução
Cubana (embora esteja hoje periclitante). Cuba conseguiu deixar a
condição de protetorado dos Estados Unidos (antes
consagrado em lei na infame Emenda Platt[1]), de semicolônia
exportadora de produtos primários e o lamentável papel
de bordel bordel da máfia. Depois da Revolução o
país conseguiu se manter independente durante décadas,
resistindo à invasão da Baía dos Porcos em 1961,
passando pela crise dos mísseis em 1962[2], e Fidel
pessoalmente sobreviveu a centenas de atentados e tentativas de
assassinato, vindo a falecer de morte natural. Nesse aspecto, ele foi
vitorioso, e os reacionários do mundo inteiro o odeiam ainda
mais por isso. Talvez ninguém tenha como ele desafiado a maior
potência imperialista do mundo e sobrevivido para contar a
história.
Os
“gusanos” (vermes) de Miami, a elite cubana que fugiu do país
depois da Revolução, e que durante décadas
ambicionou derrubar Fidel e retomar suas propriedades expropriadas,
foi também derrotada. A pressão que fizeram sobre nada
menos do que 10 presidentes[3] estadunidenses para concretizar essas
ambições não funcionou. O infame bloqueio
comercial que proibia qualquer país de negociar com Cuba, sob
pena de não poder negociar com os Estados Unidos, tentando
asfixiar a ilha pela miséria, também foi enfrentado com
grande heroísmo pelo povo cubano.
Aliás,
o ridículo argumento de que a “pobreza”[4] de Cuba prova o
“fracasso do socialismo” só prova a ignorância e a
má fé de quem o utiliza (antes de qualquer coisa, pelo
fato de que Cuba não pôde chegar a ser realmente
socialista, como discutiremos mais adiante), pois o bloqueio mostra a
extrema crueldade do imperialismo para com os povos que ousam
desafiá-lo. Um país pequeno, pobre e atrasado foi
proibido de ter intercâmbio com o restante do mundo (contou com
o apoio da URSS durante um certo período e, mais recentemente,
da Venezuela em menor escala), teve que caminhar apenas com as
próprias pernas, e mesmo assim obteve conquistas
impressionantes. Se isso prova alguma coisa, é a vitalidade da
Revolução e a vantagem de romper com o capitalismo.
Mesmo porque, a vinculação de outros países de
mesmo porte e população com os Estados Unidos e o
capitalismo não serviu para livrá-los da pobreza, e na
verdade os mantém atrás de Cuba em uma série de
indicadores sociais e por larga margem de distância.
Somente
depois de 2014 a política dos Estados Unidos para Cuba foi
modificada, com a retomada de relações diplomáticas
e o histórico encontro entre Obama e Raúl Castro, irmão
e sucessor de Fidel (entretanto, sem que o sórdido bloqueio
tenha sido levantado). Os Estados Unidos abandonaram a irracional e
inexequível política dos gusanos e adotaram uma
abordagem mais sensata e eficiente (do seu ponto de vista),
sinalizando com a promessa ou possibilidade de fim do bloqueio em
troca de concessões do governo cubano em seu regime político
e econômico. Infelizmente, a atual direção cubana
caminha para a aceitação desse tipo de relação,
renunciando aos poucos à independência conquistada e
mantida a tão alto custo.
2. Luta
anti-imperialista
Cuba foi
um símbolo da luta anti-imperialista de meados do século
XX e um exemplo para o mundo. No contexto do pós-II Guerra e
da decomposição dos antigos impérios coloniais
europeus, dezenas de novos países nasceram na África e
na Ásia, muitas vezes tendo que travar guerras de
independência contra potências coloniais e imperialistas,
como nos casos da Indochina, Argélia, Angola, Moçambique,
etc. O exemplo de Cuba, conquistando sua independência nacional
debaixo do nariz da maior potência imperialista do mundo,
incendiou a imaginação de revolucionários não
apenas na América Latina, mas inspirou também as lutas
na Ásia, África e outras regiões periféricas.
Nesse
cenário surgiu o “terceiromundismo” como um movimento
característico das décadas de 1950 e 1960, envolvendo
países que lutavam contra a dominação
imperialista, mas recusavam também a tutela direta da URSS.
Eram os chamados “países não alinhados”, nem à
URSS nem aos Estados Unidos. Esse movimento teve expressões
continentais e regionais como o pan-africanismo, o nacionalismo árabe
ou nasserismo (liderado pelo egípcio Gamal Abdel Nasser) e o
chamado “populismo” latino-americano (de Vargas, Perón,
Cárdenas, etc.). Cuba chegou a ser uma expressão desse
movimento, a mais avançada na América Latina, ou a
única bem sucedida (no restante do continente, os movimentos
nacionalistas foram sufocados por golpes militares patrocinados
direta ou indiretamente pelos Estados Unidos [5]), até
posteriormente vir a se filiar definitivamente no bloco soviético.
A crise
dos mísseis em 1962 removeu o risco de invasão direta
dos Estados Unidos por um longo período, mas deixou também
as relações com a URSS de certa forma temporariamente
estremecidas, a ponto de Cuba buscar durante alguns poucos anos se
inserir no circuito dos países “não alinhados” e
desenvolver uma política externa mais independente. A morte do
Che em 1967 acabou com as esperanças de que uma nova revolução
na América Latina pudesse tirar Cuba do isolamento num período
breve (embora setores militantes da época tenham tirado a
conclusão oposta e embarcado mais decididamente na estratégia
da luta armada, que acabaria derrotada). A partir da década de
1970, se aprofunda uma vinculação mais estreita de Cuba
com a URSS e o internacionalismo e anti-imperialismo passam a ser
impulsionados nos momentos em que coincidiam com a política
externa soviética.
Assim,
Cuba continuou dando apoio à luta armada em países como
Angola e Namíbia, casos em que se tratava de movimentos
autênticos de independência nacional, mas ao mesmo tempo
apoiou a URSS na repressão da Primavera de Praga em 1968 e
também apoiou o regime da Etiópia, que não
manifestava a mínima veleidade anticapitalista. O apoio cubano
à luta armada na América Latina diminuiu, e mesmo
quando essa etratégia foi vitoriosa, como na Nicarágua
em 1979, a liderança cubana desaconselhou os sandinistas a
adotarem medidas anticapitalistas.
A
vinculação direta à URSS deixou Cuba desamparada
na década de 1990 quando o regime existente no Leste Europeu
desmoronou. Sem os subsídios e parcerias do bloco soviético,
Cuba entrou no chamado “período especial”, enfrentando
extrema escassez e maiores dificuldades, sendo obrigada a abrir
gradualmente setores de sua economia e buscar formas de contornar o
bloqueio estadunidense e conseguir parceiras limitadas com alguns
países (esse curso se aprofundaria nas décadas
seguintes, com a permissão de circulação de
moedas estrangeiras, abertura de negócios privados,
diferenciações salariais, etc., abrindo caminho para a
restauração completa do capitalismo).
Mesmo
assim, Cuba resistiu como uma referência anti-imperialista na
América Latina. Na década passada, a Venezuela de
Chávez ocupou parcialmente o papel que antes cabia à
URSS, subsidiando combustíveis e empregando médicos
cubanos em seus programas sociais. Essa relação era
possível durante um breve momento, em que durou a alta dos
preços das matérias primas latino americanas no mercado
mundial, que não foi muito além da crise mundial de
2008. O esgotamento desse ciclo precipitou o fim de todos os governos
nacionalistas reciclados (pálidos reflexos do nacionalismo
terceiromundista de meados do século passado) na década
de atual, tais como o chavismo, kirchnerismo, lulopetismo, etc.
É
nesse contexto mais geral que Cuba inicia o movimento de normalizar
relações com os Estados Unidos, depois de muitas
décadas de heroica resistência internacionalista.
Independentemente das conveniências políticas e
diplomáticas que guiaram a política externa cubana em
certos momentos, os soldados cubanos no passado e os médicos
cubanos hoje, atuando em dezenas de países, são um
exemplo de solidariedade internacional e humanismo. Hoje Cuba ainda é
reconhecida internacionalmente por “exportar” sua medicina para
lugares onde o imperialismo só envia bombas.
3.
Universalização dos serviços públicos.
Foi dito acima que Cuba viveu um estado de pobreza forçada
desde a Revolução em 1959, devido ao bloqueio
estadunidense. Sem relações internacionais normais, e
contando com limitado apoio da URSS (e depois em menor escala da
Venezuela), Cuba teve que administrar seus parcos recursos da melhor
forma que pôde, e a escolha foi priorizar a saúde e a
educação públicas. Assim, mesmo com recursos
limitados, o pequeno país caribenho conseguiu universalizar o
acesso à saúde e educação públicas
para toda a população e com alta qualidade. Todas as
crianças cubanas frequentam a escola pública e todas
estudam até a universidade. A medicina cubana é
referência mundial em várias áreas e “exporta”
seus serviços para o mundo inteiro. Os indicadores sociais do
país são os melhores da América Latina em muitos
pontos, estando acima de gigantes regionais como Brasil, Argentina e
México. Os atletas cubanos são respeitados em
competições internacionais de várias
modalidades.
Para os
que criticam a Revolução Cubana, os indicadores sociais
e o alto nível da educação e da saúde
públicas são um obstáculo muito sério, já
que mostram o que é possível fazer com poucos recursos.
Considerando a qualidade de vida da população cubana e
a da maioria da população na América Latina,
maioria pobre e explorada, vivendo nas favelas e periferias do
continente, pode-se dizer que a revolução valeu à
pena somente pelas conquistas citadas nesse ponto. O exemplo de que a
ruptura do capitalismo conduz a um nível de vida superior para
a maioria da população de um país é o que
os reacionários do mundo inteiro também odeiam em Cuba,
e por isso tentam desmerecer suas conquistas, difamando a Revolução,
lembrando que muitos cubanos fogem do país, etc.
Mas o
que deveria ser considerado nesse caso é que países
periféricos submetidos ao capitalismo e que produzem um volume
de riqueza muito maior do que Cuba vêem milhões de seus
habitantes perecerem na miséria, na doença, na
ignorância (e também fugindo em massa para buscar vida
melhor em outras paragens), enquanto minúsculas elites
desfrutam de luxo e conforto. As elites latinoamericanas se destacam
por sua vergonha e ódio do próprio povo, sabotando o
desenvolvimento de seus próprio países, sonegando
impostos, remetendo sua riqueza para o exterior, boicotando e
hostilizando as poucas políticas sociais que ainda surgem,
etc. A prioridade dos governos dos países periféricos
em alimentar o parasitismo financeiro dos especuladores, mantendo os
povos como escravos de dívidas públicas
fraudulentas[6], contrasta com a prioridade cubana para o bem estar
da população.
4. A
tomada do poder pela via revolucionária
A
Revolução Cubana se concretizou com a derrota militar
da ditadura de Fulgêncio Batista pelas forças do
MR-26-7[7]. Entretanto, a guerrilha desenvolvida no interior do país
era uma das forças de oposição ao governo de
Batista, entre várias outras. O sargento Batista governava
Cuba desde a década de 1930 e era odiado por toda a população.
Greves gerais aconteceram em 1957 e 1958 e ajudaram a enfraquecer o
governo. Batista somente se sustentava no poder devido a uma brutal
repressão, por isso a população apoiaria
qualquer um que se dispusesse a tomar medidas radicais contra ele. A
guerrilha de Fidel veio cumprir esse papel.
Fidel
era o líder incontestável da guerrilha (embora não
pudesse ter feito tudo o que fez sem o auxílio de
colaboradores altamente qualificados como Che Guevara e Camilo
Cienfuegos), mas sua ideologia de formação nunca foi
socialista ou comunista, e sim nacionalista radical. O socialismo em
Cuba, antes da Revolução, era representado oficialmente
por um Partido Comunista que, como praticamente todos os PCs
stalinistas da época, era uma burocracia encastelada nas
entidades dos trabalhadores, como os sindicatos, com uma linha
política conciliatória, de evitar a confrontação,
adaptar-se ao governo de plantão e sobretudo impedir qualquer
processo de organização dos trabalhadores desde a base
e a partir dos locais de trabalho. As greves e lutas populares eram
impulsionadas por setores de base combativos, atuando
independentemente da direção do PC. O MR-26-7 de Fidel,
da mesma forma, desenvolveu sua luta de maneira independente do PC, e
a opção pela luta armada representava a radicalidade
que a população esperava e não via nos
stalinistas.
Mais
extraordinário porém do que a coragem para enfrentar a
aventura da luta armada foi a disposição de Fidel e
seus colaboradores de ir até o fim depois de haver tomado o
poder. Ir até o fim significou nacionalizar as propriedades da
elite que fugiu amedrontada para Miami com a vitória da
Revolução, e sustentar a estatização
contra a pressão do gigante estadunidense. Foi a insistência
dos Estados Unidos em reverter a revolução e devolver a
propriedade aos gusanos que obrigou Fidel a manter a estatização,
para manter a independência do país. O MR-26-7 se fundiu
com o PC e Fidel se tornou seu dirigente máximo e governante
do país, assegurando o apoio da URSS. O único “modelo”
de “socialismo” disponível, aquele que vinha da URSS, foi
implantado na ilha de cima para baixo. O “socialismo”, portanto,
veio como uma consequência da Revolução, não
como seu objetivo inicial.
Ainda
que não correspondesse a autênticos critérios
socialistas, conforme discutiremos na segunda parte, a transformação
havida em Cuba foi muito mais profunda e radical do que a de outros
países em que setores nacionalistas chegaram ao poder. O que
distinguiu Fidel e a liderança cubana foi essa capacidade de
ir até onde inúmeros outros líderes não
foram, ultrapassando a barreira de classe social (Fidel era filho de
proprietário rural) e estatizando a propriedade privada dos
meios de produção. Basta lembrar de casos como o de
Jango ou Allende, que acreditaram nas “instituições
democráticas” até o seu final trágico. Fidel
não era socialista na origem, mas não hesitou em
confiscar as propriedades da elite cubana, para garantir a
continuidade da revolução e a independência do
país. O povo cubano apoiou essa decisão e conquistou um
senso de autoconfiança e orgulho nacional que raríssimos
povos do mundo têm.
Em
contraste com a liderança cubana e Fidel à frente,
muitos outros movimentos que se dizem “socialistas”,
“comunistas”, “de esquerda” ou “radicais” no mundo
inteiro não tiveram a disposição de se propor a
derrubar um governo e expropriar a burguesia. O cretinismo
parlamentar, o eleitoralismo, o reformismo, a veneração
do Estado e suas instituições caracterizam a maioria
das organizações socialistas. Não se propõem
objetivos radicais e nem muito menos têm a coragem de
anunciá-los publicamente como parte de uma disputa ideológica
anticapitalista, fragilidades que a liderança cubana não
teve em seu momento heróico.
Respeitadas
as conquistas da independência nacional, da luta
anti-imperialista, da opção pelo bem estar da população
e da disposição de subverter as instituições
burguesas, e tendo como pressuposto a necessidade de dar continuidade
a essas lutas, passamos então em revista os limites do
processo cubano.
1.
Personalismo
A
liderança de Fidel foi decisiva para a vitória da
Revolução e sua continuidade por décadas a fio.
Mas ao mesmo tempo, o modelo de liderança centralizada falhou
em construir uma nova geração de militantes que
pudessem garantir a sobrevivência da Revolução na
ausência de Fidel e da geração revolucionária.
O governo passou a Raul Castro, irmão do Comandante e também
ele próprio um remanescente da geração do
MR-26-7. Não há uma preocupação em
construir processos mais coletivos de decisão, que aos poucos
eduquem camadas mais amplas do partido e da população
para o exercício do poder, num sentido efetivamente
socialista.
Fidel
concentrava em si o poder de tomar todas as decisões, acima
das instâncias do partido, do Estado e da sociedade cubana como
um todo. Tamanha dependência em relação às
qualidades de um único indivíduo não poderia ser
uma via segura para garantir a permanência das conquistas da
Revolução. Mesmo tendo se afastado do governo formal há
10 anos, Fidel continuou sendo a bússola que orientava o PC
cubano. Inclusive a decisão de buscar a normalização
das relações com os Estados Unidos, a partir de 2014,
não teria sido tomada sem a sua aprovação.
Somente nos momentos finais ele deixou de atuar politicamente.
2. O
regime de partido único.
A
vinculação do destino da Revolução ao
apoio da URSS implicou na adoção do mesmo tipo de
instituições que vigoravam no bloco soviético.
Isso significou que o Estado cubano seria dirigido por um único
partido, o PC, sob a liderança de Fidel. Nenhum outro tipo de
organização seria permitida. Toda a crítica ou
oposição interna seria classificada automaticamente
como contra-revolucionária.
Aqui,
evidentemente, não estamos nos referindo aos defensores da
restauração capitalista, agentes diretos ou indiretos
dos Estados Unidos, gusanos, espiões, sabotadores, etc. Em
relação a estes, o tratamento não poderia ser
outro que não a prisão ou fuzilamento, conforme a
gravidade de seus crimes. O problema para nós é o
bloqueio e a censura de todo o pensamento político divergente,
mesmo aquele localizado no âmbito socialista e revolucionário,
que apoiasse as conquistas da revolução que listamos na
primeira parte do texto. Os trotskistas e anarquistas, por exemplo,
eram proibidos de se organizar, se reunir, se manifestar, publicar
suas posições, etc. Até mesmo os homossexuais
foram perseguidos, como se sua orientação sexual
pudesse representar uma forma de dissidência
contra-revolucionária (nas últimas décadas foram
feitos esforços reais para corrigir o grave erro da homofobia,
maiores do que os que se fazem em muitos países capitalistas).
A
situação de Cuba como um país sitiado, em
guerra, bloqueado pela maior potência do planeta, precisou ser
enfrentada com o máximo de unidade da população
em torno do legado da revolução. Mas a unidade para a
ação jamais poderia ser pretexto para a unidade forçada
de pensamento, que esterilizou as possibilidades de discussão
dos rumos da Revolução para camadas mais amplas do que
o restrito círculo dos colaboradores diretos do Comandante.
A
ausência de autonomia das organizações populares
em face do Estado e do partido marcou a Revolução
Cubana desde a origem. Com o passar das décadas, o controle
total da produção pela burocracia do Estado, das Forças
Armadas e do partido permitiu o desenvolvimento de privilégios
para uma minoria da população, da corrupção
pura e simples, dos mercados clandestinos de bens importados, moedas
paralelas, prostituição, etc. Os valores da Revolução,
expressos pela boca de uma burocracia autoritária,
privilegiada e crescentemente corrupta (ou conivente com a corrupção,
a despeito das campanhas de “retificação” lançadas
por Fidel) passaram a soar como mentiras hipócritas para a
população cansada. E no entanto, mesmo assim, a
despeito de tudo, essa população mantém a sua
altivez e orgulho da sua história de luta e independência[8].
A maior
parte da população ainda apoia em última
instância o sistema, mesmo que veja a necessidade de mudança.
E mesmo esse setor mais crítico, no entanto, não
encontra alternativa de projeto dentro de um marco de referência
marxistas e socialistas, devido a décadas de censura que
impediam a existência de outras correntes revolucionárias
dissidentes do PC cubano ou dentro dele. Assim, a única
referência alternativa que aparece é a restauração
capitalista, defendida por um constante bombardeio ideológico
imperialista, contra o qual fica cada vez mais difícil
resistir.
3. A
opção pela luta armada e o modelo de organização
do tipo partido-exército.
Como
dissemos, a guerrilha do MR-26-7 era uma das forças de
oposição ao governo de Batista, mas não era a
única. A estratégia da luta armada era uma das formas
de enfrentar a ditadura, mas não era a única possível.
O tipo de organização do MR-26-7, o partido-exército,
com sua estrutura centralizada, verticalizada e hierárquica,
se transformou em molde para as instituições do Estado
pós-revolucionário e da sociedade cubana. Fidel
comandava o partido, e o partido comandava o Estado, que era
proprietário, patrão e dirigente político de
todo o país. Todas as instituições, sindicatos,
associações de mulheres, culturais, de juventude, etc.,
eram correias de transmissão das ordens do partido. O lema da
Revolução Cubana era “comandante-em-chefe, ordene!”
Esse
tipo de estrutura diverge do tipo de organização
necessária para a uma efetiva transição
socialista. O partido-exército substituiu as organizações
da classe trabalhadora nas tarefas da tomada do poder e da
estatização da economia. Dessa forma, a estatização
não se transformou numa efetiva socialização da
propriedade, com a deliberação entregue a organismos
dos trabalhadores, estruturados desde a base até uma instância
geral de coordenação democrática. Não
houve um processo prévio de organização da
combatividade popular para a geração de organismos de
luta de base, que pudessem se transformar em organismos de poder,
conforme uma estratégia socialista. Esse tipo de organização
não faz parte da estratégia da luta armada do MR-26-7,
nem da burocracia do PC stalinista.
4. O
planejamento burocrático
Na
ausência de organismos populares de poder, a nacionalização
das propriedades resultou em uma simples estatização e
não uma efetiva socialização da economia. Existe
uma distância astronômica entre as duas coisas. A
estatização é um processo meramente jurídico,
que altera o título de propriedade das empresas, que passam de
privadas para estatais. O proprietário ou gestor capitalista
são substituídos pelo diretor nomedo pelo Estado
“socialista”, na verdade burocrático, colocado acima dos
trabalhadores, conforme as características que descrevemos
acima. O Estado cubano, com as características
centralizadoras, hierárquicas, verticalizadas e autoritárias
que descrevemos, estava colocado acima do controle da população
cubana. O controle social, que não existia, seria o requisito
necessário para que se pudesse falar em socialização
da propriedade e da produção.
O
aspecto fundamental para que se possa falar em uma autêntica
transição socialista é a mudança da
situação dos trabalhadores de objetos passivos das
decisões (que são um monopólio do capitalista,
do gestor ou do burocrata do partido) para sujeito ativo no processo
de tomada de decisão através de organismos coletivos
soberanos. Ainda que isso não possa ser implantado
imediatamente em qualquer situação, conforme a condição
histórica de cada país, a configuração
imediata dos “elos frágeis” da cadeia em que foi feita a
revolução, etc., uma revolução
autenticamente socialista tem que tender para isso ou apontar para
essa situação como seu objetivo declarado desde o
começo.
A
inexistência de efetivo controle social da produção
pelos trabalhadores, substituído pelo controle burocrático
do planejamento centralizado, manteve todas as decisões
essenciais sob controle estrito da burocracia. Ao fim e ao cabo,
depois de muitas décadas de resistência, o monopólio
burocrático do poder facilitou a opção final da
camada governante de caminhar para a restauração
capitalista, a partir do VI Congresso do PC cubano em 2011 (ainda sob
a direção de Fidel, mesmo que informal). Foi adotada a
“via chinesa” de restauração capitalista, ou seja,
a criação de zonas econômicas especiais, abertas
a empresas estrangeiras, sem as garantias dos mesmos direitos
trabalhistas e salários vigentes no restante do país, a
autorização para a abertura de negócios privados
em toda a ilha (acessível apenas a quem já tivesse
acumulado previamente algum capital meidante o acesso a privilégios
burocráticos, corrupção, mercado clandestino,
remessas de parentes do exterior); e ao mesmo tempo mantendo o
controle político do Estado pelo PC.
Dessa
forma, a burocracia cubana (assim como já fez a chinesa) têm
os meios para converter gradualmente seus descendentes em
proprietários privados. Uma burguesia de pleno direito se
gesta aos poucos no interior da sociedade cubana, erodindo a
igualdade social, ao passo que os trabalhadores vão se
convertendo em assalariados de empresas privadas, como em um país
capitalista típico, mas ao mesmo tempo submetidos a uma
ditadura política da burocracia. E tudo isso, cinicamente, em
nome da Revolução e do socialismo.
É
preciso considerar, em face desse levantamento dos limites do
processo cubano, o aspecto de que o desenvolvimento de uma autêntica
transição socialista é um fardo pesado demais
para ser colocado exclusivamente sob os ombros da pequena ilha
caribenha, enfrentando o cerrado bloqueio da maior potência
imperialista do mundo. Seria absurdo esperar que o socialismo mundial
partisse de Cuba. Como os marxistas revolucionários clássicos
sempre souberam, o socialismo só é possível
mediante uma revolução mundial, que socialize as forças
produtivas dos países mais desenvolvidos, e as coloque a
serviço e sob controle da humanidade. Antes que isso seja
concretizado, as rupturas parciais do capitalismo, ainda que heróicas
e importantes, não conseguirão ir além de
conquistas parciais. Dessa frma, Cuba não pode ser “culpada”
de ter se limitado a algumas conquistas parciais: muito pelo
contrário, deve ser respeitada pelo gigantismo desssas
conquistas em face de uma situação de extremo
isolamento e adversidade.
Se nem
sequer a Rússia, país muito maior e de muito mais
abundantes recursos populacionais e naturais, conseguiu superar as
dificuldades da transição, retrocedendo para uma forma
intermediária e interrompida, seria de se esperar que Cuba
tivesse muito menos condições de fazê-lo. Ainda
mais pelo fato de ter como modelo exatamente essa mesma forma de
transição interrompida vigente na URSS. Os limites do
processo cubano foram em boa parte derivados da “importação”
de um “modelo” de “socialismo” trazido já pronto da
URSS, sendo que na própria URSS a transição
socialista já havia sido interrompida.
O
sistema de economia estatal centralmente planificada e ditadura de
partido único, que levou o nome de “socialismo” e
“comunismo” durante o século XX, foi exportado pela URSS
para uma séria de outros países. Primeiramente, no
Leste Europeu, conforme esses países foram libertados do
nazismo, e depois em outros países, como China e Vietnã,
mediante revoluções autóctones. A tragédia
de Cuba é que esse sistema foi implantado em Cuba não
pela influência externa de uma potência “socialista”,
mas na sequência de uma também autêntica revolução
nacional e anti-imperialista de ressonância mundial. Ao adotar
um rumo anticapitalista (conforme o modelo disponível, o da
URSS), essa Revolução se tornou ainda mais
extraorinária.
Trata-se
assim de uma revolução nacional, anti-imperialista e
anticapitalista, mas não socialista[9]. A única
revolução realmente socialista do século XX foi
a de 1917 na Rússia, que desenvolveu autênticos
organismos de poder, os soviets (conselhos) de operários,
camponeses e soldados. A tragédia do retrocesso da revolução
e da interrupção da transição na URSS é
a grande tragédia do século XX, da qual a Revolução
Cubana, com toda a sua grandeza, é também de certa
forma uma derivação, e cujos limites herdou.
O
processo cubano mostra as consequências positivas de uma
ruptura do capitalismo (a conquista da independência nacional e
de melhorias nas condições de vida da população),
mas ao mesmo tempo mostra as consequências negativas da
ausência de uma estratégia efetivamente socialista e de
organismos de poder estruturados desde a base da classe trabalhadora,
como garantia de uma transição real (substituídos
por uma estrutura burocrática colocada acima da sociedade, que
desenvolve privilégios e interesses separados do conjunto da
população, e que por fim opta pela restauração
do capitalismo). A firmeza com que os revolucionários cubanos
enfrentaram o imperialismo e as tarefas da construção
de uma nova sociedade deve servir de exemplo para todos, temperada
com o conhecimento histórico dos limites e das vias
alternativas necessárias para que novas revoluções
não retrocedam, fundamentalmente, a necessidade de uma efetiva
socialização da tomada de decisões.
Aqui é
preciso distinguir entre duas ordens de questões, os limites
materiais e as opções estratégicas. Os limites
materiais são determinados pelo fato de que Cuba é uma
país pobre, cujas únicas atividades econômicas
são a produção de cana de açúcar e
o turismo, e praticamente mais nada. Partindo dessas condições,
aquilo que o país realizou foi extraordinário. As
opções estratégicas foram determinadas pelo
projeto que os dirigentes cubanos, com Fidel à frente,
implantaram no país, uma economia centralmente planificada,
sob controle de um Estado de partido único. Essa forma de
organização impediu que houvesse uma socialização
do poder, de modo que camadas mais amplas da população
se apropriassem das decisões. Dessa forma, ficou mais fácil
para a burocracia dirigente do partido-Estado encaminhar a
restauração capitalista ao estilo chinês,
mantendo o poder político e sem abrir a possibilidade de
participação popular nas decisões.
Reconhecer
o papel histórico de Fidel e a importância da revolução
que ele conduziu não pode nos impedir de enxergar ao mesmo
tempo os limites desse processo. Fechar os olhos para a restauração
capitalista em andamento (que está sendo feita sob controle da
mesma camada dirigente que governou o país), fazendo de conta
que se trata de uma “modernização”, ou “recuo
tático”, ou “imposição das condições
objetivas”, não servirá como um guia para tomar
posições úteis na defesa do legado da Revolução.
Os processos históricos não são feitos para se
encaixar em fórmulas unilaterais e unidimensionais, em que
campeiam herois e vilões, erros e acertos puros, vitórias
e derrotas. Eles são aquilo que são em si mesmos,
complexos e contraditórios, e é assim que temos que
aprender com seus personagens.
[1]
Dispositivo introduzido na Constituição cubana em 1902
que autorizava os Estados Unidos a monitorar e intervir em assuntos
internos cubanos, desde questões de segurança até
alfândega, com o uso de forças militares para remover
governos e reprimir movimentos sociais. Isso foi usado basicamente
para proteger interesses estadunidenses nos negócios da
produção açucareira (principal atividade
econômica da ilha), transportes e turismo.
[2]
Episódio considerado o de maior risco de confronto aberto
entre Estados Unidos e URSS durante a Guerra Fria, quando
descobriu-se que os soviéticos estavam prestes a instalar
mísses nucleares em Cuba, a poucos quilômetros do
litoral estadunidense. O mundo temeu por uma guerra nuclear e a
paranóia atingiu níveis de massa nos Estados Unidos. A
crise se resolveu com a desistência da URSS em instalar os
mísseis e a retirada dos mísseis estadunidenses na
Turquia, bem como garantia de que os Estados Unidos respeitariam a
soberania de Cuba.
[3]
Eisenhower, Kennedy, L. Johnson, Nixon, Gerald Ford, Jimmy Carter,
Ronald Reagan, Bush pai, Clinton, Bush filho.
[4] O
texto contido no link a seguir traz uma discussão mais
sistemática e detalhada sobre a “miséria” cubana e
alguns outros mitos que circulam sobre Fidel e seu país:
http://www.pragmatismopolitico.com.br/2016/12/mitos-fidel-castro-internet.html
[5]
Ditaduras assolaram países da região por anos ou
décadas, sendo os casos mais marcantes: Guatemala e Paraguai
em 1954, Haiti em 1957, Brasil e Bolívia em 1964, República
Dominicana em 1965, Peru em 1968, Chile e Uruguai em 1973, Argentina
em 1966 e 1976, além de uma série de golpes de estado e
guerras civis na América Central.
[6] O
Brasil destina algo entre 40% e 50% da sua arrecadação
federal anual para o pagamento da dívída pública,
o que resulta num montante em torno de R$ 900 bilhões por ano.
Essa dívida é ilegítima, tem origem em
empréstimos assumidos na época da ditadura (portanto
ilegais) e securitizados em títulos na década de 1990
(convertidos em papéis negociáveis no mercado
financeiro). Essa dívida na verdade já foi paga várias
vezes, mas a cada ano continua se pagando essa fortuna e a dívida
mesmo assim não para de aumentar, porque os seus juros são
definidos pelos próprios banqueiros que lucram com ela,
encastelados na direção do Banco Central (cinicamente
chamado de “independente” pelos economistas e jornalistas
burgueses). Em outras palavras, os banqueiros definem o quanto o
conjunto da população deve pagar de juros a eles, e
asfixiam a economia do país, aniquilam empregos, serviços
públicos, etc., para continuar lucrando. Em contraste com
isso, o percentual da arrecadação federal destinado à
saúde e educação somados não passa de
10%.
[7]
Movimento Revolucionário 26 de Julho, o exército
guerrilheiro liderado por Fidel, assim batizado em homenagem à
data da sua primeira e fracassada tentativa de desafiar a ditadura,
num ataque ao quartel de La Moncada em 1953.
[8] As
manifestações de massa em toda a ilha por ocasião
das cerimônias fúnebres em honra a Fidel fornecem um
eloquente exemplo a respeito da gratidão e reconhecimento do
povo ao Comandante.
[9] O
socialismo pressupõe uma revolução mundial, que
garanta a socialização das forças produtivas dos
países mais avançados. Isso já havia sido
impedido com a derrota da revolução nos países
avançados da Europa ao final da 1ª Guerra Mundial (em
especial na Alemanha em 1919 e 1923) e o isolamento da transição
na Rússia. Além disso, em cada país onde o poder
do capitalismo seja rompido, é preciso mais do que
simplesmente mudar as relações de propriedade, e sim a
mudança no nível de controle operário da
produção.
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