9.12.16

Sobre Fidel Castro e a Revolução Cubana


A morte de Fidel Castro encerra um capítulo da história do século XX, e pela sua importância exige que se faça uma avaliação de sua trajetória, e do processo que ela sintetiza, a Revolução Cubana, para que se possa tirar lições desse processo e fudamentos para as lutas que precisamos seguir travando no século XXI.
Para começar, é preciso fazer algumas delimitações. Como em qualquer balanço histórico, é preciso empregar uma abordagem concreta, dialética, que é o oposto da prática rotineira e superficial que consiste em classificar personagens e fenômenos altamente complexos na moldura simplista de “heróis” e “vilões”, “contra” e “a favor”. Rejeitamos essa prática de saída, pois esse simplismo bidimensional só serve para atrapalhar o real ententimento da história. Ao mesmo tempo, de nada adianta a posição eclética, puramente jornalística, que neutraliza o papel dos personagens históricos, meramente declarando que seu legado possui “aspectos positivos e negativos” misturados, sem qualificar o peso relativo de cada um e sem tirar conclusões utilizáveis para um posicionamento político efetivo.
Dito isso, em meio ao festival de impropérios fanáticos e homenagens quase religiosas, precisamos estabelecer alguns parâmetros. Começaremos discutindo os pontos do legado de Fidel e da Revolução Cubana que consideramos válidos e permanentes, ou seja, que podem ser reivindicados e aplicados ainda hoje como princípios para a luta. Uma vez feita essa exposição, apresentaremos num segundo momento alguns limites do processo cubano que merecem ser objeto de exame, por poderem fornecer orientações para contornar problemas e evitar derrotas em lutas presentes e futuras.
Adotamos esse procedimento para enfatizar que somente consideraremos válidas e endossaremos críticas ao processo cubano que partam do reconhecimento da existência de um legado positivo que deve ser reivindicado. Qualquer crítica que não reconheça os quatro pontos imediatamente seguintes será desconsiderada, e qualquer leitor que não concordar com estes pontos, baseado num fetichismo da “democracia” burguesa e em preconceitos pacifistas contra a violência revolucionária, está dispensado de ler a segunda parte, onde tratamos dos limites da Revolução Cubana, porque não poderá tirar nenhum proveito dela.
1. Independência nacional.
Este talvez seja o mais duradouro legado de Fidel e da Revolução Cubana (embora esteja hoje periclitante). Cuba conseguiu deixar a condição de protetorado dos Estados Unidos (antes consagrado em lei na infame Emenda Platt[1]), de semicolônia exportadora de produtos primários e o lamentável papel de bordel bordel da máfia. Depois da Revolução o país conseguiu se manter independente durante décadas, resistindo à invasão da Baía dos Porcos em 1961, passando pela crise dos mísseis em 1962[2], e Fidel pessoalmente sobreviveu a centenas de atentados e tentativas de assassinato, vindo a falecer de morte natural. Nesse aspecto, ele foi vitorioso, e os reacionários do mundo inteiro o odeiam ainda mais por isso. Talvez ninguém tenha como ele desafiado a maior potência imperialista do mundo e sobrevivido para contar a história.
Os “gusanos” (vermes) de Miami, a elite cubana que fugiu do país depois da Revolução, e que durante décadas ambicionou derrubar Fidel e retomar suas propriedades expropriadas, foi também derrotada. A pressão que fizeram sobre nada menos do que 10 presidentes[3] estadunidenses para concretizar essas ambições não funcionou. O infame bloqueio comercial que proibia qualquer país de negociar com Cuba, sob pena de não poder negociar com os Estados Unidos, tentando asfixiar a ilha pela miséria, também foi enfrentado com grande heroísmo pelo povo cubano.
Aliás, o ridículo argumento de que a “pobreza”[4] de Cuba prova o “fracasso do socialismo” só prova a ignorância e a má fé de quem o utiliza (antes de qualquer coisa, pelo fato de que Cuba não pôde chegar a ser realmente socialista, como discutiremos mais adiante), pois o bloqueio mostra a extrema crueldade do imperialismo para com os povos que ousam desafiá-lo. Um país pequeno, pobre e atrasado foi proibido de ter intercâmbio com o restante do mundo (contou com o apoio da URSS durante um certo período e, mais recentemente, da Venezuela em menor escala), teve que caminhar apenas com as próprias pernas, e mesmo assim obteve conquistas impressionantes. Se isso prova alguma coisa, é a vitalidade da Revolução e a vantagem de romper com o capitalismo. Mesmo porque, a vinculação de outros países de mesmo porte e população com os Estados Unidos e o capitalismo não serviu para livrá-los da pobreza, e na verdade os mantém atrás de Cuba em uma série de indicadores sociais e por larga margem de distância.
Somente depois de 2014 a política dos Estados Unidos para Cuba foi modificada, com a retomada de relações diplomáticas e o histórico encontro entre Obama e Raúl Castro, irmão e sucessor de Fidel (entretanto, sem que o sórdido bloqueio tenha sido levantado). Os Estados Unidos abandonaram a irracional e inexequível política dos gusanos e adotaram uma abordagem mais sensata e eficiente (do seu ponto de vista), sinalizando com a promessa ou possibilidade de fim do bloqueio em troca de concessões do governo cubano em seu regime político e econômico. Infelizmente, a atual direção cubana caminha para a aceitação desse tipo de relação, renunciando aos poucos à independência conquistada e mantida a tão alto custo.

2. Luta anti-imperialista
Cuba foi um símbolo da luta anti-imperialista de meados do século XX e um exemplo para o mundo. No contexto do pós-II Guerra e da decomposição dos antigos impérios coloniais europeus, dezenas de novos países nasceram na África e na Ásia, muitas vezes tendo que travar guerras de independência contra potências coloniais e imperialistas, como nos casos da Indochina, Argélia, Angola, Moçambique, etc. O exemplo de Cuba, conquistando sua independência nacional debaixo do nariz da maior potência imperialista do mundo, incendiou a imaginação de revolucionários não apenas na América Latina, mas inspirou também as lutas na Ásia, África e outras regiões periféricas.
Nesse cenário surgiu o “terceiromundismo” como um movimento característico das décadas de 1950 e 1960, envolvendo países que lutavam contra a dominação imperialista, mas recusavam também a tutela direta da URSS. Eram os chamados “países não alinhados”, nem à URSS nem aos Estados Unidos. Esse movimento teve expressões continentais e regionais como o pan-africanismo, o nacionalismo árabe ou nasserismo (liderado pelo egípcio Gamal Abdel Nasser) e o chamado “populismo” latino-americano (de Vargas, Perón, Cárdenas, etc.). Cuba chegou a ser uma expressão desse movimento, a mais avançada na América Latina, ou a única bem sucedida (no restante do continente, os movimentos nacionalistas foram sufocados por golpes militares patrocinados direta ou indiretamente pelos Estados Unidos [5]), até posteriormente vir a se filiar definitivamente no bloco soviético.
A crise dos mísseis em 1962 removeu o risco de invasão direta dos Estados Unidos por um longo período, mas deixou também as relações com a URSS de certa forma temporariamente estremecidas, a ponto de Cuba buscar durante alguns poucos anos se inserir no circuito dos países “não alinhados” e desenvolver uma política externa mais independente. A morte do Che em 1967 acabou com as esperanças de que uma nova revolução na América Latina pudesse tirar Cuba do isolamento num período breve (embora setores militantes da época tenham tirado a conclusão oposta e embarcado mais decididamente na estratégia da luta armada, que acabaria derrotada). A partir da década de 1970, se aprofunda uma vinculação mais estreita de Cuba com a URSS e o internacionalismo e anti-imperialismo passam a ser impulsionados nos momentos em que coincidiam com a política externa soviética.
Assim, Cuba continuou dando apoio à luta armada em países como Angola e Namíbia, casos em que se tratava de movimentos autênticos de independência nacional, mas ao mesmo tempo apoiou a URSS na repressão da Primavera de Praga em 1968 e também apoiou o regime da Etiópia, que não manifestava a mínima veleidade anticapitalista. O apoio cubano à luta armada na América Latina diminuiu, e mesmo quando essa etratégia foi vitoriosa, como na Nicarágua em 1979, a liderança cubana desaconselhou os sandinistas a adotarem medidas anticapitalistas.
A vinculação direta à URSS deixou Cuba desamparada na década de 1990 quando o regime existente no Leste Europeu desmoronou. Sem os subsídios e parcerias do bloco soviético, Cuba entrou no chamado “período especial”, enfrentando extrema escassez e maiores dificuldades, sendo obrigada a abrir gradualmente setores de sua economia e buscar formas de contornar o bloqueio estadunidense e conseguir parceiras limitadas com alguns países (esse curso se aprofundaria nas décadas seguintes, com a permissão de circulação de moedas estrangeiras, abertura de negócios privados, diferenciações salariais, etc., abrindo caminho para a restauração completa do capitalismo).
Mesmo assim, Cuba resistiu como uma referência anti-imperialista na América Latina. Na década passada, a Venezuela de Chávez ocupou parcialmente o papel que antes cabia à URSS, subsidiando combustíveis e empregando médicos cubanos em seus programas sociais. Essa relação era possível durante um breve momento, em que durou a alta dos preços das matérias primas latino americanas no mercado mundial, que não foi muito além da crise mundial de 2008. O esgotamento desse ciclo precipitou o fim de todos os governos nacionalistas reciclados (pálidos reflexos do nacionalismo terceiromundista de meados do século passado) na década de atual, tais como o chavismo, kirchnerismo, lulopetismo, etc.
É nesse contexto mais geral que Cuba inicia o movimento de normalizar relações com os Estados Unidos, depois de muitas décadas de heroica resistência internacionalista. Independentemente das conveniências políticas e diplomáticas que guiaram a política externa cubana em certos momentos, os soldados cubanos no passado e os médicos cubanos hoje, atuando em dezenas de países, são um exemplo de solidariedade internacional e humanismo. Hoje Cuba ainda é reconhecida internacionalmente por “exportar” sua medicina para lugares onde o imperialismo só envia bombas.

3. Universalização dos serviços públicos. Foi dito acima que Cuba viveu um estado de pobreza forçada desde a Revolução em 1959, devido ao bloqueio estadunidense. Sem relações internacionais normais, e contando com limitado apoio da URSS (e depois em menor escala da Venezuela), Cuba teve que administrar seus parcos recursos da melhor forma que pôde, e a escolha foi priorizar a saúde e a educação públicas. Assim, mesmo com recursos limitados, o pequeno país caribenho conseguiu universalizar o acesso à saúde e educação públicas para toda a população e com alta qualidade. Todas as crianças cubanas frequentam a escola pública e todas estudam até a universidade. A medicina cubana é referência mundial em várias áreas e “exporta” seus serviços para o mundo inteiro. Os indicadores sociais do país são os melhores da América Latina em muitos pontos, estando acima de gigantes regionais como Brasil, Argentina e México. Os atletas cubanos são respeitados em competições internacionais de várias modalidades.
Para os que criticam a Revolução Cubana, os indicadores sociais e o alto nível da educação e da saúde públicas são um obstáculo muito sério, já que mostram o que é possível fazer com poucos recursos. Considerando a qualidade de vida da população cubana e a da maioria da população na América Latina, maioria pobre e explorada, vivendo nas favelas e periferias do continente, pode-se dizer que a revolução valeu à pena somente pelas conquistas citadas nesse ponto. O exemplo de que a ruptura do capitalismo conduz a um nível de vida superior para a maioria da população de um país é o que os reacionários do mundo inteiro também odeiam em Cuba, e por isso tentam desmerecer suas conquistas, difamando a Revolução, lembrando que muitos cubanos fogem do país, etc.
Mas o que deveria ser considerado nesse caso é que países periféricos submetidos ao capitalismo e que produzem um volume de riqueza muito maior do que Cuba vêem milhões de seus habitantes perecerem na miséria, na doença, na ignorância (e também fugindo em massa para buscar vida melhor em outras paragens), enquanto minúsculas elites desfrutam de luxo e conforto. As elites latinoamericanas se destacam por sua vergonha e ódio do próprio povo, sabotando o desenvolvimento de seus próprio países, sonegando impostos, remetendo sua riqueza para o exterior, boicotando e hostilizando as poucas políticas sociais que ainda surgem, etc. A prioridade dos governos dos países periféricos em alimentar o parasitismo financeiro dos especuladores, mantendo os povos como escravos de dívidas públicas fraudulentas[6], contrasta com a prioridade cubana para o bem estar da população.

4. A tomada do poder pela via revolucionária
A Revolução Cubana se concretizou com a derrota militar da ditadura de Fulgêncio Batista pelas forças do MR-26-7[7]. Entretanto, a guerrilha desenvolvida no interior do país era uma das forças de oposição ao governo de Batista, entre várias outras. O sargento Batista governava Cuba desde a década de 1930 e era odiado por toda a população. Greves gerais aconteceram em 1957 e 1958 e ajudaram a enfraquecer o governo. Batista somente se sustentava no poder devido a uma brutal repressão, por isso a população apoiaria qualquer um que se dispusesse a tomar medidas radicais contra ele. A guerrilha de Fidel veio cumprir esse papel.
Fidel era o líder incontestável da guerrilha (embora não pudesse ter feito tudo o que fez sem o auxílio de colaboradores altamente qualificados como Che Guevara e Camilo Cienfuegos), mas sua ideologia de formação nunca foi socialista ou comunista, e sim nacionalista radical. O socialismo em Cuba, antes da Revolução, era representado oficialmente por um Partido Comunista que, como praticamente todos os PCs stalinistas da época, era uma burocracia encastelada nas entidades dos trabalhadores, como os sindicatos, com uma linha política conciliatória, de evitar a confrontação, adaptar-se ao governo de plantão e sobretudo impedir qualquer processo de organização dos trabalhadores desde a base e a partir dos locais de trabalho. As greves e lutas populares eram impulsionadas por setores de base combativos, atuando independentemente da direção do PC. O MR-26-7 de Fidel, da mesma forma, desenvolveu sua luta de maneira independente do PC, e a opção pela luta armada representava a radicalidade que a população esperava e não via nos stalinistas.
Mais extraordinário porém do que a coragem para enfrentar a aventura da luta armada foi a disposição de Fidel e seus colaboradores de ir até o fim depois de haver tomado o poder. Ir até o fim significou nacionalizar as propriedades da elite que fugiu amedrontada para Miami com a vitória da Revolução, e sustentar a estatização contra a pressão do gigante estadunidense. Foi a insistência dos Estados Unidos em reverter a revolução e devolver a propriedade aos gusanos que obrigou Fidel a manter a estatização, para manter a independência do país. O MR-26-7 se fundiu com o PC e Fidel se tornou seu dirigente máximo e governante do país, assegurando o apoio da URSS. O único “modelo” de “socialismo” disponível, aquele que vinha da URSS, foi implantado na ilha de cima para baixo. O “socialismo”, portanto, veio como uma consequência da Revolução, não como seu objetivo inicial.
Ainda que não correspondesse a autênticos critérios socialistas, conforme discutiremos na segunda parte, a transformação havida em Cuba foi muito mais profunda e radical do que a de outros países em que setores nacionalistas chegaram ao poder. O que distinguiu Fidel e a liderança cubana foi essa capacidade de ir até onde inúmeros outros líderes não foram, ultrapassando a barreira de classe social (Fidel era filho de proprietário rural) e estatizando a propriedade privada dos meios de produção. Basta lembrar de casos como o de Jango ou Allende, que acreditaram nas “instituições democráticas” até o seu final trágico. Fidel não era socialista na origem, mas não hesitou em confiscar as propriedades da elite cubana, para garantir a continuidade da revolução e a independência do país. O povo cubano apoiou essa decisão e conquistou um senso de autoconfiança e orgulho nacional que raríssimos povos do mundo têm.
Em contraste com a liderança cubana e Fidel à frente, muitos outros movimentos que se dizem “socialistas”, “comunistas”, “de esquerda” ou “radicais” no mundo inteiro não tiveram a disposição de se propor a derrubar um governo e expropriar a burguesia. O cretinismo parlamentar, o eleitoralismo, o reformismo, a veneração do Estado e suas instituições caracterizam a maioria das organizações socialistas. Não se propõem objetivos radicais e nem muito menos têm a coragem de anunciá-los publicamente como parte de uma disputa ideológica anticapitalista, fragilidades que a liderança cubana não teve em seu momento heróico.

Respeitadas as conquistas da independência nacional, da luta anti-imperialista, da opção pelo bem estar da população e da disposição de subverter as instituições burguesas, e tendo como pressuposto a necessidade de dar continuidade a essas lutas, passamos então em revista os limites do processo cubano.

1. Personalismo
A liderança de Fidel foi decisiva para a vitória da Revolução e sua continuidade por décadas a fio. Mas ao mesmo tempo, o modelo de liderança centralizada falhou em construir uma nova geração de militantes que pudessem garantir a sobrevivência da Revolução na ausência de Fidel e da geração revolucionária. O governo passou a Raul Castro, irmão do Comandante e também ele próprio um remanescente da geração do MR-26-7. Não há uma preocupação em construir processos mais coletivos de decisão, que aos poucos eduquem camadas mais amplas do partido e da população para o exercício do poder, num sentido efetivamente socialista.
Fidel concentrava em si o poder de tomar todas as decisões, acima das instâncias do partido, do Estado e da sociedade cubana como um todo. Tamanha dependência em relação às qualidades de um único indivíduo não poderia ser uma via segura para garantir a permanência das conquistas da Revolução. Mesmo tendo se afastado do governo formal há 10 anos, Fidel continuou sendo a bússola que orientava o PC cubano. Inclusive a decisão de buscar a normalização das relações com os Estados Unidos, a partir de 2014, não teria sido tomada sem a sua aprovação. Somente nos momentos finais ele deixou de atuar politicamente.

2. O regime de partido único.
A vinculação do destino da Revolução ao apoio da URSS implicou na adoção do mesmo tipo de instituições que vigoravam no bloco soviético. Isso significou que o Estado cubano seria dirigido por um único partido, o PC, sob a liderança de Fidel. Nenhum outro tipo de organização seria permitida. Toda a crítica ou oposição interna seria classificada automaticamente como contra-revolucionária.
Aqui, evidentemente, não estamos nos referindo aos defensores da restauração capitalista, agentes diretos ou indiretos dos Estados Unidos, gusanos, espiões, sabotadores, etc. Em relação a estes, o tratamento não poderia ser outro que não a prisão ou fuzilamento, conforme a gravidade de seus crimes. O problema para nós é o bloqueio e a censura de todo o pensamento político divergente, mesmo aquele localizado no âmbito socialista e revolucionário, que apoiasse as conquistas da revolução que listamos na primeira parte do texto. Os trotskistas e anarquistas, por exemplo, eram proibidos de se organizar, se reunir, se manifestar, publicar suas posições, etc. Até mesmo os homossexuais foram perseguidos, como se sua orientação sexual pudesse representar uma forma de dissidência contra-revolucionária (nas últimas décadas foram feitos esforços reais para corrigir o grave erro da homofobia, maiores do que os que se fazem em muitos países capitalistas).
A situação de Cuba como um país sitiado, em guerra, bloqueado pela maior potência do planeta, precisou ser enfrentada com o máximo de unidade da população em torno do legado da revolução. Mas a unidade para a ação jamais poderia ser pretexto para a unidade forçada de pensamento, que esterilizou as possibilidades de discussão dos rumos da Revolução para camadas mais amplas do que o restrito círculo dos colaboradores diretos do Comandante.
A ausência de autonomia das organizações populares em face do Estado e do partido marcou a Revolução Cubana desde a origem. Com o passar das décadas, o controle total da produção pela burocracia do Estado, das Forças Armadas e do partido permitiu o desenvolvimento de privilégios para uma minoria da população, da corrupção pura e simples, dos mercados clandestinos de bens importados, moedas paralelas, prostituição, etc. Os valores da Revolução, expressos pela boca de uma burocracia autoritária, privilegiada e crescentemente corrupta (ou conivente com a corrupção, a despeito das campanhas de “retificação” lançadas por Fidel) passaram a soar como mentiras hipócritas para a população cansada. E no entanto, mesmo assim, a despeito de tudo, essa população mantém a sua altivez e orgulho da sua história de luta e independência[8].
A maior parte da população ainda apoia em última instância o sistema, mesmo que veja a necessidade de mudança. E mesmo esse setor mais crítico, no entanto, não encontra alternativa de projeto dentro de um marco de referência marxistas e socialistas, devido a décadas de censura que impediam a existência de outras correntes revolucionárias dissidentes do PC cubano ou dentro dele. Assim, a única referência alternativa que aparece é a restauração capitalista, defendida por um constante bombardeio ideológico imperialista, contra o qual fica cada vez mais difícil resistir.

3. A opção pela luta armada e o modelo de organização do tipo partido-exército.
Como dissemos, a guerrilha do MR-26-7 era uma das forças de oposição ao governo de Batista, mas não era a única. A estratégia da luta armada era uma das formas de enfrentar a ditadura, mas não era a única possível. O tipo de organização do MR-26-7, o partido-exército, com sua estrutura centralizada, verticalizada e hierárquica, se transformou em molde para as instituições do Estado pós-revolucionário e da sociedade cubana. Fidel comandava o partido, e o partido comandava o Estado, que era proprietário, patrão e dirigente político de todo o país. Todas as instituições, sindicatos, associações de mulheres, culturais, de juventude, etc., eram correias de transmissão das ordens do partido. O lema da Revolução Cubana era “comandante-em-chefe, ordene!”
Esse tipo de estrutura diverge do tipo de organização necessária para a uma efetiva transição socialista. O partido-exército substituiu as organizações da classe trabalhadora nas tarefas da tomada do poder e da estatização da economia. Dessa forma, a estatização não se transformou numa efetiva socialização da propriedade, com a deliberação entregue a organismos dos trabalhadores, estruturados desde a base até uma instância geral de coordenação democrática. Não houve um processo prévio de organização da combatividade popular para a geração de organismos de luta de base, que pudessem se transformar em organismos de poder, conforme uma estratégia socialista. Esse tipo de organização não faz parte da estratégia da luta armada do MR-26-7, nem da burocracia do PC stalinista.

4. O planejamento burocrático
Na ausência de organismos populares de poder, a nacionalização das propriedades resultou em uma simples estatização e não uma efetiva socialização da economia. Existe uma distância astronômica entre as duas coisas. A estatização é um processo meramente jurídico, que altera o título de propriedade das empresas, que passam de privadas para estatais. O proprietário ou gestor capitalista são substituídos pelo diretor nomedo pelo Estado “socialista”, na verdade burocrático, colocado acima dos trabalhadores, conforme as características que descrevemos acima. O Estado cubano, com as características centralizadoras, hierárquicas, verticalizadas e autoritárias que descrevemos, estava colocado acima do controle da população cubana. O controle social, que não existia, seria o requisito necessário para que se pudesse falar em socialização da propriedade e da produção.
O aspecto fundamental para que se possa falar em uma autêntica transição socialista é a mudança da situação dos trabalhadores de objetos passivos das decisões (que são um monopólio do capitalista, do gestor ou do burocrata do partido) para sujeito ativo no processo de tomada de decisão através de organismos coletivos soberanos. Ainda que isso não possa ser implantado imediatamente em qualquer situação, conforme a condição histórica de cada país, a configuração imediata dos “elos frágeis” da cadeia em que foi feita a revolução, etc., uma revolução autenticamente socialista tem que tender para isso ou apontar para essa situação como seu objetivo declarado desde o começo.
A inexistência de efetivo controle social da produção pelos trabalhadores, substituído pelo controle burocrático do planejamento centralizado, manteve todas as decisões essenciais sob controle estrito da burocracia. Ao fim e ao cabo, depois de muitas décadas de resistência, o monopólio burocrático do poder facilitou a opção final da camada governante de caminhar para a restauração capitalista, a partir do VI Congresso do PC cubano em 2011 (ainda sob a direção de Fidel, mesmo que informal). Foi adotada a “via chinesa” de restauração capitalista, ou seja, a criação de zonas econômicas especiais, abertas a empresas estrangeiras, sem as garantias dos mesmos direitos trabalhistas e salários vigentes no restante do país, a autorização para a abertura de negócios privados em toda a ilha (acessível apenas a quem já tivesse acumulado previamente algum capital meidante o acesso a privilégios burocráticos, corrupção, mercado clandestino, remessas de parentes do exterior); e ao mesmo tempo mantendo o controle político do Estado pelo PC.
Dessa forma, a burocracia cubana (assim como já fez a chinesa) têm os meios para converter gradualmente seus descendentes em proprietários privados. Uma burguesia de pleno direito se gesta aos poucos no interior da sociedade cubana, erodindo a igualdade social, ao passo que os trabalhadores vão se convertendo em assalariados de empresas privadas, como em um país capitalista típico, mas ao mesmo tempo submetidos a uma ditadura política da burocracia. E tudo isso, cinicamente, em nome da Revolução e do socialismo.

É preciso considerar, em face desse levantamento dos limites do processo cubano, o aspecto de que o desenvolvimento de uma autêntica transição socialista é um fardo pesado demais para ser colocado exclusivamente sob os ombros da pequena ilha caribenha, enfrentando o cerrado bloqueio da maior potência imperialista do mundo. Seria absurdo esperar que o socialismo mundial partisse de Cuba. Como os marxistas revolucionários clássicos sempre souberam, o socialismo só é possível mediante uma revolução mundial, que socialize as forças produtivas dos países mais desenvolvidos, e as coloque a serviço e sob controle da humanidade. Antes que isso seja concretizado, as rupturas parciais do capitalismo, ainda que heróicas e importantes, não conseguirão ir além de conquistas parciais. Dessa frma, Cuba não pode ser “culpada” de ter se limitado a algumas conquistas parciais: muito pelo contrário, deve ser respeitada pelo gigantismo desssas conquistas em face de uma situação de extremo isolamento e adversidade.
Se nem sequer a Rússia, país muito maior e de muito mais abundantes recursos populacionais e naturais, conseguiu superar as dificuldades da transição, retrocedendo para uma forma intermediária e interrompida, seria de se esperar que Cuba tivesse muito menos condições de fazê-lo. Ainda mais pelo fato de ter como modelo exatamente essa mesma forma de transição interrompida vigente na URSS. Os limites do processo cubano foram em boa parte derivados da “importação” de um “modelo” de “socialismo” trazido já pronto da URSS, sendo que na própria URSS a transição socialista já havia sido interrompida.
O sistema de economia estatal centralmente planificada e ditadura de partido único, que levou o nome de “socialismo” e “comunismo” durante o século XX, foi exportado pela URSS para uma séria de outros países. Primeiramente, no Leste Europeu, conforme esses países foram libertados do nazismo, e depois em outros países, como China e Vietnã, mediante revoluções autóctones. A tragédia de Cuba é que esse sistema foi implantado em Cuba não pela influência externa de uma potência “socialista”, mas na sequência de uma também autêntica revolução nacional e anti-imperialista de ressonância mundial. Ao adotar um rumo anticapitalista (conforme o modelo disponível, o da URSS), essa Revolução se tornou ainda mais extraorinária.
Trata-se assim de uma revolução nacional, anti-imperialista e anticapitalista, mas não socialista[9]. A única revolução realmente socialista do século XX foi a de 1917 na Rússia, que desenvolveu autênticos organismos de poder, os soviets (conselhos) de operários, camponeses e soldados. A tragédia do retrocesso da revolução e da interrupção da transição na URSS é a grande tragédia do século XX, da qual a Revolução Cubana, com toda a sua grandeza, é também de certa forma uma derivação, e cujos limites herdou.
O processo cubano mostra as consequências positivas de uma ruptura do capitalismo (a conquista da independência nacional e de melhorias nas condições de vida da população), mas ao mesmo tempo mostra as consequências negativas da ausência de uma estratégia efetivamente socialista e de organismos de poder estruturados desde a base da classe trabalhadora, como garantia de uma transição real (substituídos por uma estrutura burocrática colocada acima da sociedade, que desenvolve privilégios e interesses separados do conjunto da população, e que por fim opta pela restauração do capitalismo). A firmeza com que os revolucionários cubanos enfrentaram o imperialismo e as tarefas da construção de uma nova sociedade deve servir de exemplo para todos, temperada com o conhecimento histórico dos limites e das vias alternativas necessárias para que novas revoluções não retrocedam, fundamentalmente, a necessidade de uma efetiva socialização da tomada de decisões.
Aqui é preciso distinguir entre duas ordens de questões, os limites materiais e as opções estratégicas. Os limites materiais são determinados pelo fato de que Cuba é uma país pobre, cujas únicas atividades econômicas são a produção de cana de açúcar e o turismo, e praticamente mais nada. Partindo dessas condições, aquilo que o país realizou foi extraordinário. As opções estratégicas foram determinadas pelo projeto que os dirigentes cubanos, com Fidel à frente, implantaram no país, uma economia centralmente planificada, sob controle de um Estado de partido único. Essa forma de organização impediu que houvesse uma socialização do poder, de modo que camadas mais amplas da população se apropriassem das decisões. Dessa forma, ficou mais fácil para a burocracia dirigente do partido-Estado encaminhar a restauração capitalista ao estilo chinês, mantendo o poder político e sem abrir a possibilidade de participação popular nas decisões.
Reconhecer o papel histórico de Fidel e a importância da revolução que ele conduziu não pode nos impedir de enxergar ao mesmo tempo os limites desse processo. Fechar os olhos para a restauração capitalista em andamento (que está sendo feita sob controle da mesma camada dirigente que governou o país), fazendo de conta que se trata de uma “modernização”, ou “recuo tático”, ou “imposição das condições objetivas”, não servirá como um guia para tomar posições úteis na defesa do legado da Revolução. Os processos históricos não são feitos para se encaixar em fórmulas unilaterais e unidimensionais, em que campeiam herois e vilões, erros e acertos puros, vitórias e derrotas. Eles são aquilo que são em si mesmos, complexos e contraditórios, e é assim que temos que aprender com seus personagens.

[1] Dispositivo introduzido na Constituição cubana em 1902 que autorizava os Estados Unidos a monitorar e intervir em assuntos internos cubanos, desde questões de segurança até alfândega, com o uso de forças militares para remover governos e reprimir movimentos sociais. Isso foi usado basicamente para proteger interesses estadunidenses nos negócios da produção açucareira (principal atividade econômica da ilha), transportes e turismo.

[2] Episódio considerado o de maior risco de confronto aberto entre Estados Unidos e URSS durante a Guerra Fria, quando descobriu-se que os soviéticos estavam prestes a instalar mísses nucleares em Cuba, a poucos quilômetros do litoral estadunidense. O mundo temeu por uma guerra nuclear e a paranóia atingiu níveis de massa nos Estados Unidos. A crise se resolveu com a desistência da URSS em instalar os mísseis e a retirada dos mísseis estadunidenses na Turquia, bem como garantia de que os Estados Unidos respeitariam a soberania de Cuba.

[3] Eisenhower, Kennedy, L. Johnson, Nixon, Gerald Ford, Jimmy Carter, Ronald Reagan, Bush pai, Clinton, Bush filho.

[4] O texto contido no link a seguir traz uma discussão mais sistemática e detalhada sobre a “miséria” cubana e alguns outros mitos que circulam sobre Fidel e seu país: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2016/12/mitos-fidel-castro-internet.html

[5] Ditaduras assolaram países da região por anos ou décadas, sendo os casos mais marcantes: Guatemala e Paraguai em 1954, Haiti em 1957, Brasil e Bolívia em 1964, República Dominicana em 1965, Peru em 1968, Chile e Uruguai em 1973, Argentina em 1966 e 1976, além de uma série de golpes de estado e guerras civis na América Central.

[6] O Brasil destina algo entre 40% e 50% da sua arrecadação federal anual para o pagamento da dívída pública, o que resulta num montante em torno de R$ 900 bilhões por ano. Essa dívida é ilegítima, tem origem em empréstimos assumidos na época da ditadura (portanto ilegais) e securitizados em títulos na década de 1990 (convertidos em papéis negociáveis no mercado financeiro). Essa dívida na verdade já foi paga várias vezes, mas a cada ano continua se pagando essa fortuna e a dívida mesmo assim não para de aumentar, porque os seus juros são definidos pelos próprios banqueiros que lucram com ela, encastelados na direção do Banco Central (cinicamente chamado de “independente” pelos economistas e jornalistas burgueses). Em outras palavras, os banqueiros definem o quanto o conjunto da população deve pagar de juros a eles, e asfixiam a economia do país, aniquilam empregos, serviços públicos, etc., para continuar lucrando. Em contraste com isso, o percentual da arrecadação federal destinado à saúde e educação somados não passa de 10%.

[7] Movimento Revolucionário 26 de Julho, o exército guerrilheiro liderado por Fidel, assim batizado em homenagem à data da sua primeira e fracassada tentativa de desafiar a ditadura, num ataque ao quartel de La Moncada em 1953.

[8] As manifestações de massa em toda a ilha por ocasião das cerimônias fúnebres em honra a Fidel fornecem um eloquente exemplo a respeito da gratidão e reconhecimento do povo ao Comandante.

[9] O socialismo pressupõe uma revolução mundial, que garanta a socialização das forças produtivas dos países mais avançados. Isso já havia sido impedido com a derrota da revolução nos países avançados da Europa ao final da 1ª Guerra Mundial (em especial na Alemanha em 1919 e 1923) e o isolamento da transição na Rússia. Além disso, em cada país onde o poder do capitalismo seja rompido, é preciso mais do que simplesmente mudar as relações de propriedade, e sim a mudança no nível de controle operário da produção.





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